REFLEXÕES ÉTICAS


A UNIVERSIDADE E AS FALAS DA “RUA”

Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender

Sérgio Sampaio

Neste texto, que escolhi para comemorar a edição de número mil do Infohome, utilizo duas falas extraídas de pesquisas realizadas por mim com o fundamento das representações sociais. Proponho, com base nessas falas, uma breve reflexão sobre minha percepção da distância que muitas vezes mantemos como comunidade acadêmica (falo especificamente no âmbito da formação de bibliotecários e de pesquisas sobre atuação em bibliotecas) do mundo da vida cotidiana que se acessa mediante o pensamento expresso dos indivíduos envolvidos em atividades de interesse da Biblioteconomia.

Pensar e falar estão interligados, as narrativas são pensamentos expressos. Flusser (2007) considera que o que se iniciou nos seres humanos com um “balbuciar” e com uma “salada de palavras” culminou em grande conversação a partir do intelecto, reforçando a ideia de dizeres como expressão do pensar. A Teoria das Representações Sociais (TRS), por exemplo, compreende as narrativas como forma de acessar o pensamento, as percepções e a forma de ação dos indivíduos no mundo da vida.

Em pesquisas com o fundamento nas representações sociais as narrativas são imprescindíveis, bem como, o senso comum contido nessas representações. O senso comum revela um sistema de crenças e valores, um ponto de vista a ser valorizado por “estar aí”, orientando práticas e impactando a sociedade. Berger e Luckmann (2007) destacam que o senso comum representa interpretações da realidade admitidas como “certas”, validadas pelas pessoas. É um conhecimento elaborado socialmente em um misto de conteúdo cognitivo, afetivo e simbólico muito relevante porque orienta a conduta das pessoas (ARAYA UMAÑA, 2002). Isso se relaciona com a possibilidade de conhecer como os indivíduos pensam e constroem seu sistema de crenças em seu meio cultural - que nem sempre se estabelece com base nas descobertas e premissas científicas.

Estudo sobre bibliotecas públicas, centros culturais, ambientes públicos de informação para cidadania e já figurei nesses ambientes desempenhando diferentes papeis: profissional, usuária, pesquisadora. Leio textos e escuto falas sobre estes ambientes que causam muito desconforto porque muitas vezes não se associam à realidade. Tenho a sensação de que essa incoerência velada, esse silêncio, podem resultar na indiferença e no esquecimento de discussões imprescindíveis. Reflexões que podem gerar propostas práticas e possíveis, capazes de avançar no desenvolvimento do acesso à informação para todos de fato, sem distinção.

Nas vivências e conversas sobre bibliotecas públicas ou de acesso público, há um discurso muito frequente do acesso à informação para todos e da relevância do usuário como prioridade neste serviço (superado o paradigma do acervo). São expressões e entendimentos continuamente repetidos, frequentes em artigos, eventos, conversas e encontros que se propõem a colocar a temática na roda. Entretanto, há um estranhamento, um desconforto, quando saímos das universidades e eventos científicos e frequentamos os locais de atuação profissional e de prestação de serviço, quando conversamos com cidadãos ou com pessoas que estão distantes deste contexto de formação mas são impactadas pelos que atuam nesta frente.

Nas minhas andanças, entrevistando uma bibliotecária atuante em biblioteca pública do interior catarinense para dar conta de meus estudos de doutoramento, ela me contou sobre a orientação da bibliotecária que a antecedeu, e que coordenava a biblioteca pública:

[...] tu tens que ver, [...] quando a pessoa vem aqui [...] a calça jeans dela, se é [...] boa, dependendo como for tu atende (SILVA, 2017, p. 181).

Essa fala apareceu. É um discurso que revela uma faceta escondida dos artigos, das conversas, das salas de aula, dos processos formativos mas presentes na realidade da vida cotidiana com todos os seus impactos sociais. A baixa frequência tão comum nas bibliotecas públicas, a desvalorização e sucateamento destes serviços, deveriam fazer a gente desconfiar do discurso glorioso, acolhedor e democrático desses ambientes que todo mundo supostamente percebe como fundamental na sociedade. Um “balde de água fria” pensar que a biblioteca pública que provê o acesso a todos sem distinção, distingue. E distingue no pensamento, na fala e na ação de quem frequentou a universidade e permeia os eventos da área.

Há também narrativas que produzem outros tipos de sentimentos mas que traduzem percepções que não são costumeiramente proclamadas nos discursos dos relatórios de pesquisa, como de uma líder de biblioteca comunitária ao reforçar a ideia da biblioteca como um local de segurança. (SILVA, 2011). 

Antigamente as crianças eles chegavam da escola e ficavam na rua, arriscado um carro passar por cima”

Não lembro de ter acesso a uma percepção da biblioteca com esse viés em artigos ou eventos durante minha formação universitária nem durante minha atuação como profissional, não conversamos muito sobre essas condições sociais. Foi quando me dispus a escutar e falar com a “rua”, que se colocou para mim esse ponto de vista.

A ideia de biblioteca como lugar de segurança diante de uma realidade social de segurança pública específica ou a abordagem de bom atendimento que se relaciona com o uso e uma “boa” calça jeans são pensamentos e falas que refletem ações e que foram possíveis acessar em virtude de uma investigação social que permite uma aproximação das pessoas. As ações desses indivíduos são pequenos movimentos que impactam a sociedade. Nessa perspectiva se dá o entendimento de configuração social de Norbert Elias. (ELIAS, 1994).

Mais do que um julgamento essas falas podem nos direcionar para diversas reflexões. Proponho neste escrito uma lente de aumento na direção sobre a nossa formação tecnicista e muitas vezes distanciada de questões urgentes da realidade que não condizem com nosso discurso de acesso à informação para todos.

Em sua pesquisa de doutorado, Pizarro (2017) nos lembra que na formação bibliotecária há a prevalência de um modelo tecnicista estadunidense - e por ser importado não foi criado por nós, em conformidade com nossa realidade e história, mas reproduzido por esse grupo. Pesquisando as universidades públicas catarinenses que formam bibliotecários a partir das falas dos docentes, Pizarro (2017, p. 220-221) verifica que existe “déficit de formação no aspecto sociocultural em detrimento do fortalecimento da racionalidade instrumental, o que não apoia a formação de uma consciência ética que possibilite ao profissional intervir criticamente na sociedade”. No discurso dos formadores aparece uma preocupação com o atendimento aos diversos setores do mercado, principalmente, o científico e tecnológico – uma constatação que, segundo a autora, revela uma visão que não prioriza o progresso social.

Conteúdos e discussões da realidade que não perpassam as disciplinas no contexto formativo, não ocupam lugar relevante nas grades curriculares dos cursos nem nos discursos de sala de aula e, consequentemente, possuem menor potencial para capacitar os futuros profissionais para reflexão, atenção ou revisão de posturas. Esse texto mesmo deve causar um estranhamento: atender de acordo com a calça jeans? Bibliotecas para crianças não serem atropeladas?

Creio que a gente precisa colocar mais o “bloco na rua” e diminuir os “muros” que nos separam na sociedade e nos impedem de um conhecimento e interação mais coerentes. Caso contrário, continuaremos registrando nos artigos, lecionando e aprendendo em sala de aula que o usuário (ou seja lá o nome que ele venha a assumir: interagente, cliente, leitor, sujeito, indivíduo, cidadão), é a diretriz mais relevante do nosso trabalho, que as bibliotecas públicas dão acesso informacional a todos sem distinção, que já superamos o paradigma do foco na coleção e que as pessoas são, no nosso discurso, a prerrogativa mais importante do nosso trabalho.

Nesse sentido, tenho dúvida sobre a superação do paradigma do acervo - e para a temática cabe outro texto nesta coluna. Por vezes, me parece que passamos a pensar pessoas, a ter o foco no usuário, para ajustar melhor nossa atividade gerencial, para compor o acervo e, nesse caso, o direcionamento do serviço oferecido permanece no acervo. Por vezes penso que se nos ocupássemos realmente de pessoas como foco principal (mesmo as que não leem ou não frequentam o ambiente) não acharíamos estranha a narrativa da biblioteca tendo como função social livrar crianças do atropelamento e dos traficantes e questões de problemáticas sociais seriam um viés relevante de nossa formação. De igual forma, um profissional atuante na biblioteca, que tenha passado por uma formação universitária não levaria em consideração, ou mesmo, não daria orientação sobre a vestimenta das pessoas para um bom atendimento.

Creio que ainda carecemos de avançar no discurso com foco nas pessoas para melhorar sua qualidade de vida, seja o indivíduo que for, em qualquer condição social. Essa é uma questão ética. Ainda que o homem tenha liberdade para escolher o que deseja fazer, quando escolhe uma profissão, segundo Ortega y Gasset (2006) deve se comprometer com o que a sociedade necessita, renunciando um pouco de sua liberdade, num processo de abandono do individualismo.

Este escrito não desmerece as boas práticas que têm sido empenhadas nas bibliotecas públicas por excelentes profissionais no país, também a articulação e esforço de algumas Associações de classe em torno de temáticas relevantes no contexto das desigualdades sociais. Carecemos de uma formação para perceber, sentir e agir a necessidade das comunidades e modificar a vida das pessoas. Estas relações propostas intencionam trazer o assunto “à tona”, evidenciá-lo como questão relevante para a formação, para os que pensam a Biblioteconomia, para os que escrevem, formam e atuam em ambientes de informação.

Colocar a temática de valorização do senso comum e da necessidade de olhar para o mundo da rua pode, além de conduzir os profissionais a questionarem suas práticas, inserir a discussão na formação de futuros bibliotecários, auxiliando para uma postura mais coerente, consciente, crítica e modificadora da realidade.

Ouvi recentemente Leonardo Boff falar em uma live (1) e ele mencionou que “somos seres de mudança”. O conservadorismo pode se revelar perverso em qualquer esfera, inclusive na academia, pois é uma tentativa de conter a humanidade em nós, humanidade que é mudança. Portanto, acredito no arejar do nosso pensar, na abertura para pensar nosso discurso e nossas práticas, principalmente no que se refere à formação de pessoas que irão atuar em espaços públicos de informação. Nesse texto, um pequeno movimento de mudança.

 

REFERÊNCIAS

ARAYA UMAÑA. Sandra. Las representaciones sociales: ejes teóricos para su discusión. Cuadernos de Ciencias Sociales, San José, n. 127, out. 2002.

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2007.

ORTEGA Y GASSET, José. Missão do bibliotecário. Brasília: Briquet de Lemos, 2006.

PIZARRO, Daniella Camara. Entre o saber-fazer e o saber-agir: o que professam os docentes de biblioteconomia em Santa Catarina. 2017. 535 p. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. Disponível em: ?sequence=-1&is Allowed=y>. Acesso em: 14 maio 2020.

SILVA, Ana Claudia Perpétuo de Oliveira da. Biblioteca pública do povão?: exclusão social da informação nas bibliotecas públicas do Estado de Santa Catarina nas representações de seus dirigentes. Florianópolis, 2017. 345 p. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. Disponível em: < http://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/178967/348752.pdf?sequence=-1&is Allowed=y>. Acesso em: 20 abr 2020.

_____. É preciso estar atento: a ética no pensamento expresso dos líderes de bibliotecas comunitárias. 2011. 386 p. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. Disponível em: . Acesso em: 28 jul 2013.

NOTAS

(1) Live “Espiritualidade na ação”, mediada por Eduardo Moreira, com a participação de Leonardo Boff, Frei David e Henrique Vieira, transmitida no dia 17 de agosto de 2020. Disponível no link: ?v=F5u6ilsryVE>.


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ANA CLAUDIA PERPÉTUO DE OLIVEIRA

Docente do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui mestrado e doutorado em Ciência da Informação pela UFSC. Possui graduação em Biblioteconomia pela UFSC e em Ed. Artística - Habilitação em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Integra o Grupo de Pesquisa Informação, Tecnologia e Sociedade, da UFSC. Atuou por quase 20 anos em biblioteca universitária, escolar, comunitária, especializada e em políticas públicas para bibliotecas públicas. Tem como interesse de pesquisa assuntos relacionados à ética em unidades de informação, bibliotecas públicas e comunitárias, relações entre biblioteconomia e arte, ação cultural, exclusão/inclusão em unidades de informação, centros e acervos culturais, relações entre escrita, oralidade e leitura. Aposta na arte como forma de reinventar uma atuação profissional que desenvolva empatia e o compromisso com uma sociedade mais igualitária.