PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: DEZ MEDOS CORROSIVOS À AUTOESTIMA DO BIBLIOTECÁRIO BRASILEIRO.

Neste último mês de outubro, que segundo as previsões dos especialistas em climatologia será o mais quente dos cem últimos anos, têm sido realizados vários eventos profissionais, científicos e turísticos pelos bibliotecários, arquivistas, museólogos e cientistas da informação no Brasil. Navegando nos sites de entidades e organismos que fomentam algumas dessas reuniões, se percebe quão profundas são as questões de que tratam, exceto quando examinam temas relacionados à educação, mundo do trabalho e ética. Por que se dá isso?

 

Quero me ater aqui, como frequentemente o faço, a refletir sobre a expressão do medo que corrói, particularmente, a autoestima do bibliotecário brasileiro. Sou parte do grupo de especialistas com graduação e mestrado em Biblioteconomia, ainda que doutor em Educação. Assim, tenho tido um campo de observação razoável do comportamento e atitude dos bibliotecários brasileiros nos últimos 38 anos, a considerar que desde 1976 convivo com o discurso reificador desse grupo. Por isso, acho-me ao menos tentado a refletir sobre esses medos.

 

Reúno e examino a seguir 10 aspectos que a mim parecem evidenciar os principais temores ou obstáculos que levam o bibliotecário a, geralmente, se imaginar sem chão, dizer-se invisível, sentir-se como não devidamente valorizado por uma sociedade cada vez mais individualista. Com esse sentimento, parece que o bibliotecário quer dizer que a sociedade brasileira é refratária ao empoderamento de certos grupos profissionais. Que tais grupos, entre os quais os bibliotecários, seriam vistos como ameaçadores aos interesses econômicos ou políticos de segmentos sociais que se reconhecem como situados na classe média sócio econômica e se percebendo como capazes de pensar e de fazer sua existência autonomamente. Não me parece que esse seja plenamente o fato, contudo é assim que muitas vezes ele é manifestado pelos bibliotecários.

 

A palavra medo tem muitas acepções ou significados. De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/medo, consultado em 03-11-2014, pode-se tomar o termo “medo” como:

 

1.     Estado emocional resultante da consciência de perigo ou de ameaça, reais, hipotéticos ou imaginários.

 

2.     Ausência de coragem (ex.: medo de atravessar a ponte).

 

3.     Preocupação com determinado fato ou com determinada possibilidade (ex.: tenho medo de me atrasar).

 

Eu poderia levantar também algumas fontes relevantes no pensamento filosófico e encontraria em Nietzsche uma boa companhia; ou no pensamento psico-analítico de Freud, mas isso pode ficar para um estudo mais denso adiante. É que a mim parece que qualquer das acepções acima dadas pelo Dicionário Priberam representa o estado de ânimo expresso nas falas dos bibliotecários, isto é, nessas falas se percebe a elaboração de um discurso que expressa a: consciência de perigo ou de ameaça, reais, hipotéticos ou imaginários, assim como a ausência de coragem para iniciativas inadiáveis. Entretanto, há algumas vozes dentre eles que insinuam colocar seus temores sob uma categoria vazia designada “zona de conforto”. Quanto a isso, não sei se se trata de inocência ou de zombaria quanto à inteligência dos demais.

 

Tentarei, na sequência, examinar um a um os mais correntes medos exteriorizados nos discursos dos bibliotecários brasileiros.

 

1 – Medo de assumir posição e defende-la.

 

Origem: o individualismo recorrente no discurso do bibliotecário o coloca na condição de estar sozinho no mundo. Entre seus pares profissionais não se afirma uma postura que dê sentido a um agir coletivo. Em momentos de extrema necessidade na defesa de ideias ou propostas, cada um cuidará de si.

 

Expressão: o estado de apatia das entidades profissionais, como associações e sindicatos podem confirmar, por si mesmo, essa atitude. Em geral, estão dependentes das pessoas que compõem a sua diretoria e, às vezes, nem isso, pois em pouco tempo os membros das diretorias dessas entidades tendem a se retirar permanecendo seus presidentes e um ou outro dirigente.

 

Consequência: torna-se contínuo o reforço da incapacidade de agir com protagonismo, pela fraqueza do indivíduo coletivo em demonstrar capacidade de atuação conjunta. É comparável a um corpo decadente.

 

2 - Medo de se comunicar eficazmente com seus usuários.

 

Origem: há uma virtual convicção de que o trabalho bibliotecário tem como caráter essencial a recuperação da informação e do documento. Para que isso se efetive grande parte da energia profissional é aplicada em formular instrumental que assegure a perfeita identificação dos suportes e dos conteúdos que esses carregam, partindo do pressuposto de que a recuperação depende de boa armazenagem, que depende de boa codificação, que depende de bons sistemas, que dependem de boas máquinas, que dependem de bons operadores, que dependem de boas instruções a fim de no futuro encontrar algo que foi devidamente identificado no início de um processo orientador pelo par de ideias identificar bem para recuperar bem, como se isso fosse um par espelhado: “a” que é similar a “a linha”. Nesse caso, a comunicação é pensada da coisa hoje identificada e armazenada para a recuperação dessa coisa no futuro. Mas essa relação hoje e futuro é, queira-se ou não, relativizada pelas vivências e vitalização da língua ao longo do tempo, não implicando que no futuro se busque algo com os mesmos termos empregados no passado. Esse medo de comunicação eficaz, isto é, de reconhecer que o “mundo” é a linguagem que o constitui e que essa resulta do movimento humano, faz do bibliotecário refém de sistemas de descrição documentária, cada vez mais acentuado pelo uso das TIC, que mais resolvem o problema do armazenamento, isto é, do aspecto discursivo que do uso, isto é, do aspecto dialógico. Ao acentuar os processos discursivos em prejuízo dos dialógicos, o bibliotecário revela o seu permanente medo de se comunicar eficazmente.

 

Expressão: o empobrecimento dos boletins, jornais e periódicos destinados à divulgação de notícias e acontecimentos profissionais, que se veem transformados em periódicos científicos ou que são extintos. Cada vez mais, há a substituição desses meios por canais de mensagens rápidas e, especialmente, por outros meios em que o maior volume dessas mensagens é realizado por imagens, com a renúncia da capacidade de uso de textos literais, históricos.

 

Consequência: há um reforço inconsciente, parece-me, dos processos dominantes de presentificação da realidade, em que o passado é apenas a armazenagem dos resíduos de nossa produção cerebrada e o futuro é tão somente algo a vir, como se não decorresse de ação que pode ser planejada.

 

3 - Medo de manter atual seu lugar humano e de valorizar as boas práticas profissionais que construiu historicamente.

 

Origem: a atualização social vem acontecendo como uma fuga para softwares, para a programação criada por terceiros. Isso se dá na maioria dos setores de serviços e também nos espaços de trabalho onde se utilizaria os saberes do bibliotecário. Há uma fuga para o supostamente determinado por um superser descarnado. Há a ignorância de que esse mundo deste superser não existe, porque ele é criação de elites técnicas a serviço de investidores econômicos, direcionados a um preciso projeto de dominação da inteligência social.

 

Expressão: a automação, a informatização e a presença de pacotes de gestão bibliotecária ou os recursos cada vez mais sofisticados de gestão de informação.

 

Consequência: os usuários cada vez mais deixam de ser tratados como pessoas humanas. Suas relações sociais, seu universo psicológico e sua historicidade pouco importam. Eles têm que ser educados, isto é, domesticados segundo os rituais desvalorizados seguidos por bibliotecários que agem desvalorizadamente como instrumentos programados por controle de máquina.

 

4 - Medo de assumir que sua ética pessoal precede a sua ética profissional.

 

Origem: há uma efetiva desvalorização da pessoa do bibliotecário, isto é, há o apagamento nele de que ainda é carregado por um ser humano, influenciado por emoções, reagindo com os humores próprios de quem sente dor, alegria, tristeza; que faz escolhas por motivações estéticas e que se emociona em muitas situações vivenciadas. Isso faz o bibliotecário brasileiro adotar um código de ética profissional que reproduz uma idealização kantiana, dada pelo imperativo do dever. No âmbito pessoal, antes de ser o profissional, a vida privada de cada um é movida pelo cálculo da conquista do melhor com o menor esforço. De forma geral, todas as pessoas, independentemente de suas escolhas profissionais, seguem por isso mesmo uma conduta que se apoia em uma doutrina utilitária. Aplicada à ação profissional, isso significa que só é possível fazer as coisas que as condições reais e concretas permitem ser feitas. Desse modo, o dever fazer como orientação ética torna-se uma falsificação, e ao aceitar que o código de ética de sua profissão disponha dessa forma, o bibliotecário brasileiro afirma uma eticidade que ele não pode cumprir.

 

Expressão: o Código de Ética do bibliotecário brasileiro, nos termos com que foi construído e ainda vigente em 2014, é desconhecido da maioria dos bibliotecários.

 

Consequência: uma fonte importante de diálogo de um grupo profissional com a sociedade, que é seu código de ética, não serve nem ao bibliotecário e nem à sociedade brasileira. Essa é uma das fontes de sentimento de desamparo que o bibliotecário carrega. O seu código é uma das fontes de seus problemas de autoimagem e de corrosão identitária.

 

5 - Medo de fazer da biblioteconomia uma ciência com epistemologia própria.

 

Origem: Quando os responsáveis pela formação de bibliotecários no Brasil passam a partir da década de 30 do século XX a mirar a estratégia adotada nos Estados Unidos como base a ser copiada para a formação de bibliotecários no Brasil tomam apenas o que havia de técnica. A primeira pessoa do Brasil a frequentar um desses Cursos naquele país foi Adelpha Figueiredo que obteve essa formação em um ano, em 1931. Para copiar esse curso aqui, na cidade de São Paulo, foi mantido esse formato de curso técnico. Na medida em que se tentou integrar esse curso à estrutura da universidade brasileira e levá-lo à condição de bacharelado ele foi sendo inchado em seu tempo de duração com o conteúdo técnico desdobrando-se e com conteúdos de formação geral. Dessa maneira, conforme as condições que existiam em cada local de implantação do Curso, diferentes conteúdos eram agregados ao currículo realizado. Distinta era a situação na fonte, os Estados Unidos, onde desde os anos 30 do século XX fora implantado o Doutoramento em Biblioteconomia na Universidade de Chicago. Lá, Pierce Butler, um dos luminares da Biblioteconomia naquele país escreveu um livro em que defendia que um bibliotecário apropriadamente formado necessitaria ter bom domínio de conhecimento em História, Sociologia e Psicologia, sem o que não seria muito mais que mero arrumador de estantes. Enquanto nos Estados Unidos havia, portanto, uma Library Science e a produção de conhecimento para fazê-la uma ciência, no Brasil havia uma repetição de instruções de como “arrumar” livros em estantes. Na primeira oportunidade, em que a contingência do momento induz os bibliotecários brasileiros a submeterem-se à ideia de que a essência de sua ação em vez de serem as pessoas (utilizadores de bibliotecas públicas e escolares) seriam os lucros das empresas estrangeiras que passaram a dominar o espaço brasileiro, com a imposição da tomada do poder constitucional em 1964 e, assim, viram que seria prestigioso caminhar para uma formação correspondente a essa virada de direção, não tiveram dúvida em encontrar como científica a Ciência da Informação. Sem uma tentativa mais efetiva de produzir ciência biblioteconômica no Brasil, implantaram como primeiro programa de pós-graduação a Ciência da Informação, junto ao IBBD, a partir de 1970. Provavelmente, o medo em implantar um espaço de produção de ciência biblioteconômica no Brasil era sua identificação com o espaço social da biblioteca pública e escolar.

 

Expressão: mesmo que parte das escolas de Biblioteconomia à altura, nos anos 1970, tenham criado Cursos de Mestrado em Biblioteconomia (UFMG, UNB, UFPB, PUCCAMP) eles não se sustentaram e foram degradados politicamente, transformando-se em Mestrado em Ciência da Informação, a partir dos anos subsequentes.

 

Consequência: em que pese o potencial da economia brasileira, que para sua sustentação e evolução precisa favorecer à população nacional o acesso qualificado a redes de bibliotecas públicas e escolares, o país não dispõe de uma infraestrutura de geração de conhecimento teórico científico em biblioteconomia suficiente para iluminar todos os objetos que se constituem na relação entre serviços bibliotecários de âmbito social e seus utilizadores.

 

6 - Medo de não ter culpados para justificar suas más práticas profissionais.

 

Origem: Não existindo a produção de ciência biblioteconômica no Brasil, por falta de competência para isso, decorrente de uma importação de conhecimento meramente prático, técnico e instrucional e do não investimento em pesquisa nesse campo, os bibliotecários brasileiros agem com apenas um pouco mais de conhecimento que aquele tido por qualquer leigo em Biblioteconomia. Por essa razão, à falta de uma base científica mais consistente, e ao ser ver ameaçado pela competência leiga de bibliotecários práticos [de vizinhança] e por não serem da mesma estirpe dos profissionais que, a exemplo do ambiente predominante na Europa, América do Norte, parte da Ásia e América Latina, conhecem mais profundamente o fundamento de suas ações, portanto, não são bons bibliotecários, eticamente e profissionalmente falando, precisam encontrar e apontar culpados para quem atribuir seus próprios erros políticos. Logo, o contexto nacional deve ser continuamente escrutinado pelos bibliotecários brasileiros a fim de que não faltem essas justificativas.

 

Expressão: em geral, os políticos, as políticas, a falta de “hábito” de leitura da população, a presença da televisão, o despreparo dos professores da educação básica, o temor das classes poderosas sobre o comportamento de uma população esclarecida, o preço do livro, a expansão da internet, dentre outros culpados, estão sempre presentes no discurso com o qual os bibliotecários apontam as ameaças que sentem.

 

Consequência: não há bibliotecas escolares na grande maioria dos estabelecimentos de ensino; há algumas centenas de municípios brasileiros sem a efetiva oferta de serviços de biblioteca pública; onde há bibliotecas públicas, sendo estatais, tendem a funcionar como meras repartições públicas, em que as estratégias de oferta de serviços atendem mais aos interesses dos bibliotecários ficando acima dos interesses dos utilizadores quanto a horário de abertura e atendimento, conteúdo dos acervos, motivação e utilização para a frequência e uso, etc.

 

7 - Medo de não receber tutela.

 

Origem: Há mais de século o designado bibliotecário brasileiro espera que o chamem ou o contratem para executar atividades profissionais. Espera que o chefe de um governo ou o dono ou dirigente de empresa sinta a necessidade de sua presença. Desenvolva o sentimento de uma carência de serviço que poderia ser prestado pelo bibliotecário. Nos anos em que foi Secretário de Cultura do município de São Paulo, na década de 1930, Mário de Andrade, segundo a pena de Edson Neri da Fonseca, teria representado aqueles que veem nos bibliotecários a posição subalterna de facilitar a caminhada dos demais intelectuais. À altura, alguns bibliotecários tinham certo orgulho em afirmar que o bibliotecário é “o servidor dos servidores da ciência”. Ora, se o cientista é por natureza de sua atividade um profissional a serviço do poder econômico e político, portanto, dependente de quem tem a força econômica ou do mando, ser servidor deste é estar tutelado por quem já é tutelado. Alardear essa relação, como motivo de orgulho profissional, é descurar da noção de que acima do cientista e do político há uma sociedade com quem o bibliotecário poderia dialogar. Mas a força do medo de perder o tutelador já conhecido tem funcionado como um grande motivo para sustentar a sua submissão tão rasa.

 

Expressão: a contínua e massiva dependência da abertura de concursos públicos de origem estatal, ainda que haja um forte potencial nas últimas décadas para a contratação de bibliotecários por uma sociedade mais ampla, é a manifestação mais visível da dependência.

 

Consequência: a desmobilização que mantém o adormecimento de associações e impede a percepção de seu valor social e político e, ao mesmo tempo, que não forja um adequado movimento sindical reforça a lassidão do grupo.

 

8 - Medo de ter suficiência erudita.

 

Origem: Historicamente, são identificados no contexto ocidental vários nomes de pensadores ou intelectuais que também se distinguiram por se ocuparem de cuidar de grandes bibliotecas. Isso aconteceu em ambientes em que a produção do conhecimento era contemporânea com a expansão de nações que se puseram ao mar, ou financiaram as conquistas de novos territórios, em novos mundos. Essas pessoas, muitas vezes, tinham relações mais próximas com os donos do poder, eram conselheiros de príncipes ou de reis, o que se dava pelo reconhecimento que tinham de suas capacidades de pensar novidades em decorrência do largo conhecimento que puderam e continuavam a acumular por toda a vida. Evidentemente, esse é um contexto em que o que fazer do bibliotecário não se traduz pela competência de “gerenciar coleções”, com toda a limitação que isso representa ao se confundir com a ação de mero almoxarife, tarefa que fica cada vez mais evidente com a adoção cada vez mais intensa de softwares e programas de gestão de coleções.

 

Expressão: a gestão de coleções, desde os anos da década de 1970, vem se tornando uma das principais áreas temáticas dos cursos de graduação em biblioteconomia no Brasil. Antecipando-se a isso, já nos anos da década de 1940, a Bibliotecária Wanda Ferraz, em seu muitas vezes reeditado livro: A biblioteca, afirmava que: “O bibliotecário precisa proceder com o critério prático de um comerciante. Assim como este compra unicamente artigos que podem interessar a seus fregueses, o diretor de uma biblioteca deve procurar adquirir obras que não irão tornar-se parte morta na biblioteca”. (6ª. edição, revista e aumentada, 1972, p. 29).

 

Consequência: a própria avaliação do INEP, feita nos dois últimos anos, quanto ao acervo das bibliotecas de ensino superior está, por influência dos bibliotecários, ampliando a paupérrima noção de que a coleção deve responder aos currículos dos cursos existentes ou a serem criados, assegurando o atendimento aos programas de ensino com 3 a 5 referências em sua bibliografia básica e mais uns cinco itens em sua bibliografia complementar. A continuar esse ritmo, não durarão muitas décadas para que se faça das Instituições de Ensino superior deste país desertos de livros. Com isso, o temor que o bibliotecário tem da autoerudição se espalhará por toda a sociedade, via egressos do ensino superior.

 

9 - Medo de saber porque tem esses medos.

 

Origem: Há entre os bibliotecários brasileiros uma predominante falta de erudição; falta da produção de conhecimento científico em Biblioteconomia; falta de autonomia política para defender seu próprio lugar social; falta de capacidade de bem se comunicar com a sociedade; falta de noção da baixa qualidade de sua conduta ética e profissional. Dentre outras carências, falta tudo isso ao bibliotecário brasileiro. E o pior, é que ele não tem de quem reclamar por essas ausências, pois ao ser dependente e tutelado, o bibliotecário tende a achar que isso é um fenômeno da natureza e não uma contingência do modo de funcionamento da sociedade: oralista, imprevidente e mística. Nem a escola de Biblioteconomia poderia ser culpabilizada por esses medos insabíveis, na medida em que ela é fruto da iniciativa de “quase bibliotecários” e de bibliotecários. Na sua origem, estavam “quase bibliotecários” e bibliotecários que viam a prática bibliotecária como conjunto de instruções para guardar acervos bibliográficos. Nessa circunstância, ao querer saber por que esses medos são parte da sua personalidade, o bibliotecário necessitaria realizar longos exercícios de distanciamento cognitivo e intelectual para o que, salvo exceções, não está pronto a fazer.

 

Expressão: a quase totalidade da produção intelectual publicada ou comunicada em eventos pelo bibliotecário brasileiro dá conta do emprego das técnicas. Estas, cada vez mais vêm se potencializando com o “domínio” das novidades possibilitadas pelos produtores de modernas TIC.

 

Consequência: um grupo cada vez maior de bibliotecários, especialmente as mais recentes gerações egressas dos cursos de Biblioteconomia, tem a crença de que dispor de instruções para apertar botõezinhos e comandar acessos a conteúdos depositados “em nuvens” os tornará os melhores prestadores de serviços de acesso à informação e isso é tudo. É tudo?

 

10 – Medo de saber a quem servem esses medos.

 

Origem: Em seus discursos sobre lugar profissional e sobre futuro de sua profissão os bibliotecários brasileiros costumam transparecer uma consciência de perigo ou de ameaça real, hipotética ou imaginária. Simultaneamente, fica também evidente a ausência de coragem para superar esse estado emocional de grupo. Os dois momentos ao serem conjugados, representam a posição concreta do medo reforçando o próprio medo. Não se trata de saber que o bibliotecário tem medo de ter medo, pois se assim fosse estaria aberta uma possibilidade de mudança de consciência. O que ocorre, com certa evidência, é o seu temor em identificar a que focos de poder esse medo serve. Se pudermos supor que a ação do bibliotecário de âmbito social, que atua em bibliotecas públicas e escolares, potencializaria a tomada de consciência dos utilizadores de seus serviços quanto à origem e responsabilidade dos dramas sociais e que a partir daí essas pessoas se mobilizariam para alterar a ordem estabelecida haveria uma conta a ser paga pelo bibliotecário? Essa conta que seria? Tortura? Condenação? Prisão? Humilhação pública? À falta de claras respostas para essas perguntas, que seriam perguntas pertinentes à expressão do medroso, poderá fazer do bibliotecário um não parceiro do drama social e, portanto, um mero serviçal do poder. Mas que poder? Enfim, como as questões a ser levantadas vão para além destas, e isso toma tempo ao seu trabalho atemporal de armazenar para recuperar a informação, o bibliotecário termina por ver nisso uma fonte de reforço no sentido de não desejar saber quem ganha e o quanto ganha com seus medos.

 

Expressão: no Estatuto da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários – FEBAB –, publicado em 29/12/76, na página 23, do Diário oficial do Estado de São Paulo, consta em seu artigo primeiro que: “A Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários [FEBAB], fundada na Bahia em 26 de julho de 1959 [...] é uma sociedade civil, APOLITICA, [...], que congrega as associações dos profissionais de Biblioteconomia e Documentação em todo o território nacional.” Eu gostaria de entender como pode uma entidade associativa, de caráter profissional, que deve lutar pelo progresso dos membros de uma profissão, se declarar apolítica, senão motivada pelo medo de saber por que tem medo?

 

Consequência: uma aberração possível no ambiente profissional bibliotecário brasileiro é que uma parte relevante de atribuições que por suas características caberia à FEBAB vem sendo executada pelo Conselho Federal de Biblioteconomia, uma entidade paragovernamental, a qual não tem como missão legal representar os interesses profissionais dos bibliotecários, mas, sim, assegurar para a sociedade, em substituição ao Estado, mas por esse delegado, a qualidade da atuação profissional, por habilitá-lo ao exercício legal e fiscalizar sua atuação.


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB