BIBLIOTECA PELO AVESSO


  • Quem nunca imaginou um outro final para uma história contada num livro, ou situações vividas em certos lugares e diálogos diferentes para as personagens? Inventadas ou reveladas, aqui as bibliotecas serão descobertas pelo avesso, de dentro das obras literárias.


A BIBLIOTECA RESSUSCITADA DE USHER

Os mitos bíblicos de Lázaro e da Torre de Babel, somados aos registros da Biblioteca de Alexandria, incendiada, destruída e revigorada no tempo, ao mesmo passo que nos causam assombro e fascínio, nos fazem refletir sobre a possibilidade de superação do adverso, reconstrução e enfrentamento do terror. As linhas que seguem tratam de um episódio que ilustra essa realidade...

Muito embora os manuais indiquem que sejam evitadas zonas de risco, áreas sujeitas a inundações, poluição atmosférica ou terrenos pantanosos, a construção da Biblioteca de Usher desafia cálculos matemáticos precisos, laudos periciais e avaliações técnicas objetivas.

Construída sobre as ruínas originais, a arquitetura da biblioteca recupera traços e marcas características da velha mansão, incluindo a estrutura de sua alvenaria, erigida sobre aquilo que permanecera intacto após o abalo que sofrera na ocasião de sua queda. Embora reconstruídas recentemente, suas paredes já apresentam um aspecto desgastado, uma descoloração aparente e rachaduras de lado a lado. O teto mofado, cujo formato abobadado fora talhado no cinzel, parece tremular insistentemente. Há uma recorrente trepidação por debaixo do piso, indicando uma movimentação frenética... Mesmo com um olhar vacilante, percebem-se vultos percorrendo sua extensão, de baixo-acima, que desaparecem por completo; em segundos. Os corredores internos são estreitos e escuros, sobretudo por entre as estantes que, combinadas com o assoalho feito em ébano, fazem prevalecer uma sombria paleta tonal jamais vista.

Num determinado período da tarde, as janelas compridas e ogivais da biblioteca, todas recobertas por leves e finas cortinas, que mais parecem feitas de fiação tecidas parcimoniosamente por aranhas, são ultrajadas por fracos e acidentais raios de luz avermelhada que atravessavam as vidraças e tornam suficientemente claros e localizáveis os objetos ali dispostos. Observada de dentro, suas janelas apontam para um horizonte vazio, fatiado pelas gelosias. A acústica interna favorece a escuta pois, ao longe, permite identificar uma baixa e impetuosa ária interpretada por uma voz sombria, cuja enunciação oca, pesada e lenta afasta quaisquer possibilidades de silêncio absoluto e repouso no recinto. Mesmo após calada, ecoa incessantemente por toda a extensão do ambiente a ponto de não ser possível distinguir a reverberação de sua origem.

Em torno da biblioteca-mansão, na ordem do arranjo das pedras acinzentadas que a segmenta, minúsculos cogumelos e fungos estendem-se e cobrem os beirais por todo o exterior, em emaranhada e fina tessitura. Árvores doentes, aparentemente apodrecidas, próximas do lago, de água imóvel cor de chumbo, coberto de vapor pestilento e miasmas fétidos, recuperam e recriam às adjacências do local uma paisagem peculiar de agora e de outrora, atmosfera que conjuga presente e passado a um só tempo. O odor exalado pelo rio parece o mesmo presente em alguns livros da coleção: a pequena edição in-octavo do Directorium inquisitorium do dominicano Eymeric de Girone e o Vigiliae mortuorum secundum chorum ecclesiae maguntinae - que pertenceram a Roderick! - estão em processo de decomposição, mas preservam intactos o ex-Libris de sua família, as assinaturas e anotações do defunto, marginálias inconfundíveis.

A intenção de manterem vivas [na biblioteca-mansão] sua aura e marca identitária é um dos aspectos que a tornara ponto de visitação, com peregrinações assíduas, além de oferecer um local para atos cerimoniosos, ritualísticos e libidinosos.

Além de ter se firmado como novo centro de práticas científicas contemporâneas, a biblioteca-mansão coloca em perspectiva aspectos que não passam despercebidos aos “olhares vivos” dos que ali circulam: funcionários dedicados, pesquisadores obstinados, frequentadores permanentes, turistas e paisagistas curiosos movimentam o singular ambiente, mantendo ativa sua experiência única e financiando sua existência. Acreditam que haja no acervo um exemplar que permita vencer a fronteira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, sem apartá-los dos seus corpos físico-celestiais, com a possibilidade de um diálogo real omitido das escrituras sacras.

No interior da biblioteca, entre o sabido ou adivinhado pelos homens, nunca revelado pelos que conhecem o mistério, é comum notar-se um ar de severa e irremissível melancolia ou encantamento, algo como um sentimento de pertencimento perpétuo.

II

A biblioteca como caixão é um convite que causa euforia e recusa dos visitantes. Após a experiência, os funcionários asseguram que o retorno das faculdades mentais cause sensações próximas daquelas vividas pelos viciados em ópio, após diminuição de seu efeito: uma amarga volta à vida cotidiana, com a atroz descida do véu; vivenciada no limite, pode elevar ao sublime, pois está além da nossa restrita capacidade de apreensão do todo, das cores e hilaridade que causa; apenas sentida é inexpressa em linguagem humana conhecida.

Numa ampla câmara do piso inferior, há uma pequena escada para acessar os féretros individuais; dispostos lado a lado formam colunas à uma extensão infinita. A profundidade da sala, no conjunto da construção da biblioteca, veda inteiramente a entrada de qualquer claridade natural, escuridão atenuada pela composição e jogos de luz produzidos por um leque de velas acesas ao redor dos ataúdes. As trepidações permanecem num estágio quase unicamente sensorial, absorvidas pelos corpos.

A bibliotecária que orienta a experiência dentro dessas caixas-envelopes (assim ela se refere aos caixões de leitura) chama a atenção pela fisionomia difícil de esquecer: olhos grandes, transparentes, luminosos, aprofundados no semblante; tez cadavérica e palidez espectral da pele; lábios finos e pálidos, nariz de belicado, queixo sem proeminência; cabelos longos esvoaçantes e sem coloração definida, fios finos que mais flutuam do que caem pelo rosto, dedos longos e finos, descarnados.

A jovem apresenta uma pequena agitação nervosa nos gestos, seus atos são ora vivos, ora soturnos... passam de uma trêmula indecisão a uma espécie de concisão enérgica. Explica que a experiência da leitura de um texto é constituída pelo que afeta o corpo. São definidos e construídos não apenas pela forma e suportes tradicionais da escrita, mas em relação a contextos em que se inscrevem. Causam riso, dor, lágrima, medo, ternura, esperança, dentre outros sentimentos. A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: inclui atos e gestos de autonomia após apreendida a linguagem dos signos escritos passíveis de serem versados; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros, é escuta. Inicia a leitura do texto bíblico de Lázaro... e pausa.  

Seu ardor parece cair e uma completa inação a toma por minutos durante o atendimento. Permanece em estado cataléptico. Não há exatamente algo claro que necessite ser explicado, mas parece viver uma espécie anômala de terror. Reanima-se com respostas positivas dos consulentes. Fala com voz plúmbea e solicita os dados pessoais, inclui medidas de peso e altura, preenche os formulários e registra os números nos livros de tombo. Aponta os ataúdes livres para que sejam ocupados. Ao contrário da perceptível adoção do sistema de classificação para arranjo fixo dos livros nas estantes, inexiste classificação das caixas-envelope, cuja estada é provisória; para os corpos, idem, pois sua durabilidade é finita, mesmo os embalsamados. Cada caixa é constituída de madeira de sicômoro (platanus), aroma típico, formato oblongo (mais comprido que largo), repleto de ornamentos, figuras e inscrições personalizadas por toda extensão das laterais internas e externas. Trata-se de um convite inevitável decifrá-las para sonhar e, quem sabe, descobrir-se na eternidade.

O mistério situa-se no limite da compreensão sobre vida-morte / passado-presente que ousamos explicar. É provável ultrapassar a fronteira durante a noite. A hipótese que sustenta o argumento está baseada em dois aspectos: a ordem decretada pelos catálogos não mantém seu prestígio nas sombras; a passagem do tempo se situa entre o estado de vigília e o sono profundo. A fronteira, cada qual a traz dentro de si.

A bibliotecária toca com a palma da mão o próprio peito em reverência aos que prosseguem na jornada e, também, aos que recuam, que tocam a si próprios copiando o gesto da jovem morta-viva; outros tocam com a ponta dos dedos a própria testa e indicam sua não concordância, movimentanto a cabeça negativamente; manifestam sua recusa ao corolário da vida. Ela retoma e conduz o restante do ritual: entrega as ataduras, gazes e uma pequena porção de massa de gesso; fecha a tampa de cada um dos estojos para que cada pessoa possa sentir, de forma absoluta, durante a permanência no invólucro, uma experiência inédita, única e sem partilha: a revelação. 

III

A existência da Biblioteca de Usher e suas particularidades tem causado sensações controversas na humanidade, apesar de conter a verve que a justifica: prover o acesso ao “CONHECIMENTO”.

Ali cohabitam “acervos vivos” e “acervos mortos”, repositórios ambivalentes da memória, registros fugidios. Muitos amaldiçoam, sugerem e torcem para que a biblioteca desmorone, enterre-se a si própria, definitivamente. Outros defendem sua história, ciência e propósitos, pois edificada no local de uma tragédia, que indica seu mito de origem, nos faz crer no inexplicável e na ressurreição após toda catástrofe.

30/03/2021

Referência

A queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe, escrito em 1841.


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MARCOS PAULO DE PASSOS

Bibliotecário com experiência e participação em projetos e pesquisas realizados no contexto de bibliotecas educativas. Bacharelado em Biblioteconomia pela UNESP/SP, com Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação pela USP/SP.