ESTAÇÃO BIBLIOTECA E AS PLATAFORMAS DO CONHECIMENTO


LER DÓI OU LER NÃO DÓI?

Chegou às minhas mãos, através do amigo Oswaldo Almeida a bula do remédio Ler-Nondoid, um ácido poliestimúlicoplural, criado pela bibliotecária Sueli Bortolin da Universidade Estadual de Londrina. Li a bula, e fiquei impressionado com a potencialidade medicamentosa do remédio. Como marca também positivamente a fantasia e a criatividade da inventora. A bula Bortolin, de um remédio inexistente, é a fórmula, sem poder de execução (poder administrativo) de uma composição estimulante que informa ser para “reduzir o desânimo para a leitura”, uma tarefa difícil no Brasil.

 

Com a formulação do medicamento Ler-Nondoid, Bortolin demonstra sua preocupação com essa questão sempre preocupante e desprestigiada que é a leitura, debatendo-se entre a prática e a falta. Preocupação demonstrada em generosas manifestações de apreço a leitura mundo afora. Umberto Eco, maior semiólogo contemporâneo, professa que as lições de ensinamento praticadas por tutores, podem ser substituídas por leitura de livros. Basta que sejam indicadas as do conteúdo similar para leitura do discípulo. Bill Gates, decantado como o homem mais rico do planeta, com uma fortuna constituída a partir da informática, disse que seus filhos terão livros, sim, antes de terem computadores.

 

Por outro lado, na contramão dessa prática, a literatura no Brasil é farta em exemplos não edificantes da falta de leitura. Caetano Veloso no seu poema Livros diz “Quase não tínhamos livros em casa / E a cidade não tinha livraria” e acrescenta “Mas os livros que em nossa vida entraram / São como a radiação de um corpo negro / Apontando para a expansão do Universo”. Cerqueira da Graça em sua dissertação Pés-de-anjo e letreiros de néon descreve a falta de estímulos à leitura dos ginasianos de Aracaju pelos pais por acreditarem que nos livros seus filhos encontrariam “venenos à alma e inocência infantis”.

 

São estabelecidas no parágrafo anterior duas situações da dificuldade da prática da leitura: em Caetano, a ausência do poder público e em Cerqueira da Graça, a ausência de cultura dentro da estrutura familiar decorrência de uma tácita fragilidade informacional. Juntos vão estabelecer uma atrofia educacional e cultural que provavelmente o remédio de Bortolin não resolverá. Será preciso operacionalizar procedimentos que resolvam esta situação de dificuldade.

 

Procedimentos que não despertam interesse na maioria dos governos. Os regimes de exceção têm sido déspotas com a questão da leitura no que diz respeito à prática da circulação da informação. Entretanto, de modo geral, os regimes democráticos têm sido tão tirânicos quanto àqueles. Se não oficializam a proibição deixam que isto ocorra pela inanição dos acervos bibliográficos dispostos ao público. Como livro é caro, no Brasil, a maioria da população não tem acesso e caracteriza-se a proibição.

 

O que está posto neste artigo são reflexões sobre um ato simbólico do conhecimento que tanto pode significar o bem como encarnar o mal, a depender da ótica política. Na convicção política da administração pública três posturas têm se configurado: alguns governos tentam atenuar a falta de leitura do seu povo com políticas que promovam o livro e as bibliotecas; outros não incluem na agenda a questão e não a veem como pertinente ao eixo central do desenvolvimento social; há ainda os que extinguem a leitura do panorama cultural como premissa da necessidade de não perder a condução política, nesse caso leitura dói e tem trazido sofrimento.

 

No momento em que o País enseja um modelo de mudança social oxalá esteja começando um processo cultural de prática estabelecida na primeira postura, estabelecida no parágrafo acima. E que livros, leituras e bibliotecas façam parte da política cultural. Muito embora a esperança seja mínima, até porque o medo de que nenhuma política permanente de cultura seja anunciada permanece.

 

Algumas ações podem ser estabelecidas dentro da perspectiva de transformações sociais alimentadas durante anos pelo novo governo: uma política cultural que considere a possibilidade de aquisição de acervos para bibliotecas públicas; uma perspectiva editorial que leve livros mais baratos às livrarias e bancas de jornais e revistas; uma prática de depósito legal com visibilidade para os editores; uma postura ética em relação ao cumprimento da lei de direito autoral. Ações que podem ser discutidas, com possibilidades reais de viabilização.

 

Não possibilitar a existência de eficientes aparelhos públicos de cultura como a biblioteca pública, nem oportunizar o direito à leitura, é condenar o cidadão ao tempo do Califa Omar (640 d.C.) para quem os livros não tinham sentido de existir pois “ou os livros contêm o que está no Alcorão e são desnecessários ou contêm o oposto e não devemos lê-los”. Ou ao tempo dos ginasianos de Cerqueira da Graça, em que a preocupação era com a mensagem contida nos livros, para não desvirtuar os jovens.

 

A destruição da Biblioteca de Alexandria, que mereceu ter suas histórias construídas como resistência de uma época e contadas por Luciano Cânfora em A biblioteca desaparecida (1989), foi considerada um dos maiores crimes perpetrados contra o conhecimento em toda a história da humanidade. A falta de postura governamental em relação ao assunto em questão é uma forma de crime perpetrado contra o conhecimento tal qual foi a destruição da Biblioteca de Alexandria, sem traumas visíveis.

 

Bibliotecas com seus livros e livros com seus leitores, revelam as dores de quem os lê e de quem não os lê. Os primeiros pela impotência de a partir do conhecimento adquirido formar uma sociedade igualitária; os segundos por não conseguirem visibilidade sequer como cidadãos.

 

__________________________________

 

Artigo originalmente publicado no Jornal da Cidade, Coluna Opinião, B-6, Aracaju, 22.02.2003


   403 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo