CINEMA


RECALL 69

Hércules para os gregos é sinônimo de proteção e justiça, aquele que ficou conhecido por executar “os 12 trabalhos”, tarefas arriscadas necessárias para sua punição, para expiar sua culpa. É uma figura histórica, reconhecido por sua bravura militar, aclamado como herói, o que o identificou com o Gênio do homem. "Por Hércules!" é uma expressão usada para evocar o homem em sua bravura.

 

Para os brasileiros, o herói saiu das páginas da mitologia, das conquistas gregas, para a realidade militar brasileira, para a história da aviação brasileira, pois que, aqui, o seu nome serviu para batizar um avião militar: o Hércules 56.

 

Eis que esquecido no tempo, o nosso Hércules é revivido para homenagear uma ação perpetrada no ano de 1969, e que se pretendeu gloriosa. É isto que conta o filme Hércules 56 (Bra, 2005). No entanto, o fato, na verdade recontado, pois que outros documentos já o expuseram, não se pronunciou glorioso.

 

O acontecimento mais marcante do período de exceção brasileiro, o seqüestro do embaixador Charles Elbrinck, ocorrido no ano de 1969, um ano esquadrinhado por vários pesquisadores, e em várias mídias, incontestavelmente rico como memória já cristalizada para os estudiosos da política brasileira, é o objeto de análise do documentário assinado por Silvio Da-Rin.

 

O filme é construído basicamente em dois cenários: o primeiro, uma sala, aparentemente do DOPS, ou reconstituição de tal aparelho repressivo, onde ex-dirigentes das facções políticas MR-8 e Ação Libertadora Nacional (ALN) se reúnem para fazer uma avaliação da ação; o segundo, as várias celas das prisões militares, considerando-se o Hércules 56 como uma extensão dessas prisões.

 

O mais contundente nessa avaliação é que deixa claro duas coisas: uma, a ação foi impensada, e sem planejamento, ou seja, nasceu por acaso e aconteceu como improviso; a outra, em conseqüência da primeira, foi um erro. Na seqüência dessa confissão de culpa política, adicionem-se os depoimentos dos remanescentes do grupo exilado. É constrangedor a forma como olham o passado, com certo desdém. Com raríssimas exceções, uma delas é o sergipano Agonalto Pacheco, falecido em abril de 2007, que não abdicou da idéia da luta armada, e reafirma no filme a sua convicção de que fez o certo. Os seus ex-companheiros, muitos deles hoje no poder desprezam a ação (que terminou décadas depois revelando ter sido útil para hoje estarem no poder).

 

Observa-se um ar grave nas fisionomias dos exilados na famosa foto antes de adentrarem ao avião. Apenas um dos presos políticos, a caminho do exílio, demonstra uma fisionomia descontraída, mais para a satisfação que para a gravidade. É difícil não vislumbrar o sorriso naquele que justamente viria a ser o mais famoso deles, uma eminência dentro do partido, chegando a ser ministro. Chega a ser deboche; evidente, não dá para entender se o sorriso prendido é para os militares que se viriam forçados a solta-lo, ou para comemorar a libertação, que viria ser muito útil proximamente.

 

Libertação destes que custou caro a alguns dos mentores do seqüestro que aqui permaneceram. E é justamente na comemoração efusivamente demonstrada pelos exilados ao desembarcarem no México, mostrada no documentário, que reside a questão nodal do processo político. Uma vez fora do Brasil e fora do inferno que eram os presídios políticos, e fora do alcance das mídias imediatas, então inexistentes, alguns chegaram a comemorar de forma exagerada o envio para o exílio. Algumas cenas do filme falam por si só. Naquele momento, e em outros seguintes, parece que a solidariedade política, para os que aqui ficaram ainda sendo torturados e perseguidos, deixou de existir. Aquilo deu nisso.

 

O documentário de Silvio Da-Rin, trouxe para reflexão a questão da ação do seqüestro, um marco histórico na luta contra o regime de exceção que enlutou o Brasil. Fica patente, nas diversas falas que o ato foi um equívoco; neste sentido o documentário oportuniza a chamada do avião para um recall, ou melhor, chama o episódio do seqüestro para o recall.

 

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Hércules 56 (Brasil, 2007). Direção de Sílvio Da-Rin. Roteiro: Sílvio Da-Rin. Fotografia: Jacques Cheuiche. Documentário. 94 minutos.

 


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo