PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: DA IMPOSTURA DO MAL: O PODER DE PUNIR O TITULAR DO DIREITO DE PUNIR

Continuando a reflexão iniciada com o texto da coluna do mês de outubro passado, quero reportar-me ao fato notório de que a grande maioria das bibliotecas contratantes de bibliotecários constitui pertencimento coletivo ou é espaço onde são ofertados serviços e acervo para usufruto público. Há, por evidente, uma pequena parcela de bibliotecas pessoais ou de pertencimento particular (a biblioteca especializada da empresa, por exemplo) para as quais seus proprietários contratam os préstimos profissionais de bibliotecários. Para estas últimas me parece correto, que seus proprietários orientem aos bibliotecários que contrataram para que, em caso de abertura da coleção para uso por terceiros, atentem para exigir dos usuários o cumprimento de certos requisitos de uso do respectivo acervo.

 

Esse mesmo princípio, em tese, deveria ser também empregado para se ajustar as relações de uso dos acervos das bibliotecas públicas, das bibliotecas de escolas públicas e privadas, das bibliotecas de universidades públicas e privadas. Só que, nestes casos, a fonte da decisão, ou o equivalente do posto de proprietário está associado ao respectivo coletivo de usuários. É neste caso, em que mais comumente ocorre a invasão pelo bibliotecário do espaço de deliberação do proprietário. Este proprietário que pode ser caracterizado pelo contribuinte submetido ao regime fiscal de um Estado, que constitui, portanto a fonte de financiamento de todas as atividades deste Estado ou que pode ser caracterizado pelo cliente de uma escola ou universidade, tanto públicas quanto privadas, sem o qual tais organizações não existiriam e não obteriam daquele cliente os recursos financeiros, direta ou indiretamente, necessários ao seu funcionamento como contraprestação de serviços e como espaço de atuação profissional de bibliotecários, por exemplo.

 

É nessas circunstâncias que o titular do direito de punir o usuário por mau uso da coleção é esse coletivo. Não é apenas o dono formal da empresa, ou diretor, ou reitor do estabelecimento, mas toda a comunidade, ainda que representacionalmente por via dos colegiados compostos por parcelas ou proporções justas e equilibradas das categorias envolvidas interna (docentes, estudantes - e pais, funcionários) e externamente (sócios proprietários, sindicatos, entidades profissionais, etc.). Então, é nesse âmbito, como item de exaustiva discussão, que devem ser deliberadas as autorizações a serem divulgadas através de instrumentos formais apropriados (Resoluções, Portarias, etc.) para que os bibliotecários executivos das bibliotecas implantem no conjunto de suas atividades os mecanismos que, a critério desse coletivo, garantirão e preservarão o sentimento de que tais coleções são pertencimento de todos aqueles que nessas organizações, também nessa oportunidade foram instituídos como usuários.

 

Na grande maioria dos casos, essa providência mínima de uma civilidade moderna, não é posta em prática e o bibliotecário tenta assumir – como se fosse uma atividade técnica – essa ação punitiva, achando-a normalíssima e legítima. Essa usurpação do poder de punir o titular do direito de punir só pode ter origem em uma má formação acadêmica  em conhecimento social que, em geral, é dada ao bibliotecário brasileiro. Não quero com isso afirmar que disciplinas sobre a sociedade, a história, a psicologia, a economia, a filosofia moral, a didática inexistam em todos os currículos de todos os cursos de bacharelado em Biblioteconomia ofertados no país. O que parece verdadeiro é que os conteúdos dessas disciplinas, quando são apresentados, assumem duas características: 1 – a de perfumaria, do ponto de vista dos alunos; ou de “enchimento de lingüiça”, para esse mesmo público; e 2 – a de conteúdos “soft”, leve, sem rigor, em contraste com os conteúdos “duros”, as técnicas, para certos professores, de alguns desses cursos de Biblioteconomia. Esse pacto de mediocridade, como alguns teóricos da educação assim designam essas atitudes, certamente contribui para dois outros aspectos, que se verificam na internalização de valores nos futuros bibliotecários e que geram fortes impactos em sua forma de agir, quando já se encontram atuando profissionalmente: 1 – em seu momento de aprendizado visando à futura habilitação como bibliotecários, são tratados como usuários-cadastro, sem personalidade social e humana; 2 – quando iniciam e prosseguem sua atuação profissional, por via de regra, reproduzem sobre os usuários a quem atendem os mesmos procedimentos dos quais foram vítimas, pois foram assim tratados e as disciplinas ofertadas em seus cursos de graduação, que lhes dariam a competência crítica, foram tomadas meramente como “enchimento de lingüiças”.

 

O cenário acima traçado, em linhas muito gerais, aponta para a reprodutibilidade de atitudes rotineiras que, pelo modo como foram urdidas, levam à construção de bibliotecários alienados do funcionamento moralmente desejável de uma sociedade humana sadia.

 

Assim, como vítimas que foram de um processo que lhes antecedeu, orientado para a consolidação da impostura do mal, nem se dão conta, ou quando se dão − buscam justificá-lo − da prática injusta, antidemocrática, inumana, ilegítima e, por tudo isso, antiética de exercer o poder de punir o titular do direito de punir.


   363 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB