BIBLIOTECA PELO AVESSO


  • Quem nunca imaginou um outro final para uma história contada num livro, ou situações vividas em certos lugares e diálogos diferentes para as personagens? Inventadas ou reveladas, aqui as bibliotecas serão descobertas pelo avesso, de dentro das obras literárias.


HISTÓRIAS DE CRONÓPIOS E DE FAMAS EM BIBLIOTECAS

Na época em que li as “Histórias de Cronópios e de Famas”, de Julio Cortázar, não lamentei muito a ausência de uma situação vivida pelas personagens dentro de uma biblioteca, mas passados alguns anos, com a releitura, quis inventá-las. A ideia desta coluna surgiu com a escrita do texto que segue, publicado nos “textos gerais” da Infohome, em 26 de maio de 2016, sob o título “Histórias e movimentos de cronópios e de famas em bibliotecas”. Recuperado aqui para que possa reunir-se ao conjunto.

Contextualização

Dentro de uma biblioteca cuja organização da coleção de impressos (ou de manuscritos) em papel está em conformidade às orientações dos códigos mais utilizados desde os mais remotos tempos históricos da humanidade, dita civilização, e distribuídos no acervo.

Manual de Instruções

Consideremos alguns aspectos: que a faculdade ou ímpeto de, com e para a leitura da escrita, visual ou braille, manifeste-se; que a iluminação e acomodações para o corpo sejam ideais; que a instituição ou prédio permita o acesso direto aos impressos e o tempo dilatado; que os signos dispostos possam ser convencionados e assumidos pela cultura local e outras.

I. Da experiência primeira

Há uma dificuldade inicial no manuseio de um livro impresso: se há como sacá-lo do bolso de uma jeans ou de uma bolsa poliéster sem assombros, impossível será acioná-lo feito um móbile (celular, tablet, smartphone, palmtop, eletronic reader ou qualquer outra placa de fenolite recheada de resistores, transistores, silício etc.) para obter acesso aos caracteres inscritos. Uma despreocupação imediata: o texto do livro já está no suporte, não precisamos aguardar o download completo ou a conexão mega rápida da rede wi-fi, tampouco considerá-la. Alusão aos rolos, papiros ou pergaminhos, é impossível realizar o “rolamento lateral de página”, que com o uso de um touch mouse permitiria verificar em segundos a extensão e formas do manuscrito. De início, pode parecer exagerada toda essa questão da totalidade, pois o limite se anuncia de antemão: da folha de rosto ao colofão, em formato de um bloco uniforme de papel, folheável, contato direto ou rarefeito com o códice medieval. Trata-se de uma miríade de possibilidades sobre tempos culturais, com seus objetos possíveis, envolvidos nesse puro contato que se replica indefinidamente em “reminiscências sobre”, “buscas de” ou “meras tentativas vãs para” ou elos com o fio de uma tradição organizada pela textualidade. Para abri-lo, devemos aproximá-lo do corpo, tocá-lo com ambas as mãos e dedos. É recomendável deixar o interior do livro entreaberto à altura dos olhos, numa distância razoável e aproximada. Para isso, apoie todo o volume do impresso com uma das mãos, mantendo o dedo polegar (dedão, positivo ou mata-piolho) fixado no meio, na parte de baixo, na divisa onde se alinha a costura da lombada por dentro. A complementação da base de sustentação da mão segurando o livro é constituída pelo arco formado entre o braço e o antebraço, mantendo o cotovelo flexionado, somados a uma pequena dose de força muscular concentrada. A troca de temperatura e de fluídos dos corpos é permanente ao contato e a troca de páginas pode ser realizada com o dedo indicador (ou fura-bolo, apontador), com o dedo-médio (pai-de-todos, ousado ou vulgar), com “seu-vizinho”, o anelar, com ou sem aliança, alternando-os e/ou recombinando-os, inclusive com dedos da mão livre, que podem estar levemente umedecidos nas extremidades de suas respectivas pontas. O dedo mindinho (ou dedinho, dedo-mínimo), em ambos os casos, pode permanecer livre para sua expressão ou para reforçar o apoio nas costas do livro. Caso opte pelo uso de uma única mão e dedos que a compõe para todo o processo, esteja certo de que terá alguma liberdade manual para possíveis coceiras, unhas roídas, una paja. De qualquer forma, a operacionalização disto pode ser complicada se você for e pensar canhoto, ou ambidestro, pois parece que o livro impresso foi feito para manuseio de destros, orientado pela leitura da escrita ocidental: do lado esquerdo para o direito, de cima para baixo e para cima novamente, na sequência para baixo e vire-a-página-outra-vez. Sempre que fizer uma pausa na leitura, “seja para um café ou”, “um olhar à procura de”, “uma distração por que”, “uma reflexão sobre a”, será preciso atentar-se a paginação antes de qualquer uma dessas inclinações e outras, pois podem se mover sozinhas e se fechar no livro, entre as capas se perderem tal como incipit e excipit daquela antiga ausência de indicação de início-fim-do-texto. O peso do livro varia conforme a forma, o volume, as dimensões que o particularizam. Seriado numa coleção, em alguns tomos, cada um assumirá sua autonomia e reivindicará atenção cautelosa, pois há riscos de dobrarem-se minimamente as pontas da capa e contracapa ou fraturar suas fibras involuntariamente. Nestes modelos, também haverá elementos pré e pós-textuais como sumário, índices onomásticos, remissivas sobre lugares ou figuras, glossários, notas de rodapé. Outros, raros, terão cronologias superiores às árvores genealógicas das famílias mais antigas pisantes na Terra, marcações, insígnias ou vinhetas, ex libris, ex dono, super libris, verbetes datados, poucas tiragens, gravuras, iluminuras, aquarelas, pedras preciosas, marcas d´água, colagens, encadernações em pele de animais com cheiro de couro almiscarado. Além da forma, do tato e de toda ornamentação, o olfato, afinal, também vincula, ou não, o leitor/manuseador ao livro. Há, ainda, toda uma ecologia viva e latente que o circunda e que pode residir num tipo bibliográfico impresso: traças, cupins, fungos, brocas, insetos coleópteros etc. Também, riscos de natureza físico-química: umidade, radiação, pó, lanugem. Os danos podem marcar uma temporalidade efêmera do objeto bibliográfico, extingui-lo e a toda comunidade. Há também uma gastronomia que os implica e que pode minimizar as tensões existentes entre diferentes espécies e diferentes interesses: prateleiras para sustentação dos impressos como madeiras de cipreste, pinheiro, zimbro ou cedro, devido ao sabor amargo que produzem no paladar de insetos, por exemplo, somado à utilização de licor de alpechim (líquido que sai das azeitonas quando empilhadas, ou do bagaço de uvas), contribuem para inibição, diminuição da proliferação destas colônias ávidas pela degustação dos impressos.

II. Instruções para retirar um livro de uma prateleira na biblioteca

Adentrado ao ambiente, primeiramente ande pelos corredores centrais sem inclinar o corpo ou indicar uma futura alteração do seu percurso. Enquanto caminha, em passos lentos, pé após pé, firme-os ao chão, mas não o faça ao mesmo tempo, pois isto implicaria indicar suas intenções aos observadores. Mantenha os passos com uma distância e alternância do pé e do pé razoavelmente natural, comum aos seres humanos da chamada espécie sapiens sapiens contemporânea. Uma dica: não dê passos acompanhando as divisas do piso, pois alguns podem ter metros de distância, ou não as ter simplesmente, o que causaria uma certa hesitação. – Isto chamaria atenção com toda certeza! Durante essa caminhada, mantenha o movimento dos braços alternando-os para frente e para trás, em descompasso, soando uma certa displicência. Cuide para que sejam comedidos os movimentos. Deixe-os levemente flexíveis, mas tendendo aos ângulos retos, com os dedos mantidos afastados entre si, apontando para o chão e com o dedo polegar assemelhando-se a uma “garra aberta” ou como um alicate – a distância entre o dedo polegar e o dedo anelar poderá ser equivalente a uma lombada de um livro, aproximando-se da espessura de 400 páginas impressas para mãos adultas e cerca de 150 ou 200 páginas impressas para mãos de crianças que não usam fraldas, ou simplesmente, adotar o formato de uma letra “L”, perpendicular, com ângulo de 90º graus. A cabeça deve estar num ângulo alinhado ao tórax. Ao realizar a breve pausa no percurso para mudar de direção, conscientize-se de que causará uma certa desordem aos observadores. A imagem do objeto bibliográfico, regulada pelo par íris-córnea, formada e retida na retina deve ser sutilmente arquitetada antes, pois o movimento de todo o conjunto para construção desse olhar e impulso do corpo ao local pretendido exige um preparo prévio:

F/4.0, 1/30 s, 300 mm x 30 cm, ISO400: Foco!

Num piscar de olhos, vire-se bruscamente para esse corredor imediatamente anunciado e siga sem titubear os passos, pé após pé, assuma o novo percurso, esteja um pouco mais acelerado. Os observadores o veem agora por dentre as prateleiras, não mais como um corpo inteiro, pois as alternâncias de altura dos livros impressos, somados à penumbra, cortes impostos pelas fissuras das estantes e diferentes alturas dos livros, alinhados lado a lado, impedem a precisão de observar e acompanhar o todo. Nesse momento, aumentará a tensão: ligam-se câmeras de filmagem, aumentam o fluxo de passantes na área central e de reposição de livros, às pressas devolvidos às respectivas prateleiras... Em meio às estantes, certifique-se que adentrou na fileira correta e veja apenas os dois ou três primeiros dígitos inscritos numa etiqueta, alocada na parte baixa da lombada externa do livro – geralmente, assemelhada a uma tira impressa em papel de cor branca, preenchida com borrões em cor preta, espaçamento quase nulo, dispostos em três linhas, uma acima da outra, assimetricamente e, obstinadamente, acompanhadas de um outro código composto de riscos alternados em preto-branco-preto-branco até atingirem 14 listras tipo-zebras, sobrepostas por uma sequência aleatória de dígitos, tudo isso protegido por um adesivo transparente e autocolante que a transpassa. A etiqueta possui algarismos arábicos que compõem um sistema enumerativo convencionalmente aceito e significam que alguma coisa, fenômenos conhecidos ou não, estão ali representados, natureza vicária do referente, como numa fotografia: CDD: 770, CDU: 77, legenda, ícones, cores primárias, secundárias, terciárias ou do catálogo arco-íris-mundo-água-flora-fauna-cosmos. Nesse estágio da busca, o cronópio assume total autonomia sobre seu corpo e movimentos. É possível expressar-se espalhafatosamente, desopilar. Agachar-se, sentar-se sobre as próprias pernas, deitar-se e levantar-se quantas vezes desejar. Movimentar os braços à altura do tórax e estabelecer relação com os impressos. Contemplar a variedade de formas, de texturas e de cores. Tocá-los! Por entre as prateleiras, observar-se sendo observado e, em caso de cruzamento de olhares, assimilar o outro, novamente abaixar-se, ou movimentar a cabeça para trás, cerca de 45º ou 90º graus, dispor o olhar para cima, para outras etiquetas e códigos, volumes, dimensões, altura. Os movimentos do corpo nesse novo corredor são indefinidamente alternados, túmidos, imprevisíveis. Pode-se ir até o extremo do espaço livre entre as estantes – que, geralmente, encerra-se num encontro com a parede e vidraça laminada ou aramada, com um novo corredor, em menor ou maior grau de extensão, que impõe apenas dois lados opostos para seguir – ou recuar ao ponto anterior, sem notar adequadamente o que está paralelo ao corpo, seja para direita ou para esquerda. Pode-se alternar a posição e, a cada nova conformação assumida pelo corpo nesse-espaço-criado, observar o material impresso que está à sua frente e, com um simples giro de 180º graus sobre seu próprio eixo, imediatamente, ver outras formas que ali anunciam uma extensão da escrita. Isso pode ser realizado indefinidamente até o esgotamento determinado do horário de funcionamento do local. Nesse momento, famas se cumprimentam pelo dia e pelo pleno andamento das atividades previstas no cotidiano. Diante disso, estenda abruptamente o braço, conforme a orientação anterior, converta a formação da letra “L” dos dedos de uma das mãos em “U” ou “C”. Mesmo que haja pressão externa, firme o contato dos dedos da mão com o objeto impresso, encadernado, e pu(X)e-o de uma única vez em sentido oposto ao estado que se encontra. Concentre e sobreponha excesso de força física nessa mão e aproxime os demais dedos de modo a comporem uma única massa. Aproxime o volume a si. Pense e assuma sua nova massa, forma e postura. Caminhe em direção à saída, que geralmente é paralela ao corredor de entrada e, antes de partir, passe no setor de circulação.

III. Chave/Desfecho/Abertura

No balcão de empréstimos e devoluções presente e convencional em bibliotecas de estrutura física, um fama pode querer puni-lo pelo atraso na devolução de exemplares, checar toda sua lista, recomendar um e-book ou um o-book e demorar um pouco na condescendência do exemplar impresso solicitado, enquanto um cronópio quer emprestá-lo e outros além da cota pré-determinada, esquecer dos registros de controle, querer que leve também em formatos PoP-uP.

Amalgamado ao objeto, você acaba de presentear o livro impresso.

Não é o livro seu presente, mas você “O” presente para “O” livro:

(“0-0”)

O tempo, agora, será esta ambivalência que também é uma chave concedida pela biblioteca: a contraposição sempre bem-vinda e, espera-se, duradoura da leitura:

Pensar e viver um quarto de hora em pouco mais de um minuto – o realismo e o fantástico em deshoras.

Referência

Historias de Cronopios y de Famas, sexta obra de Julio Cortázar, foi originalmente publicada em 1962.


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MARCOS PAULO DE PASSOS

Bibliotecário com experiência e participação em projetos e pesquisas realizados no contexto de bibliotecas educativas. Bacharelado em Biblioteconomia pela UNESP/SP, com Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação pela USP/SP.