FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA INFORMAÇÃO


O CARÁTER INSTRUMENTAL DA LÓGICA NO ENSINO DE ORGANIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO / ANÁLISE DOCUMENTÁRIA EM CURSOS DE BIBLIOTECONOMIA

No atual contexto, de rápidos avanços tecnológicos, muito se tem discutido a respeito da importância de aportes teórico-metodológicos de áreas de interface para o ensino de Biblioteconomia. Essa abordagem interdisciplinar tem sido corroborada, inclusive, seja pelos atos normativos referentes à educação universitária, como a LDB e as Diretrizes Curriculares, seja, ainda, pelas discussões curriculares levadas a efeito tanto pela ABECIN (Associação Brasileira de Educação em Ciência da Informação) quanto pelo Grupo Mercosul de Escolas de Biblioteconomia.

Dentre as áreas instrumentais para a formação bibliotecária, gostaríamos de dedicar especial atenção à Lógica, que, já no Currículo Mínimo de Biblioteconomia aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1982, era prevista como matéria instrumental nos cursos de graduação da área, definida enquanto ato de pensar, envolvendo questões específicas como percepção, juízo e raciocínio, indução e dedução, dentre outros.

Nesse contexto, especial importância adquire a lógica no ensino na área de Organização da Informação / Análise Documentária (Classificação, Indexação, Resumos etc), revelando uma instrumentalidade que remonta aos primórdios dos sistemas de classificação.

Como mostra Sander (1988), tais sistemas, em sua trajetória histórica, partiram de uma concepção mais filosófica (voltados à categorização de conhecimentos) para, a partir do século XIX, assumirem uma dimensão mais pragmática (voltados à organização de documentos). Em ambos os casos, no entanto, pode-se dizer que são sistemas lógico-simbólicos.

Na estruturação dos referidos sistemas observa-se, de pronto, a aplicação de princípios tanto da lógica formal quanto da lógica dialética, tais como: a) um todo só poderá ser subdividido se possuir ao menos duas subdivisões; b) a posição superior na hierarquia deve ser ocupada pela divisão que abarcar maior número de conceitos; c) a divisão, de acordo com o critério selecionado, deve ser contínua; d) o volume do conceito dividido deve ser igual ao volume de suas partes componentes; e) as classes resultantes de uma divisão pertencentes a uma mesma série horizontal devem excluir-se mutuamente; f) parte-se do geral para o particular, do todo para a parte, do abstrato para o concreto, do simples para o complexo, do anterior para o posterior, do inferior para o superior, e do mais significativo para o menos significativo.

A título de exemplo, observa-se que, em sistemas hierárquicos de classificação, como a CDD, a ordem com que se divide o conhecimento permite inferências, a partir de disciplinas gerais, quanto à posição de disciplinas particulares, uma vez que o agrupamento de documentos em classes se dá por semelhança de propriedade, sendo cada classe definida por uma propriedade peculiar, aristotelicamente denominada diferença(1).

Saindo-se do domínio dos sistemas de classificação enquanto linguagens documentárias e indo para o próprio ato de classificar, igual influência tem a lógica, pois, como ressalta Sander (1988, p.46), a classificação é um pensamento controlado, uma atuação notavelmente metódica a ponto de organizar fatos apreendidos originariamente de forma discordante e desconexa em diferentes livros (Sander, 1988, p.46). Nesse sentido, a referida autora destaca três momentos de abstração: a previsão de uma notação, enquanto código simbólico, no sistema de classificação; a análise documentária de conteúdo do documento, enquanto reconhecimento da propriedade cognoscitiva do mesmo; e a atribuição de nomes (rótulos) às classes

No entanto, a dimensão teórica da aplicação dos aportes da Lógica ao fazer da Análise Documentária(2), como mostra KOBASHI (1994), deve-se a Jean-Claude Gardin, ao propor a análise logicista, que parte do princípio que o texto científico exprime concretamente um raciocínio científico, uma vez que explicita um conjunto de operações realizadas pelo autor, chegando a enunciar teses, hipóteses, interpretações, comentários, conclusões, explicações etc.). Desse modo, a análise logicista propõe-se a elucidar as organizações que sustentam certos textos ou classes de textos, mais especificamente na área de Ciências Humanas.

Para tanto, ressalta a autora que o procedimento de análise proposto por Gardin, por meio de esquemas que reflitam o raciocínio final do autor, permite que se chegue a esquemas de representação, tornando-se fundamental explicitar cada procedimento, bem como validar cada inferência surgida a partir da análise de construções.

Em termos operacionais, explica Cunha (1989,b) que o modelo de Gardin propõe-se a identificação das macroproposições semânticas(3) do texto, dos traços descritivos para tal e dos argumentos que as sustentam. Tais aspectos configuram-se essenciais para que a representação documentária (seja ela por meio de códigos ou de palavras) possa refletir a organização lógico-semântica do texto e, igualmente, o conjunto de procedimentos utilizados pelo autor/produtor da informação analisada.

No próprio processo de Análise Documentária, como mostra Cunha (1989, a), o profissional utiliza-se de operações lógicas, tais como as relações de inclusão/exclusão, todo/parte, gênero/espécie, embasadas em juízos e raciocínios, além de programar a tradução de conceitos em sequências lógicas.

Sintetizando a questão, a mesma autora (CUNHA, 1989, b) explicita que a aplicação da Lógica à Análise Documentária ocorre tanto como instrumento (por meio dos raciocínios, conceitos, idéias ) quanto como objeto, pois o documentalista trabalha com documentos expressos por meio de uma determinada língua onde estão embutidas funções lógico-linguísticas.

Por fim, cumpre ressaltar que a incorporação de determinados recortes da Lógica como subsídio ao processo de Análise Documentária visa, em última instância, a melhor explicitar os parâmetros que integram o fazer do documentalista no momento da identificação e seleção dos conceitos documento. Desse modo, busca-se um conjunto de parâmetros teóricos e metodológicos que possam apoiar o profissional bibliotecário nesse processo, tais como as definições de juízo, conceito, argumento e inferência, bem como a identificação de premissas e conclusões que são consequências das premissas.

Nesse contexto, acredito que a prática pedagógica na área de Organização da Informação / Análise documentária deve dedicar especial atenção à inferência e aos argumentos, a primeira, por permitir a passagem do que é conhecido para o conhecimento do desconhecido e, os segundos, por atuarem como suportes de comprovação do enunciado que possuem função persuasiva em termos do discurso para o delineamento de estratégias metacognitivas de leitura documentária.

Em um momento que se busca sair de uma concepção de Organização da Informação basicamente pautada nos produtos e instrumentos, para se atingir uma ênfase voltada aos processos da área, acredito que a prática pedagógica do processo de análise documentária em si, buscando evidenciar ao aluno os procedimentos que lhes são inerentes, configura-se necessária.

Assim, anteriormente à abordagem das linguagens documentárias (que atuam como instrumentos de representação) é fundamental que o aluno tenha clareza do processo de interação do analista com o texto, em busca de elementos de conteúdo para que possa chegar, por meio de procedimentos lógicos e linguísticos, à conclusão de um ou mais temas que serão - posteriormente - cotejados com as linguagens documentárias no momento da representação.

Para tanto, vejo na utilização da técnica do "pensar alto"(think aloud) em atividades em sala de aula, e no método do protocolo verbal, em atividades de pesquisa (FUJITA, 1999 e FUJITA, NARDI e SANTOS, 1998), importantes referenciais para que o aluno possa ter clareza quanto aos procedimentos lógicos envolvidos no processo de análise evitando, assim, que este fique ao perigoso sabor do tradicional "bom senso".

Bibliografia consultada

CINTRA, A .M.M. Estratégias de leitura em documentação. In: SMIT, J.W. (coord.) Análise documentária: a análise da síntese. 2.ed. Brasília : IBICT, 1989. P.63-79.

________ et al. Para entender as linguagens documentárias. 2.ed.ver. e ampl. São Paulo : Polis, 2002.

CUNHA, I.M.R.F. Análise documentária. In: SMIT, J.W. (org.) Análise documentária: as análise da síntese. 2.ed. Brasília : IBICT, 1989. P:39-62

________. O Falcão Maltês: a lógica em análise documentária. Revista de Biblioteconomia de Brasíilia, v.17, n.1, p:51-61, jan./jun. 1989.

FUJITA, M.S.L. A leitura do indexador: estudo de observação. Perspectivas em Ciência da Informação, v.4, n.1, p. 101-116, jan./jun. 1999.

________; NARDI, M.I.A.; SANTOS, S. dos. A leitura em análise documentária. Transinformação, Campinas, v.10, n.3, p.13-31, set./dez. 1998

GUARIDO, M.D.M. Coordenação e subordinação de conceitos em sistemas decimais de classificação: um estudo de aplicação da Lógica na CDD e NLMC. Marília, 2001. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - FFC-UNESP.

GUIMARÃES, J.A .C. Análise documentária em jurisprudência: elementos para uma metodologia de indexação de acórdãos trabalhistas brasileiros. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) ECA-USP

________. O caráter instrumental da diplomática para o tratamento temático de documentos jurídicos. Cadernos da F.F.C., Marília, v.7, n.1/2, p.95-106, 1998.

KOBASHI, N.Y. A elaboração de informações documentárias: em busca de uma metodologia. São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) ECA-USP

PINTO MOLINA, M. El resumen documental. Madrid : Fundación Germán Sánchez Ruiperez, 1992.

SANDER. S. Clasificación: actividad técnica o teórica? Investigación bibliotecológica, v.2, n.5, p:43-50, jul./dic. 1988.

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(1) Guarido (2001) aborda a dimensão lógica na estrutura dos sistemas de classificação.
(2) Destaquem-se nesse contexto, os trabalhos de investigação levados a efeito pelo grupo TEMMA da Universidade de São Paulo: Johanna W. Smit, Nair Kobashi, Anna Maria Marques Cintra, Maria de Fátima Gonçalves Moreira Tálamo e Marilda Lopes Gines de Lara.
(3) Em uma outra vertente, temos trabalhado com o método diplomático como forma de identificação das macroproposições lógico-semânticas do documento a partir de suas premissas de função e uso (Guimarães, 1998).


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JOSÉ AUGUSTO CHAVES GUIMARÃES

Bacharel em Direito e em Biblioteconomia, mestre e doutor em Ciência da Comunicação e livre-docente em Análise documentária; docente do Departamento de Ciência da Informação e coordenador do programa de mestrado em Ciência da Informação da Universidade Estadual Paulista - Unesp (Marília - SP). Ex presidente da ABEBD (1991-1995). 1º secretário da ABECIN (2001-2004). Pesquisador do CNPq e líder do grupo de pesquisa Formação e atuação profissional na área de informação. Autor de várias obras sobre temas da área.