CINEMA


ABEL E SIDÓ


A forma de condução deste processo está equivocada e o governo age de forma irresponsável ao correr o risco de acirrar os ânimos e transformar o rio da integração nacional no rio da discórdia nacional [...] Seria fundamental que o presidente Lula retomasse a sua promessa de campanha quando afirmou que o projeto de transposição não iria prosperar sem um amplo diálogo e que passássemos a construir um consenso progressivo...
(Luís.Carlos da Silveira Fontes, Secretário Executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco).

O tempo esquentou cá por estes lados do São Francisco e no início do mês de agosto o governo recuou temporariamente (leia-se temos eleição daqui a sessenta dias) da sua disposição autoritária da questão transposição. Não se trata da reinvenção da terra, nem da salvação do homem, mas a similitude da existência de uma dupla cujo um chama-se Abel provoca um determinismo bíblico afinal o Rio São Francisco, objeto do filme aqui proposto para análise, encerra uma perspectiva de vida e morte tal qual os personagens religiosos.

Abel e Sidó, ele remeiro de quatro costados, conhecedor dos cantos e encantos do eflúvio, ela canoa feita de uma só peça de madeira, o que lhe confere certa vaidade, conhecedora de estórias e histórias, e velha companheira o que a torna inseparável, são os personagens principais desse híbrido roteiro de ecologia e romance em que partilham a vida e a morte de um dos principais rios brasileiros.

Sidó, a velha e boa canoa, sabe tudo do São Francisco, e cabe a ela assumir o comando do filme. Embora a trama conduza para um insosso romance entre atores pontuados por uma visibilidade global. Aí que o filme se perde. O que inicialmente aparenta ser um filme engajado, uma proposta de defesa da revitalização do Rio, não passa de um ensaio. Nas primeiras cenas um líder ribeirinho (Severo D'Acelino) defende a vida do Velho Chico, exortando a população a lutar pela preservação sob pena de no futuro não mais ser possível a pesca e a navegabilidade, o que de certa forma já acontece dependendo da região.

Na contramão dessa defesa aparecem as lentes de Henrique, fotógrafo carioca, que enchem de glamour as publicações do Sudeste/Sul, com fotografias que mostram um rio resplandecente, um verdadeiro espelho d'água. O problema é o que está acontecendo por baixo desse espelho. A luta política que se trava entre o governo que quer a transposição de um rio agonizante, e ambientalistas que defendem que antes se faça a revitalização. É o embate entre o imaginário das fotografias e a dura realidade da população ribeirinha.

Esperava-se por isso um filme que confrontasse a insistente cantilena política a favor da transposição e a discussão acadêmica pautada em estudos ambientais apontando para a necessidade de revitalização. Mas o cinema brasileiro vive outra fase, e a ideologia ficou para trás (o obvio ululante). Portanto o filme desemboca (já que falamos de rio) em uma busca romanesca de um naufrago. O barco em que o fotógrafo que retrata o espelho d'água viaja é traído por um banco de areia, o que determina a condição ruim de navegabilidade. Mas tal fato não é explorado.

O naufrágio dá o pretexto para cenas em que aparecem histórias, fé, milagres crendices, lendas, superstições, mistérios e folclore do povo ribeirinho e da região. É a resistência cultural, tão profusamente arraigada no nordestino e tão incompreendida pela elite cultural das outras regiões (excluindo-se o Norte).

A agonia do Rio São Francisco, em espelho d'água cada dia mais quebrantável, faz reflexo no cotidiano da população: trechos não navegáveis - prejuízos para canoeiros e balseiros; diminuição na quantidade de peixes - prejuízos para pescadores; assoreamento - prejuízo para o meio ambiente. O filme mostra como a deterioração do Rio tem interferido inclusive na crendice popular - o pagamento de promessas com cabaças que tem um destino e devem ser recolhidas e levadas a uma determinada Igreja.

Enquanto isso, nas publicações e no Planalto Central o São Francisco é um espelho d'água que não reflete o que está acontecendo. Mais poderia se esperar desse filme, pois isso o próprio dá a entender. Mas é um filme que merece ser visto.

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Espelho d'água - uma viagem pelo Rio São Francisco. Brasil. 2004. Direção de Marcus Vinícius César. Com Fábio Assumpção, Regina Dourado, Francisco Carvalho, Carla Regina e Severo D'Acelino.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo