CINEMA


UM BRASIL APAIXONADO

Agosto é o mês de aniversário da morte de Glauber Rocha, um brasileiro dedicado ao fazer cinema do Brasil. Os seus filmes criaram a marca de um diretor apaixonado e a representação de um país apaixonante. Foram tempos diferentes.

Cacá Diegues é outro nome dessa paixão, embora que numa outra dimensão. E em Deus é brasileiro, revisita com parcimônia Bye bye Brasil. Os ingredientes são os mesmos: um caminhão, personagens centrais em número menor do que os dedos de uma mão, a aventura do desbravamento em busca de algo, um passeio pelo nordeste e uma visita ao norte.

De novidade a ida ao Tocantins, o mais novo Estado brasileiro. Decerto seria tarefa quase impossível encontrar um santo por lá, mesmo nesse tempo de distribuição de comida (nem tão farta assim). Fato que no filme é criticado como a volta do comunismo, essa coisa de dar comida ao povo. Atentem, no entanto, que o filme foi realizado antes da eleição, portanto a crítica conduzida no bojo do filme não tem nenhuma conexão com o Fome Zero; antes que apareçam os ofendidos.

O forró continua presente, mas como o personagem coadjuvante não é músico, introduzem-se dois grupos muito festejados cá por estas paragens nordestinas: o Caçuá e O Cordel do Fogo Encantado. O mar é substituído pelo Rio São Francisco, o que pode ser considerado como politicamente correto nesses dias de transposição e revitalização (ou uma coisa ou outra, ou nenhuma das duas, ou ainda dependendo se antes ou depois da eleição). O circo mambembe que perdia público pelo crescimento do circo eletrônico (TV) é adaptado com um clone da Xuxa, como um anjo de igreja que recolhe dízimos.

Mas porque estou escrevendo sobre isso já que o filme não está mais em cartaz? Muito simples, estou buscando uma forma de falar na paixão no cinema brasileiro, pois Diegues consegue fazer filmes pulsantes. Como Glauber, um cineasta apaixonando fazendo um cinema apaixonante. Mas os tempos não são os mesmos, e outros cineastas têm colaborado com imagens de paixão. Não a paixão pelo país, com filmes comprometidos politicamente; mas a paixão dos humanos dentro de um país convulsionado pela violência. Assim, filma-se uma outra paixão, aquela arrebatadora e jamais entendida: a bandida. O fato é que filmes brasileiros, por bem ou por mau, conseguem mostrar que o cinema brasileiro tem uma veia cinematográfica pulsante como a paixão. Mesmo que politicamente incorreta.

Aí entram: Lisbela e o prisioneiro e O homem que copiava, só para citar dois em cartaz. A relação é grande e inclui Cidade de Deus, Carandiru e Amarelo Manga, entre outros. Mas quero deter-me sobre os dois primeiros que guardam semelhança nas tramas das paixões bandidas ali exercidas.

O que dizer de uma donzela recatada, amante do cinema e que faz deste o espelho da sua vida mocinha, que se apaixona por um rabo-de-saia errante? E o que dizer de um pacato cidadão, pobre como a maioria dos brasileiros, que se torna bandido para conquistar uma jovem que parece distante do seu mundo? Essas são as paixões destes dois filmes tão díspares e tão parecidos. Diferentes, pois apresentam gêneros contrários: comédia e drama, sem deixar de inserir uma na outra, uma marca nacional. Iguais, pois apresentam paixões arrebatadoras.

Com enfoques diferentes, os dois filmes exibem um estilo: o amor bandido, a interação paixão e crime, ou a paixão entre homens e mulheres associadas ao crime ou à vida marginal. Não se trata da paixão clássica, mas da paixão marginal de um cinema que se pretendeu revolucionário.

Ninguém duvida que a paixão é um estado de angústia; é a apropriação do corpo e da alma, um do outro. O difícil é reconhecer o processo e as conseqüências que ela envolve. No caso dos amores bandidos mostrados nos filmes aqui citados as estratégias traçadas são opostas. Enquanto em O homem que copiava existe uma contextualização do planejamento, um crescente consciencioso que busca a liberação da pobreza e da exclusão social e familiar, através da junção dos apaixonados, mesmo que o preço seja o crime, em Lisbela e o prisioneiro o processo de aproximação entre os apaixonados não segue um padrão marginal. Os filmes mostram posturas contrárias: no primeiro os apaixonados são pobres e tentam a riqueza como perspectiva de uma vida feliz; no segundo a fortuna é o que menos importa, o que conta mesmo é o amor.

Se no caso de Lisbela, no final, aflora o romance trágico de Shakespeare, só não consumado pelo recurso de refilmagem da mesma cena; no caso de O homem o final é hollywoodiano: tomando-se como ângulo de visão a imagem do Cristo, a maravilha da cidade do Rio aos pés de um casal que se dá bem no crime. (Cena que se repete em O caminho das nuvens, mas em sentido inverso - o Rio de Janeiro, a partir do Cristo Redentor, aos pés de uma família que prima pela honestidade e continua pobre). O fato em si: a paixão que se persegue como objeto maior. Lisbela, bem criada, interessada por um errante, sem eira, nem beira; o fotocopiador, sem eira, nem beira, perdido por uma semelhante. Os filmes discutem os amores possíveis, mas com enfoques diferentes. Fatores que pouco importam e são descartados por quem está apaixonado. Seja na ficção, seja na realidade.

Verdade que a paixão que se discute nos filmes brasileiros não tem a galhardia dos filmes franceses, nem dos italianos, mas tem um ingrediente bem brasileiro e por isso mesmo tão diferente: a marginalidade. Vale a pena ver toda essa safra de filmes brasileiros pela intensidade de suas paixões, com toda uma trama urdida na marginalidade. Esse é o toque de Midas do cinema brasileiro.


   394 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo