CINEMA


DEUS NÃO É BRASILEIRO

Acostumamo-nos a ouvir um bordão, que tanto se aplica por esta terra tupiniquim: Deus é brasileiro. Usa-se a expressão para demonstrar a benevolência com que supostamente Deus distingue o país, seja pela calmaria climática (livre de furações, terremotos, maremotos e outros acidentes), seja pela paciência cidadã com os destemperos governamentais (assiste-se calma e passivamente a experiências políticas sem rebeldias, nem contratempos).

Uso o trocadilho de Deus é brasileiro para falar sobre o filme Cidade de Deus. Ao assistir ao filme, logo no seu lançamento, comentei com amigos ao sair da sala de exibição que era o filme do Oscar. Não havia adjetivos para enaltecê-lo.

Logo depois fui assistir ao Fale com ela. Saí do cinema com a sensação de que o Brasil tinha perdido o Oscar para a Espanha, tamanha era a diferença de tratamento com o sofrimento humano. Um pela violência, outro pela paixão. O primeiro era forte, o segundo doce. O primeiro mexia com a vida com amargura, o segundo com o amor. A minha sensação era a de que o filme brasileiro dera azar, ao ter como concorrente o Fale com ela. O que viria a ser demonstrado já na primeira disputa, com o filme espanhol ganhando o Globo de Ouro.

Mas como Deus é brasileiro ao sair a relação dos 54 candidatos indicados por seus países não constava o desafeto brasileiro. Melhor para o Brasil, que a despeito de, ridiculamente, vestir-se de um nacionalismo exacerbado para assistir a entrega de um prêmio, a ponto de simbolizar "a pátria de chuteiras", sem enxergar a plasticidade do A vida é bela, vive outro momento com real condição de ganhar o Oscar. Merecidamente.

Cidade de Deus, é provavelmente o grande filme brasileiro da safra pós-Collor. O quatrilho, na minha simplória opinião, o melhor de todos até então, não fez carreira internacional. Outros vieram na esteira, e lograram êxito. Central do Brasil fez sucesso, mas Cidade de Deus faz sucesso e estaria fadado ao Oscar.

Um filme à imagem e semelhança do Brasil lá fora. Belo e violento. Um país enigmático que mistura sedução e agressividade. Em Cidade de Deus a palavra-chave é a segunda. Muito embora, a violência fique restrita ao núcleo populacional focado e aos seus ocupantes. Ela (a violência) não invade o asfalto de forma ostensiva; é generoso o trato dado pelo diretor aos cidadãos tocados por Deus e que não vivem naquela Cidade. Pode-se dizer que esse é o grande mérito do filme: mostrar uma favela por dentro. Mostra a rotina diabólica de membros de uma comunidade esquecida pelos poderes públicos; e que a despeito de ter pessoas de bem lá morando, são tratadas como criaturas que o governo esqueceu. Afirmo: esse é o mérito do filme. E salvamo-nos, todos da classe média, os abençoados por Deus, por não morarmos naquela Cidade.

A violência de Cidade de Deus é a violência da indigência, da indulgência, da miséria que faz suas próprias vítimas. Destroem-se entre si, numa beligerância que beira o imperialismo grupal. A tolerância zero é praticada da forma mais radical. Estabelece-se o paralelo com a sociedade formal, apenas diferenciada pelos instrumentos usados: um é a ilegalidade declarada, o outro a complacência da legalidade.

Em Cidade de Deus não existe meio termo, só a violência. As relações afetivas (?) são difíceis como a própria realidade da Cidade. A burguesia, contumaz usuária e base de sustentação do crime de tráfico, é poupada no filme, salvo um ou outro personagem, sem no entanto estabelecer o conflito social favela-asfalto. O conflito social é a própria Cidade. A sensação ao final do filme é que não temos nada a ver com isso, o problema é de lá, da favela. Houvesse cenas chocantes entre a favela e a cidade, resultante dessa tragédia urbana-social denominada droga, haveria comoção. Não há este sentimento em Cidade de Deus. Há sim, a convicção de que é um filme violento.

Reflexões sociais à parte, afirmo que Cidade de Deus é o mais denso filme dos últimos tempos feitos neste País. A narrativa é um dos seus pontos fortes. Através dela, o diretor soube prender a atenção do espectador. É imperdível. Assista independente do Oscar.

Há um fato a considerar que é o público que já o assistiu. Segundo dados de bilheterias de dezembro no Brasil, 3.073.487 pessoas já tinham assistido ao filme (Revista de Cinema, v.3, n.33, jan.2003) em 17 semanas de exibições. Números que o colocam como o quarto filme mais visto no período só perdendo para mega produções como Homem Aranha, Scooby-Doo e Harry Potter e a câmara secreta. Dados que por si só conferem maioridade a Cidade de Deus.


Entretanto, mesmo sendo um dos mais cotados da relação dos 54 indicados para disputar o título de melhor filme estrangeiro, o maior prêmio do cinema mundial na categoria, ao ser anunciada a relação dos cinco candidatos à estatueta Cidade não estava lá. E cá por esta terra tupiniquim já corre a boca miúda que Deus não é brasileiro.

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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo