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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS VI: OS QUADRINHOS DE AVENTURA

Como se sabe, as primeiras histórias em quadrinhos eram predominantemente humorísticas, com desenhos estilizados. As histórias em quadrinhos mais sérias, com o chamado "desenho realista", só foram aparecer nos quadrinhos quase trinta anos depois de sua popularização nos Estados Unidos. Nesse sentido, é muito comum ouvir comentários de que as histórias em quadrinhos de aventuras surgiram em 1929, com a publicação das aventuras de Tarzan, inicialmente desenhado por Harold Foster e depois por Burne Hogarth, e das de Buck Rogers, de Phyl Nolan e Dick Calkins.

Isto é verdadeiro apenas em parte: na realidade, esses autores trouxeram aos quadrinhos o desenho naturalista e não, propriamente, o gênero aventureiro em si. Já há alguns anos antes deles, o sabor da aventura havia invadido os quadrinhos, levando os leitores a acompanhar seus personagens prediletos em suas viagens a lugares bastante distantes e pitorescos, vendo-os entrar e sair das mais diferentes dificuldades e torcendo para que atingissem seus objetivos.

A diferença entre esses quadrinhos iniciais e os de Raymond, Nolan e Calkins está no fato de que, nos primeiros, a aventura surgia principalmente como elemento complementar ao humor; isto acontecia tanto no que dizia respeito à elaboração da trama, como no que se relacionava à forma mesma dos desenhos, que sempre ressaltavam os elementos caricaturais. Ainda que alguns autores tivessem um traço que beirava o realismo, principalmente em relação a paisagens, máquinas e mobiliário, essa característica passava muitas vezes despercebida aos leitores, envolta que estava na temática folhetinesca com roupagens humorísticas.

A continuidade narrativa não era uma característica dos quadrinhos em seu início como comunicação de massa. Nessa época, primeiras décadas do século 20, a continuidade era encontrada muito mais nos pulps - livros de distribuição massiva feitos a partir de papel de segunda categoria, vendidos a preços muito baixos e nos quais apareceram figuras emblemáticas da ficção popular como Doc Savage, O Sombra e Conan, entre outros -, do que propriamente nas histórias em quadrinhos. Estas, em geral, se limitavam a retratar episódios humorísticos, seguindo muitas vezes o modelo conhecido como a gag-a-day (uma piada por dia). Ainda assim, mesmo que de maneira um pouco tímida, a continuidade narrativa vai aparecer nas histórias dos grandes mestres dos quadrinhos, entre os quais se destaca Winsor McCay, que faz o pequeno Nemo, a cada semana, mergulhar no mundo dos sonhos exatamente no momento em que havia despertado na semana anterior, vivendo um sonho aparentemente interminável. A continuidade foi também explorada por George Herriman em Krazy Kat, George McManus em Bringing up Father; Frank King em Gasoline Alley e Harold Gray em Little Orphan Annie, apresentando longas narrativas nos episódios que desenhavam para a imprensa semanal ou diária. No entanto, em todos eles, a continuidade representava mais um elemento complementar que propriamente o centro da trama. Antes de qualquer coisa, as suas eram histórias em quadrinhos humorísticas que, mais que as emoções de medo ou ansiedade, buscavam despertar no leitor o riso fácil, o divertimento. A centralização temática no aspecto propriamente aventureiro da narrativa só começaria a ser delineada, ainda que timidamente a princípio, com o trabalho de Roy Crane em Washington Tubbs II.

Iniciada em 1924, a série de Crane tinha como protagonista um jovem de limitados atributos físicos mas com grandes pretensões pessoais, tanto em termos amorosos como de fortuna econômica. Ela se iniciou de forma pouco expressiva, pouco existindo, então, para apontá-la como a vanguarda de um novo gênero. Rapidamente, porém, o jovem Wash Tubbs iria se envolver em viagens ao torno do mundo e defrontar-se com mulheres estonteantes ou perigos de deixar em pé os cabelos dos leitores mais insensíveis. Durante cinco anos ele reinaria absoluto na série, até o aparecimento de um personagem que em pouco tempo lhe iria roubar o estrelato na série. Tratava-se do Captain Easy (Capitão César, no Brasil), um soldado da fortuna, aventureiro profissional que incorporava os principais atributos dos heróis dos pulps de aventura, como um físico avantajado, o cavalheirismo, a ousadia, o desapego aos bens materiais e a coragem. Com ele, a aventura passaria a reinar nos quadrinhos da imprensa jornalística.

No entanto, quando ocorreu o aparecimento de Easy na série de Crane, Tarzan e Buck Rogers já há alguns meses haviam começado a viver suas aventuras nos jornais norte-americanos, o que, de certa forma, permite retornar à afirmação de ter sido por meio deles que os quadrinhos de aventura se estabeleceram no meio. Com certeza, ambos representaram uma modificação irreversível nas temáticas que diariamente os leitores encontravam nas páginas de quadrinhos. Aos poucos, a predominância das figuras caricaturescas e estereotipadas foi diminuindo nos quadrinhos, passando a se tornar cada vez mais comum a proposição de personagens realistas. Deixava-se de lado as anedotas fechadas em si mesmas para se dar lugar ao gancho, o momento de suspense ao final da tira ou página dominical, elemento que visava garantir o retorno do leitor à mesma história, para descobrir o que aconteceu com seus personagens prediletos (uma fórmula que seria exaustivamente explorada nos seriados cinematográficos da Universal e nas novelas de rádio e televisão).

Nos quadrinhos, durante a década de 1930, a solidão do espaço, o mistério das selvas, a periculosidade da vida urbana assumiram a berlinda na atenção dos leitores e estes passaram a seguir as peripécias dos personagens como se eles mesmos fizessem parte da trama. Eles mergulharam no inconsciente coletivo dos leitores, respondendo a seus anseios mais recônditos, mesmo àqueles dos quais não se davam conta. Os leitores se identificavam com seus heróis de uma tal forma, que muitas vezes as tênues separações entre ficção e realidade eram destruídas, o personagem sendo encarado como uma pessoa real. Nesse sentido, são vários os episódios em que os leitores de quadrinhos reagiram emocionalmente a um fato narrado nos quadrinhos: por exemplo, à morte de uma personagem popular, muitos leitores chegavam a enviar ao autor cartas de condolência, lamentando a triste perda...

Descoberto o filão, ele só tendeu a crescer. Na esteira do ambiente exótico aberto por Tarzan vieram Terry and the Pirates, de Milton Caniff; Jungle Jim, de Alex Raymond e Prince Valiant, de Hal Foster, entre dezenas de outros, para não falar nos diversos imitadores do Homem-Macaco que as décadas seguintes iriam produzir. Nos quadrinhos que exploravam a ficção científica, dos quais Buck Rogers ocupou a vanguarda, ápices criativos seriam atingidos por Flash Gordon, de Alex Raymond ou Brick Bradford, de William Ritt e Clarence Gray, a Europa posteriormente se destacado como uma insaciável cultora do gênero.

A essas duas modalidades viria logo se juntar uma terceira, também ela diretamente oriunda dos pulps: a aventura policial. No cenário de gangsters e policiais pontifica a figura do desenhista norte-americano Chester Gould, com seu incorruptível detetive Dick Tracy, um autor que praticamente estabeleceu os parâmetros para esse tipo de história em quadrinhos. Além dele, podem ser também destacados nessa área Alex Raymond, com Secret Agent X-9 e Rip Kirby; Lyman Anderson, com Inspector Wade; Will Gould, com Red Barry; Alfred Andriola com Charlie Chan e Will Eisner, com The Spirit, entre outros.

A partir dessas três, outras modalidades de quadrinhos de aventura passaram a surgir, numa variedade difícil de ser rapidamente descrita, englobando desde o western à espada e bruxaria, todas elas trazendo sempre uma nova vitalidade ao gênero e garantindo aos quadrinhos a energia necessária para atravessar o século 20 como um meio de comunicação de grande popularidade e todas elas certamente merecedoras de uma atenção especial.

Ainda hoje, os quadrinhos continuam a ser cultivados no mundo inteiro, pois respondem à necessidade de evasão e catarse do ser humano. No Brasil, autores como Jayme Cortez (Sérgio do Amazonas), Flávio Colin (O Anjo), Getúlio Delphin (Aba Larga) e muitos outros a eles se dedicaram, realizando um ótimo trabalho. Na Europa, personagens como Tintin, de Hergé, Blake e Mortimer, de Jacobs, e Tenente Blueberry, de Jean Giraud nada ficam a dever a seus pares norte-americanos.

Mas nas histórias em quadrinhos tudo é dinâmico, movimento. No final da década de 30, o gênero de aventuras seria ampliado consideravelmente com o aparecimento, nas revistas periódicas - também conhecidas como comic books -, de um herói voador com poderes fabulosos, que iria transformar totalmente a característica dos quadrinhos como meio de comunicação de massa. Na esteira do sucesso deste primeiro homem voador, vários outros surgiram, introduzindo o gênero mais característico da indústria de produção de quadrinhos, o dos super-heróis, talvez o grande responsável pela penetração que o meio obteve na sociedade contemporânea. Mas essa já é uma outra história, para outra ocasião....


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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.