LITERATURA INFANTOJUVENIL


A MULHER QUE VIROU BEIJA-FLOR PARA LIBERTAR SUA FILHINHA

Convidada pelo jornalista Luciano Bittencourt participei como curadora do Projeto Bibliocircuito 22 um projeto elaborado em comemoração aos 70 anos da Biblioteca Pública de Londrina e os 100 anos da Semana de Arte Moderna. Foram três dias de atividades dentre elas: exposição de obras raras, oficinas, palestras, performances artísticas e literárias e shows. Dessa programação quero destacar o show “Demarcação Já” com o Edivan, um indígena do povo Fulni-ô e Pataxó hã hã hãe que além de cantor, compositor e promotor musical é um ativista da Terra, da identidade e dos territórios indígenas.

Impactada com os cantos e as letras dos cantos proferidas por ele, resgatei do meu acervo o livro “O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil”, meu livro preferido sobre a temática indígena. De lá extrai um conto maravilhoso que, com a devida referência ao autor Leonardo Boff, transcrevo a seguir:

A MULHER QUE VIROU BEIJA-FLOR PARA LIBERTAR SUA FILHINHA

Leonardo Boff

Coaciaba era uma jovem índia, esbelta e de rara beleza. Ficara viúva muito cedo, pois seu marido, valente guerreiro, tombara sob uma flecha inimiga. Cuidava com extremo carinho da única filhinha, Guanambi. Para aliviar a saudade interminável do marido, passeava, quando podia, pelas margens do rio, vendo as borboletas, ou na campina, perto do roçado, onde também esvoaçavam os mais diferentes passarinhos e insetos.

De tanta tristeza, Coaciaba acabou morrendo. Não se morre só de doença ou por velhice. Morre-se também por saudade da pessoa amada.

Guanambi, a filha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente, nas horas em que a sua mãe costumava levá-la para passear. Mesmo pequena, só queria visitar o túmulo da mãe. Não queria mais viver. Pedia aos espíritos que viessem buscá-la e a levassem lá onde estivesse sua mãe.

De tanta tristeza, Guanambi foi definhando dia a dia, até que morreu também. Os parentes ficaram muito penalizados com tanta desgraça, sobrevindo sobre a mesma família.

Mas curiosamente, seu espírito não virou borboleta como os demais índios da tribo. Ficou aprisionado dentro de uma linda flor lilás, pertinho da sepultura da mãe. Assim, podia ficar junto da mãe, como havia pedido aos espíritos.

A mãe Coaciaba, cujo espírito fora transformado em borboleta, esvoaçava de flor em flor, sugando néctar para se fortalecer e encetar sua viagem ao céu.

Certo dia, ao entardecer, ziguezagueando de flor em flor, pousou sobre a linda flor lilás. Ao sugar o néctar, ouviu um chorinho triste. Seu coração estremeceu e quase desfaleceu de emoção. Reconheceu dentro da flor a vozinha da filha querida, Guanambi. Como poderia estar aprisionada ali?

Refez-se da emoção e disse:

- Filha querida, mamãe está aqui com você. Fique tranquila que vou libertá-la para juntas voarmos ao céu.

Mas deu-se logo conta de que era uma levíssima borboleta e que não teria forças para abrir as pétalas, romper a flor e libertar a filhinha querida. Recolheu-se, então, a um canto e, em lágrimas, suplicou ao Espírito criador e a todos os ancestrais da tribo.

- Por amor ao meu marido, valente guerreiro, morto em defesa dos irmãos e das irmãs, por compaixão de minha filha órfã, Guanambi, presa no coração da flor lilás, eu vos imploro, Espírito benfazejo e a vós todos, anciãos de nossa tribo: transformem-me num passarinho veloz e ágil, dotado de um bico pontiagudo, para romper a flor lilás e libertar a minha querida filhinha.

Tanta foi a compaixão despertada por Coaciaba que o Espírito criador e os anciãos da tribo atenderam, sem delongas, à sua súplica. Transformaram-na num belíssimo beija-flor, leve, ágil, que pousou imediatamente sobre a flor lilás. Sussurrou, com voz carregada de enternecimento:

- Filhinha, sou eu, sua mãe. Não se assuste. Fui transformada num beija-flor para vir libertá-la.

Com o bico pontiagudo, foi tirando com sumo cuidado, pétala por pétala, até abrir o coração da flor. Lá estava Guanambi, estendendo os bracinhos em direção da mãe. Purificadas, voaram alto, cada vez mais alto, até chegarem juntas ao céu.

Desde então entre indígenas amazônicos introduziu-se o seguinte costume: sempre que morre uma criança órfã, seu corpinho é coberto de flores lilases, como se estivesse dentro de uma grande flor, na certeza de que a mãe, na forma de um beija-flor, virá buscá-la para, abraçadas, voarem para o céu, onde estarão eternamente juntas e felizes.

 

BOFF, Leonardo. O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001. p. 106-108.


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.