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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS V: OS QUADRINHOS PROTAGONIZADOS POR MULHERES

De uma certa forma, as mulheres já tinham uma função proeminente nas chamadas family strips, em que concentravam as rédeas do poder e muitas vezes determinavam a maioria dos acontecimentos, como acontece em grande parte das famílias. Ao refletir a família norte-americana, essas tiras em quadrinhos freqüentemente colocavam a mulher em papel de destaque em relação ao homem, que muitas vezes ficava relegado ao papel de pagador das contas, humilde cumpridor de ordens ou títere indefeso frente às decisões da matrona do lar. É o que acontecia, por exemplo, com o pobre Pafúncio, sempre tiranizado pela esposa, a megera Marocas (em Bringind up Father, de George McManus), ou mesmo com o simpático Dagwood, dominado pela bela Blondie, com algemas muito mais agradáveis, durante mais de 70 anos de feliz matrimônio (na magistral e popular obra em quadrinhos criada originalmente por Chic Young, em 1930).

No entanto, em todas as séries de quadrinhos familiares, as mulheres, embora muitas vezes estejam no centro das narrativas, têm que freqüentemente dividir o estrelato com os demais membros do núcleo familiar, englobando desde o marido e filhos aos sogros, genros, cunhados, primos, parentes mais distantes e mesmo os animais de estimação. Elas só passariam mesmo a ocupar o centro de todos os desenvolvimentos temáticos naquelas histórias em quadrinhos genericamente denominadas como girl strips, que, em geral, buscavam narrar as tribulações de jovens representantes do sexo feminino na difícil luta pela sobrevivência material, enquanto esperavam pelo aparecimento de seu príncipe encantado. E, evidentemente, como a chegada de tão sonhado personagem com certeza as afastaria definitivamente de todas essas tribulações, este constitui sempre um vir-a-ser jamais concretizado, pois sua simples concretização acaba afetando a principal característica da história, deixando-se de ter a mulher como única protagonista e passando-se a incorporar nesse papel todo o núcleo familiar, como mencionado acima.

Essa mudança muitas vezes aconteceu, mas isso nem sempre se revelou tão satisfatório para os leitores - ou leitoras, pois se imagina que a grande maioria do público das girl strips era constituída por mulheres que se encontravam em situação semelhante às de suas heroínas, identificando-se com elas. Em muitas ocasiões, a mudança de status quo da protagonista levou ao desinteresse pela série e seu desaparecimento prematuro (embora existam exceções a essa regra, como aconteceu com a já mencionada Blondie).

As histórias em quadrinhos protagonizadas por mulheres surgiram durante a segunda década do século 20, quando estas passaram a obter colocações no mercado de trabalho e conquistaram o direito ao voto. Buscava-se, então, agregar ao universo das histórias em quadrinhos todo um novo segmento da sociedade contemporânea - o das mulheres emancipadas -, e possibilitar, assim, a ampliação do universo de leitores. Nesse sentido, o pontapé inicial no gênero parece ter sido dado pela criação de Cliff Sterrett, Polly and her Pals, inicialmente denominada Positive Polly, que começou a ser publicada em 4 de dezembro de 1912 em tiras diárias e, em páginas dominicais, em 28 de dezembro de 1913. Embora se constituindo em um espaço de transição entre dois gêneros, uma vez que ainda agregava elementos de um núcleo familiar tradicional, como os pais de Polly (os mencionados Pals do título, ou seja, companheiros...), a narrativa em geral se concentrou na garota, cujas atitudes liberais contrastavam com o conservadorismo de seus progenitores.

Logo, à liberal e progressista Polly Perkins juntaram-se diversas outras jovens dos quadrinhos, principalmente a partir da década de 20. A maioria delas aparecia ligada a temáticas que tanto naquela época como agora parecem interessar mais às mulheres em geral, como as questões envolvendo moda, aparência, romantismo, etc. Assim, os jornais rapidamente se encheram de personagens femininas que não se limitavam mais a ficar em casa cuidando do recanto familiar e carinhosamente preparando a janta para receber o marido quando este retornasse cansado do trabalho, mas que partiam para a luta diária em empregos apropriados para elas. Winnie Winkle, por exemplo, criação de Martin Michael Branner em 1920, era secretária, uma profissão que, em seu princípio também abraçou a personagem criada por Russ Westover em 1921, Tillie the Toiler, que depois passou a atuar como cronista da alta sociedade e agente de relações públicas. Já Dixie Dugan, outro popular personagem feminino das primeiras décadas do século 20, criada em 1929 por John H. Striebel e J. P. McEvoy, trabalhava no mundo dos espetáculos.

Por outro lado, a profissão de repórter foi a escolhida pela popular heroína Brenda Starr, de Dale Messick e Mollie Slott, cujas aventuras, além de apaixonantes narrativas quadrinizadas, também geraram seriados cinematográficos (1945) e filmes de longa metragem (1976, 1986 e 1989). Além dessa penetração em outras mídias, esta última protagonista também constituiu uma exceção no ambiente das girl strips iniciais, por mais dois motivos: em primeiro lugar, o nome masculino que oficialmente assinava a tira (Dale Messick) era apenas o pseudônimo utilizado por uma desenhista de histórias em quadrinhos, Delia Messick, como um recurso para escapar ao preconceito existente na indústria de quadrinhos da época; em segundo lugar, talvez exatamente por provir de duas mentes femininas, Brenda Starr, por sua postura radical e atirada, antecipou, desde seu aparecimento, em junho de 1940, várias das propostas do movimento feminista que eclodiria duas décadas depois.

De uma certa forma, embora não realizada por mãos femininas, também antecipava o movimento feminista outra famosa tira em quadrinhos da primeira metade do século 20 protagonizada por uma mulher, a melindrosa Betty Boop, uma cantora sensual e de olhos grandes, que usava mini-saia e cantava músicas melosas. Betty foi transposta para as histórias em quadrinhos em 1931, a partir das animações produzidas pelos estúdios Fleischer, de grande sucesso. Infelizmente, sua série durou pouco nos quadrinhos, devido à indignação dos grupos moralistas nos Estados Unidos, independente de suas características gráficas e de vanguarda de costumes.

Por outro lado, mais diretamente ligadas ao movimento feminista, talvez por suas raízes européias, estiveram as histórias em quadrinhos surgidas nas décadas de 60 e 70, que contribuíram em muito para a renovação do gênero. Hipererotizadas, assumindo uma postura ativa em relação ao mundo e à sua sexualidade, as mulheres que estrelavam essas histórias ampliaram o espaço de atuação feminina nas histórias em quadrinhos. Ainda que muitas vezes transpostas aos quadrinhos como simples objetos sexuais, elas personificavam as exigências do mundo feminino, que em nível mundial exigia o direito de se manifestar e decidir sobre sua própria vida, incluindo o uso de seus próprios corpos (no que se incluía o direito ao aborto e a livre manifestação de sua sexualidade). Entre os ícones dessa visão de mundo estão personagens como Barbarella (1962), de Jean Claude Forest; Valentina (1965), de Guido Crepax; e Jodelle (1966) e Pravda (1967), ambas de Guy Pellaert.

A partir da década de 60, várias histórias em quadrinhos tiveram protagonistas femininas, algumas delas no ambiente underground e outras em jornais de grande circulação. O ponto comum entre várias delas foi sua elaboração por artistas do sexo feminino, que utilizaram os quadrinhos não apenas como forma de manifestação artística, mas também como veículo para afirmação das inquietações sociais e psicológicas características de seu sexo. No espaço undergroung brilharam, entre outras, artistas como Roberta Gregory e Trina Robbins. A primeira foi responsável por Sheila and the Unicorn; a segunda, prolífica criadora e também incansável pesquisadora na área de quadrinhos, foi responsável, entre outras, por The Garden Party, uma interessante sátira às histórias femininas criadas pelos homens nas décadas anteriores.

No âmbito das girl strips produzidas para jornais, destaca-se, a partir de meados da década de 70, a jovem Cathy, original contribuição aos quadrinhos de Cathy Guisewite, abordando questões como hábitos sexuais, namoro e rituais românticos, relações entre pais e filhos e aparência pessoal, buscando sempre salientar os conflitos interiores da personagem, normalmente apresentando referências autobiográficas.

Outras histórias poderiam ser acrescentadas às acima mencionadas. À medida que mais mulheres se incorporaram ao mercado de trabalho de quadrinhos, a possibilidade de ter sua visão de mundo ali refletida aumentou exponencialmente. Por outro lado, a evolução social também possibilitou que muitos homens se aproximassem mais do universo de representação da mente feminina, criando personagens em que buscaram refletir de forma mais próxima a psique feminina. No Brasil, dois artistas que traçaram este caminho são Miguel Paiva, com seu personagem Radical Chic, uma homenagem à mulher adulta e liberada de uma classe média consumista, e Adão Iturrusgaray, com Aline, refletindo o mundo adolescente de uma jovem em busca de suas próprias respostas para a vida, que encara os costumes sexuais de uma forma bastante individualista.

De uma certa forma, as mulheres representadas nas girl strips representam uma evolução em relação aos outros gêneros de quadrinhos, o que pode ser visto de forma positiva em termos de representação de grupos sociais. Nesse sentido, elas vão muito mais longe do que aquelas mulheres que surgiram no ambiente das histórias em quadrinhos de aventura, objeto da nossa próxima coluna.


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.