O MODO SCHMIDT DE VIVER
Schmidt (Jack Nicholson), personagem principal, acorda às 7 horas em ponto. Sai do escritório da seguradora em que trabalha às 17 horas em ponto, registradas no relógio de parede. Também urina sentado, religiosamente (para satisfazer a mulher, Helen). Fez da sua pontualidade (americana?) e benevolência o seu modo de viver. As seqüências atípicas no cinema hollywoodiano mostram o seu último dia de trabalho rumo a uma aposentadoria tranqüila (leia-se bem remunerada sem as pressões e chantagem de previdência imposta aos trabalhadores brasileiros). É também o início de uma busca interior fazendo confidência a um desconhecido de uma vida aniquilada pela complacência na relação matrimonial.
As Confissões de Schmidt é a contraposição de Fale com ela. Se em Almodóvar sobra paixão, esta falta em Alexander (diretor de Schmidt). É a forma que cada um encontra de formatar personagens, a partir de visões construídas ou desconstruídas. Refiro-me a Almodóvar em relação à Fale com ela objeto do texto passado publicado aqui nesta coluna, a que nos reportamos ao universo passional do cineasta espanhol. No caso de Alexander não há um universo definido, até porque não conheço a filmografia do diretor. Faço então um recorte para o universo do personagem Schmidt, que ao meu ver encarna um modelo passional, também.
Um modelo passional não do anímico, mas do aniquilamento. Schmidt anula-se por amor, ou por paixão, não está evidente. Mas não o é pela inexistência de um deles, revelado na cena de ciúmes, já viúvo, quando descobre que a mulher o traiu com seu melhor amigo. Ou anula-se simplesmente pelo ato contínuo de ser companheiro em um casamento debilitado pelo tempo. Uma decisão pessoal, irrevogável, que deve ser levada a cabo até os últimos dias. Não é uma decisão isolada. Um dos maiores clássicos da literatura mundial, e um dos mais belos romances da humanidade, O amor nos tempos do cólera, revela uma mesma decisão, só que do ângulo do olhar da visão feminina a uma investida masculina. Guardadas as proporções que não cabem na comparação, existe a decisão de levar a cabo a relação, eternizando enquanto dure e negando a famosa assertiva "nada é para sempre".
A relação de Schmidt fundamenta-se no pressuposto de que nem tudo o que é vivenciado e contrariado é motivo de discórdia, e para o personagem ouvir o que não quer, fazer o que não deseja e não falar o que pretende são critérios estabelecidos.
As Confissões de Schmidt é um filme americano que não incorpora o modo hollywoodiano de fazer cinema. É um filme com a áurea de cinema europeu. Conflitos pessoais e familiares norteiam o argumento, que gira em torno de um homem que passa a vida entre o trabalho e sua família. Ou melhor entre o trabalho e o trabalho. A família vai ficando perdida entre este caminho. Seja pela forma da relação conduzida de forma impositiva pela mulher, seja na forma da relação perdida com a filha, que só procura reencontrar depois da morte da mulher.
Na procura de uma nova vida a negação à perspectiva de um novo relacionamento encarnado na personagem da impagável Kathy Bates, que proporciona uma das mais formidáveis cenas do cinema americano: nua em pelo, em uma banheira a céu aberto, tentando seduzir Schmidt. È um filme para ver e refletir o modo Schmidt de viver. Antes da aposentadoria, se possível.
Pós-escrito - Além de as Confissões de Schmidt, outro bom filme americano em cartaz é O americano tranqüilo. Para os cinéfilos apresento aqui uma relação de filmes de excepcional qualidade em exibição em circuito comercial. A depender da cidade em que o leitor esteja ainda pode assistir a algum deles: Minha noite com ela (França), Sexo por compaixão (México), Bicicletas de Pequim (China), Kamchatka (Argentina), Nunca aos domingos (Grécia), A noite americana (França), O filho da noiva (Argentino), Conto de Verão (França), Baran (Irã). Alguns serão encontrados em vídeo, já que se trata de relançamentos.