CINEMA


A PAIXÃO EM ALMODÓVAR

Paixão, substantivo feminino, que encerra "sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão" conforme Aurélio Ferreira. Mais: paixão é desgosto, mágoa, sofrimento, drama, obsessão, vício. Mas também é arrebatamento, é afeto, é amor ardente, é sensibilidade, é emoção, é entusiasmo. Paixão é composição dramática tendo como base o cotidiano.

Marcel Proust ao referir-se à paixão diz que "as pessoas que não estão apaixonadas são incapazes de entender como um homem inteligente pode sofrer por causa de uma simples mulher". Já Bernard Shaw, de forma venenosa, diz que "quando duas pessoas estão sob a influência da mais violenta, insana, enganosa e passageira das paixões, são obrigadas a jurar que continuarão naquele estado excitado, anormal e tresloucado até que a morte as separe".

Esse é o universo de Almodóvar. Ou melhor esse é o universo onírico do maior cineasta da Espanha. É o tema recorrente da sua filmografia. O seu último filme, ainda em cartaz em algumas salas, Fale com ela, é um elogio à paixão. Uma paixão que brilha a luz dos olhos de quem a tem. O filme é belo como o amor, é explosivo como a paixão. Tem sido assim, sempre, com Almodóvar. Busca, principalmente, no universo feminino a matéria prima para suas obras-primas, pois quase sempre os filmes deste cineasta são grandiosos.

No filme aqui comentado ele troca a paixão feminina pela paixão masculina. E o que há de diferente? Apenas a perspectiva do universo, uma vez que o homem não é criado com espírito de afetividade, de atenções desmesuradas, de considerações desmedidas, como são as mulheres. Repito: muda apenas a perspectiva do universo, pois a perspectiva do sentimento permanece inalterado. As mulheres devem sair de Fale com ela vingadas. É o homem que ali diuturnamente nutre a esperança de que um dia a sua paixão seja correspondida, alterando assim a cultura estabelecida.

Cuidar da mulher amada, assim como quem cuida de si mesmo; fazer-se sempre presente no exercício de uma profissão aprendida só para poder estar perto, sempre; dobrar serviço para estar muito mais presente. Isso é amor dentro da mais ilimitada paixão. Ou paixão dentro do mais ilimitado amor? Não importa, isso é Almodóvar. Complexo como seus personagens.

Amor e paixão confundem-se no simbólico (ou no imaginário) de quem o vive. É como diz a canção: "Meu amor se você for embora o que será de mim?". Na paixão, ou no amor, de Fale com ela não há solução para a tristeza fora da relação que se experimenta. Os momentos felizes do personagem principal são os dedicados a uma relação inválida, vegetativa, que simbolicamente não tem passado, nem futuro; assim como, normalmente, são as paixões.

Uma forma lírica, e bela, de demonstrar a paixão, ou o amor, é o que me conta Anaid, amiga inconfessável, que a despeito de não gostar de café, aproximou-se de uma cafeteria e solicitou dois cafés. Tomou um e deixou o outro intocado. Diante da perplexidade da garçonete explicou-lhe que o café intocado era para o seu amor, ausente de sua vida. Era a forma que ela tinha encontrado de estar próxima de alguém que ela amava, e que tanto gostava de café.

É comum ver garotas em estádios de futebol gritando por seus ídolos. Juram que os amam. Confusão entre amor e idolatria. Esse é o juramento banalizado, algo fugaz, estético: junta-se o belo com a marca. Como me disse Anaid: só homens burros gostam de uma mulher puramente por sua beleza. Deve ser por isso que as mulheres de Almodóvar normalmente não são belas esteticamente. Mas normalmente são inteligentes.

Amor e paixão, tema recorrente de Almodóvar, têm ganhado jogo de palavras na literatura. Para Camões "Amor é fogo que arde sem se ver/.../é querer estar preso por vontade/.../Mas como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade/Se tão contrário a si é o mesmo Amor?". Esse soneto é a representação de tudo que ocorre com o personagem principal do filme aqui analisado. Prova que amor e paixão, mais do que temas recorrentes coabitam o imaginário dos homens do cinema e da literatura, e materializam-se no cotidiano do homem comum.

Fale com ela ganhou o Oscar de melhor roteiro original. Foi eleito pela crítica e pelo público paulistano como o melhor filme estrangeiro do ano, assim como Almodóvar foi eleito o melhor diretor estrangeiro.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo