NÃO ESTÁ NO GIBI


AS GIBITECAS: UM ESPAÇO PRIVILEGIADO PARA A LEITURA E DIFUSÃO DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

Até alguns anos atrás, pode-se dizer que o espaço e a atenção destinados às histórias em quadrinhos nas bibliotecas públicas brasileiras eram, em geral, bastante precários. Quando presentes nessas instituições, às publicações em quadrinhos era costume dar-se o mínimo tratamento técnico possível, contentando-se a maioria dos profissionais em colocar as revistas em cestas ou espalhá-las por cima de mesas, para deleite dos pequenos leitores (adultos lendo histórias em quadrinhos? Nem pensar...). De uma certa forma, parece que os bibliotecários em particular - e a sociedade a que eles serviam, de uma maneira geral -, entendiam que, como profissionais, não podiam perder seu precioso tempo de trabalho catalogando, classificando, organizando, restaurando, enfim, fazendo todas aquelas coisas meio esdrúxulas que os bibliotecários costumam normalmente fazer quando preparam os materiais monográficos para uso do seu público. Desta forma, os quadrinhos ficavam com sobras de atenção e cuidado. E que se dessem por satisfeitos com isso.

Felizmente, a situação começou a sofrer algumas mudanças de vinte anos para cá. A sinalização para a mudança de postura nas bibliotecas públicas começou a ser dada pela criação da primeira Gibiteca no Brasil, um neologismo que buscava nomear uma biblioteca especialmente dedicada à coleta, armazenamento e disseminação de histórias em quadrinhos. Ela surgiu na cidade de Curitiba, em 1982, sendo instalada em uma fundação cultural da capital paranaense. Tratava-se de uma iniciativa de desenhistas e amantes dos quadrinhos, que almejavam divulgá-los entre a população e, ao mesmo tempo, ter um espaço para discussão, cursos, palestras, exposições e eventos ligados às histórias em quadrinhos no país.
A criação da Gibiteca de Curitiba representou o surgimento da primeira instituição no país batizada com esse nome, um termo diretamente derivado da forma como as revistas de histórias em quadrinhos são tradicional e carinhosamente referidas no país - gibi, nome de uma famosa e popular revista das organizações O Globo, publicada de 1939 a 1950. Assim, com o surgimento dessa Gibiteca, cunhava-se o termo genérico para denominar qualquer biblioteca ou espaço institucionalizado que colocasse as histórias em quadrinhos como o centro de sua prática enquanto serviço de informação e que iria passar, a partir de então, a ser amplamente utilizado em todo o país.

Durante um bom tempo, a Gibiteca de Curitiba constituiu uma iniciativa isolada, fruto do interesse de um grupo de idealistas e amantes das histórias em quadrinhos. Embora jamais tenha estado inserida no âmbito de um serviço de informação tradicional e nem tenha contado com um bibliotecário para gerenciá-la, uma situação que ainda persiste, isso não impediu que ela se tornasse o ponto central de uma intensa atividade cultural, indo muito além de uma coleção especializada. Em torno dela foi e continua a ser realizado um variado número de exposições, cursos sobre a arte dos quadrinhos e como fazê-los profissionalmente, palestras e atividades das mais diversas que buscam dar às histórias em quadrinhos um status privilegiado dentre os meios de comunicação de massa; ao mesmo tempo, a Gibiteca de Curitiba conseguiu, também, constituir um considerável acervo de revistas e desenhos originais, fruto principalmente de doações provindas de autores e colecionadores da cidade e de outras regiões do país.

Talvez em função do sucesso da Gibiteca de Curitiba, ou mesmo por pressão dos usuários que, cada vez com maior freqüência, passaram a solicitar histórias em quadrinhos nas bibliotecas públicas, aos poucos alguns responsáveis por essas instituições no país também começaram a criar espaços específicos para elas. Na maioria das vezes, tratou-se de iniciativas isoladas de profissionais que encaravam os quadrinhos de uma maneira diferente da de seus colegas, tendo se interessado por eles anteriormente mesmo à época da graduação, por um ou outro motivo. Assim, com ou sem o apoio de seus superiores, selecionaram e organizaram acervos de revistas de histórias em quadrinhos e os disponibilizaram para seu público.

Na maioria das vezes, os bibliotecários ou os funcionários de bibliotecas responsáveis pelo desenvolvimento dessas gibitecas tiveram que fundamentar a constituição do acervo em doações obtidas junto à comunidade, ao mesmo tempo em que buscavam realizar atividades visando atrair usuários e criar um ambiente que pudesse garantir não apenas a simpatia, mas também o apoio da população a esse novo tipo de acervo. Muitas vezes, tratava-se de pequenas salas onde duas ou três estantes contendo revistas em quadrinhos eram colocadas, permitindo-se o acesso dos leitores e até mesmo realizando-se o empréstimo de revistas para uso domiciliar. Entre as diversas gibitecas que surgiram dessa forma, pode-se destacar a atividade pioneira organizada na biblioteca pública da cidade de Londrina, também no Estado do Paraná. No caso dessa iniciativa, entretanto, a denominação escolhida pelos bibliotecários para nomear o serviço ou acervo de quadrinhos existente na seção infantil foi a de gibilândia, buscando atrair as crianças pela relação que a palavra imediatamente traz com um parque de diversões. O serviço continua a existir na biblioteca até os dias de hoje, o que dá uma boa dimensão da repercussão que teve no público a que se destina.

Não obstante o pioneirismo das iniciativas acima, a primeira gibiteca brasileira a surgir dentro de um serviço de biblioteca pública, a partir de iniciativa da própria administração municipal, foi a Gibiteca Henfil, órgão do Departamento de Bibliotecas Infanto-Juvenis da Secretaria de Cultura do município de São Paulo, inaugurada em 1991 e hoje possuindo o maior acervo do país, num total de 100.000 exemplares. Além desse vasto acervo, a Gibiteca Henfil é responsável por um dos maiores índices de freqüência das bibliotecas públicas da cidade de São Paulo, e também por se colocar como um grande centro de eventos relacionados com os quadrinhos, promovendo cursos, exposições, palestras, debates e lançamentos de novas obras, bem como servindo de ponto de encontro para reuniões de leitores. Nos últimos anos, a Gibiteca Henfil também abriu suas portas para atividades relacionadas com meios correlatos aos quadrinhos, como os RPG e outros jogos de estratégia.

Seria difícil afirmar o número exato de gibitecas atualmente existentes no Brasil. Sabe-se que várias cidades, como Santos (SP), São Bernardo do Campo (SP), Santo André (SP), João Pessoa (PB), Londrina (PR) e Brasília (DF) as possuem. Algumas vezes, essas gibitecas são vinculadas a bibliotecas públicas; outras, a instituições privadas. Elas tanto podem contar com bibliotecários para administrá-las como ser dirigidas por voluntários da comunidade ou por funcionários designados para fazê-lo em virtude de predileções especiais por esse tipo de material. No entanto, existem motivos para acreditar que as gibitecas, como setores ou ramais especiais de bibliotecas públicas, dirigidas por profissionais capacitados, representam uma tendência cada vez mais dominante, parecendo indicar uma tomada de consciência de que tais profissionais podem possibilitar uma elevação no nível de serviço prestado aos leitores de quadrinhos.

No entanto, a constituição e funcionamento de gibitecas, seja em instituições públicas, seja em instituições privadas, não representa tarefa das menos complexas. Por um lado, quando organizadas por um pessoal que possui algum tipo de ligação com a linguagem dos quadrinhos, seja afetiva, como leitores ou colecionadores, ou como resultado de uma prática profissional na área, acaba-se tendo instituições que pecam pela desorganização do acervo, pela pouca eficiência na recuperação dos títulos ou pela dificuldade de controle dos materiais, ainda que sejam organismos atuantes e cheios de atividade. Por outro lado, quando dirigidas por bibliotecários profissionais, elas tendem a ter um nível de organização mais precioso, mas corre-se também o risco de não desenvolver a variedade de atividades que caracterizam as primeiras. Infelizmente, nas mãos de alguns bibliotecários, uma gibiteca, ao invés de um organismo dinâmico e atuante, transforma-se em um simples acervo de revistas em quadrinhos que placidamente repousa nas estantes, avidamente protegido por esses profissionais... à espera de uma utilização que, freqüentemente, é menor do que ele mereceria.

Mas nem tudo é cinzento no panorama das gibitecas dirigidas por bibliotecários, como pode deixar a entender o final do parágrafo anterior. Pelo contrário. Muitos bibliotecários brasileiros estão aos poucos descobrindo que, para proporcionar melhor serviço aos amantes dos quadrinhos, não basta apenas munir-se de boas intenções e afastar todos os preconceitos que porventura ainda cultivem sobre o meio. E nem, por outro lado, que representa uma atitude benéfica para a sua clientela exercer um controle exagerado sobre o material de quadrinhos, colocando a preservação do acervo acima das necessidades de leitura e fruição dessa linguagem pelo público freqüentador da biblioteca: as histórias em quadrinhos são um material popular e de alto consumo, sujeitos a um desgaste natural devido ao uso. Não há como evitar indefinidamente que o desgaste ocorra. Nesse sentido, é importante ter em mente que nem todas as gibitecas do país precisam ter por missão a preservação da memória das histórias em quadrinhos nacionais. Algumas, talvez. Mas não a maioria delas, para as quais será importante ter como objetivo maior disseminar e divulgar esse meio na sua comunidade da forma mais eficiente possível.

No entanto, para atingir o objetivo de colaborar efetivamente para a disseminação e divulgação das histórias em quadrinhos no país por meio da atuação das gibitecas, é necessário aos bibliotecários e a todos os funcionários dessas instituições - principalmente aqueles que trabalham diretamente no atendimento ao público -, conhecer a fundo tanto as características do meio de comunicação de massa como do próprio leitor de quadrinhos. Só a partir desse conhecimento é que será possível a esses profissionais realizar de maneira adequada toda a gama de atividades que envolvem a seleção, coleta, aquisição, tratamento, disseminação e preservação de histórias em quadrinhos. Nesse sentido, parece evidente que compreender e dominar com suficiente independência os diversos veículos em que os quadrinhos estão disponíveis, os gêneros em que são publicados e o tipo de leitor que costumam atrair é um requisito indispensável para todos aqueles profissionais que pretendam dedicar-se ao trabalho de documentação nessa área. Ou, em outras palavras, para aqueles que acreditam que as histórias em quadrinhos merecem o mesmo nível de qualidade de serviço dispensado a quaisquer outros materiais presentes nos acervos das bibliotecas. E oxalá estes sejam cada vez em maior número. Os quadrinhos merecem.


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.