LITERATURA INFANTOJUVENIL


FIOS, AGULHAS E NÓS

In memorian do meu tio Pascoal

 

 

Desde a década de 80 faço companhia para um galo (ou será que ele é que faz companhia pra mim?)

 

Só que não é um galo qualquer, é um galo muito especial. Não tem nome, mas tem dono. Um dono de uma excelente linhagem.

 

O dono chama-se João Cabral de Melo Neto. Ele aninhou seu galo no poema “Tecendo a manhã”.

 

Já perdi a conta de quantas vezes fiz a leitura pública desse poema. E nem sei quais as formas que utilizei para isso. Fiz gravação com a voz do meu amigo (Naudemar), usei na prova de um concurso público, inclui na minha tese, levei para uma roda de poesia utilizando um novelo de barbante e nele as pessoas iam se emaranhando na medida em que iam falando.

 

Antes que eu emaranhe as minhas ideias quero dizer que falei desse poema só para começar uma conversa a respeito de três livros infantis que faz parte da minha coleção. Eles contam dos fios, agulhas, nós, afeto, tristeza, felicidade, angústia, liberdade e amor. São eles:

 

 

João por um fio - Roger Mello

 

 

Este livro é instigante! Não é para leitura única, é para horas no tear. Desde a sua cor vermelha que no decorrer da história é coberta ora pela tinta preta, ora pela tinta branca. Tinta que ora é desenho, ora é letra que o autor-ilustrador propositadamente dribla como num jogo. “João sem sono não sabe dormir descoberto” e é embaixo da coberta que ele indaga “- agora sou só eu comigo?”. João tem medo, tem pai que é pescador que sai cedinho para trabalhar. Não tenho certeza, mas acho que João tem ausência de mãe (“o beijo na testa ainda beija”). João produz seus próprios acalantos: “enquanto costura, João inventa uma cantiga de ninar”. Além disso, ou por isso, João tem dúvidas e “costurou palavras como retalhos numa colcha. Na falta de agulha, serve um ponto de interrogação?”. Como acontece algumas vezes na rede de seu pai-pescador, João descobre que sua colcha está furada, em busca da pessoa ou bicho que furou a colcha, João descobre palavras, muitas palavras espalhadas no chão e é com elas que ele tece outra colcha. Acho que João deduziu que as palavras podem protegê-lo! Acho, mas não tenho certeza, talvez seja uma dedução fantasiosa minha.

 

Como um fio puxa o outro, após escrever essa “dedicação” ao livro de Roger Mello, busquei na internet um aprofundamento dessa obra tão pequena em tamanho e tão grande textualmente. Ao fazer isso encontrei um artigo e aproveito para divulgá-lo:

http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/ii_pdf/Rodrigo_Costa_Araujo.pdf

 

 

A menina do fio - Stela Barbieri e Fernando Vilela

 

 

Este livro é envolvente! Como no livro anterior as cores usadas na capa e no miolo são as mesmas, vermelho, preto e branco. O fio condutor do texto é vermelho, então é possível dizer que ele vem do coração. Ledo engano! Esse fio vem da cabeça da filha de um rei e de uma rainha. “O fio era mais duro que o aço, mais luminoso que o ouro e mais comprido que o firmamento.” Só que ele começou a crescer tanto que a menina começou a se enroscar em tudo e com isso tornou-se uma garota muito mal-humorada. Até que um dia, entre os seus pretendentes, apareceu um rapaz simples e humilde que pensou assim: “Todos dizem que ela é triste e mal-humorada assim por causa daquele fio. Vou segui-lo e soltá-lo de todos os lugares em que está emaranhado, para que ela possa ser mais feliz. Ele fica puxando a cabeça dela para trás todo tempo. Ninguém pode ser feliz assim!” E foi isso que ele fez: “com paciência, viajou meses desemaranhando amorosa e delicadamente o fio.”

 

Se você pensou que eu iria contar a história de fio a pavio, se enganou. Paro por aqui e deixo um fio esticado para você não se perder:

http://www.girafinha.com.br/girafinha/detalhe_produto.asp?id=29

 

 

Nós - Eva Furnari

 

 

Este livro é quase humano! Se tivesse braços, ele teria os braços mais calorosos do mundo. Se tivesse coração, ele teria o coração mais bondoso do mundo. Se tivesse cabeça, ele teria a cabeça mais sábia do mundo. Enfim, ele não é gente, mas se fosse seria muito gente fina!

 

Sem mais delongas, esse livro fala de nós, isto é, aquele imbróglio que costuma acontecer no cabelo das crianças, e dos adultos também, quando não é penteado. Ou aquela confusão no novelo da lã quando se começa a usá-lo do lado de fora. Há também um nó positivo (há controvérsia!), aquele que o noivo recebe na gravata na hora do casamento. Não sei fazer, mas há o nó que o marinheiro dá na corda; ele garante que é difícil desmanchar. Pois é, os nós (assim mesmo no plural, porque foram sete) de Eva Furnari não aconteceram no cabelo, nem na roupa, nem na corda. Eles foram surgindo em várias partes do corpo da menina Mel após as humilhações que ela vai passando pelas ruas de uma cidade chamada Pamonhas. Uma espécie de bullying que fez com que a personagem fosse se afastando cada vez da sua comunidade.

 

Falando dessa maneira, talvez o leitor possa imaginar que o texto desse livro seja pesado e angustiante, visto que o assunto é sério! Não, Eva sem didatismo e pieguice, traz a tona esse assunto de maneira leve e saudável. Com a sua vara de condão encanta, alegra e diverte! Eva Furnari é sempre Eva Furnari!

 

Observação:

Gostaria de falar também do livro Ponto a ponto de Ana Maria Machado, um livro de rememoração, porém como tenho apenas a edição publicada pela Berlendis & Vertecchia (que é maravilhosa!) gostaria de tecer meus comentários após ler a edição da Companhia das Letrinhas. Prometo que faço isso em outra oportunidade.

 

Você deve estar pensando porque dedico a coluna desse mês ao meu tio Pascoal... E o que tem meu tio com os fios, as agulhas e os nós?

 

Explico: Tio Pascoal era irmão da minha mãe. Era casado com Irene, que por um problema de saúde, nos últimos anos teve sua visão bem reduzida. Tendo apenas uma filha e um filho (e este mora no Japão), montamos em família uma escala para acompanhá-lo no Hospital do Câncer. A minha escala aconteceu, se não me falha a memória, no seu antepenúltimo dia de vida. Sob efeito da morfina ele já começava a perder a lucidez. Pela manhã após o banho ele estava coberto com um lençol azulado, da cor do céu. De repente ele procurou uma das pontas do lençol e nela deu um nó. Pegou a outra e deu um nó, quando chegou à quarta ponta resolvi desatar o nó da primeira e entreguei a ele. Assim, eu e ele = nós ficamos alguns minutos nessa atividade. Era como se ele estivesse construindo o seu último nó de vida. Isso me impressionou muito e me fez lembrar o cordão umbilical, nosso primeiro fio de vida.

 

Fez-me também interessar mais e mais por fios, agulhas, nós, tecituras e tecelagens.

 

 

Sugestões de Leitura:

 

BARBIERI, Stela; VILELA, Fernando. A menina do fio. São Paulo: Girafinha, 2006.

 

FURNARI, Eva. Nós. 2.ed. São Paulo: Global, 2000.

 

MACHADO, Ana Maria. Ponto a ponto. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 1998.

 

MELLO, Roger. João por um fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

MELO NETO, João Cabral. Poesias completas. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979.


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.