CINEMA


PARAÍSO E PRECONCEITO

A imagem do paraíso, à semelhança do Éden, jardim da perfeição e da utopia, vendida pela Bíblia, trouxe como valor agregado o preconceito. Com o tempo, o paraíso tornou-se longe e o preconceito foi aprimorado pela discórdia humana. Que me perdoem os religiosos (de qualquer credo) mas o preconceito é bíblico. Foi instigado pela punição ao que se considerou o primeiro pecado, e cultivado pelas religiões.

O primeiro preconceito bíblico foi o da criação: do homem fez-se a mulher. O que deu ao homem, o direito, formatado na trajetória da humanidade, ao uso e abuso da mulher, além de em qualquer situação transferir o ônus do pecado a esta. É o que mostra a trama homossexual de Longe do paraíso, filme em cartaz no circuito comercial.

O segundo preconceito da Bíblia foi o da condenação: o ato da mordida na maçã. O que sentenciou que sexo não autorizado é pecado, e que homens e mulheres (gênero) devem sofrer se deixarem que os desejos não permitidos aflorem à pele. É o que mostra a trama heterossexual de Longe do paraíso, filme que em algumas cidades fez parte do circuito alternativo. A explicação para tal decisão: a fita é de dupla nacionalidade, dividida entre os Estados Unidos e a França, o que confere, de verdade, um certo clima de filme A.

Dirigido por Tood Haynes, a produção franco-americana do ano de 2002, revela o que acontece nos bastidores de um casamento abalado por uma revelação devastadora: o homossexualismo de um dos cônjuges, no caso o marido. O casal, até então tido, havido, visto e respeitado pela comunidade local como um par perfeito, um modelo de casamento, vive um conflito existencial que tem na opção sexual de uma pessoa o seu epicentro. Ainda que, do sofrimento pessoal, a mulher extraia forças para não deixar que, de forma imediata, a vida ideal de uma mulher casada desabe.

O filme aborda três preconceitos em uma mesma trama de ordem sexual: contra os casais homossexuais, contra a mulher infiel e contra os negros, que se aproximam dos brancos mais do que o permitido. Mas um ato de contrição no contexto fílmico deixa entrevisto que o homossexualismo é atacado muito mais pela consciência do convertido do que pelo fato. O preconceito maior que o filme deixa antever é contra a mulher, que mesmo vivendo o drama, segredado domesticamente, de saber ser seu marido homossexual, vê-se enredada em uma trama que a envolve em um caso fora do casamento. Só isto serve para condená-la, e conseqüentemente absolver o homem. O argumento não traz ao conhecimento público a traição do homem casado com outro homem, mas sim a traição da mulher casada com outro homem.

É como se ao homem tudo fosse permitido, mesmo o maior dos pecados contra a identidade masculina, que é a opção sexual homossexual; enquanto que à mulher mesmo na heterossexualidade não lhe é permitido um relacionamento amoroso fora do casamento. Mas, não bastasse isso, em um filme em que o preconceito é o argumento chave, soma-se aos dois já citados um que tem resistido ao tempo, embora que venham acontecendo avanços: o racial.

Imagine-se, uma época - o filme é ambientado na década de 50, dos anos mil e novecentos - em que uma mulher aceita o homossexualismo do marido, um executivo bem sucedido, apaixona-se por um outro homem, jardineiro e dono de loja de plantas, e que tenta, disfarçando a sua paixão, tornar-se amigo e conviver com um homem negro. É subversão da ordem na pele feminina para paraíso nenhum aceitar.

Ao espectador resta experimentar algumas doses desse último preconceito em cenas de racismo explícito: como homens brancos enxotarem um homem negro de uma rua pública que serve para passantes brancos; ou meninos brancos apedrejarem uma menina negra inconformados com a presença desta. São cenas que demonstram covardia e insensatez (insanidade soaria como perdão bíblico, já que não sabiam o que faziam), que guardam paralelo num Brasil 2000, com brancos abastados incendiando índios.

A mulher (Julianne Moore), personagem central desta trama longe do paraíso e perto do preconceito, alimenta paixões, primeiro pelo marido (Dennis Quaid), mesmo sabendo-o homossexual, depois pelo homem negro (Dennis Haysbert), que se dividem entre fulgorosas e fugazes, entre o perigo iminente e a inalcançável fronteira do futuro. Mas, assim são as paixões.

P.S. - Sobre paixão recomendo alguns filmes em cartaz no circuito comercial que abordam o tema: dois franceses, de Eric Rohmer, da série Contos da Estações: 'Conto de outono' e 'Conto de inverno', além do também francês 'A inglesa e o duque', ainda de Eric Rohmer; e o espanhol 'Anita não perde a chance', de Ventura Pons.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo