CRÔNICAS E FICÇÃO


LIVROS GOTEJANDO

O barulho da chave girando na fechadura, aquele barulho específico, significava que a biblioteca estava fechada, que terminara suas atividades. Significava também que o bibliotecário teria seu momento, embora pequeno, de tranquilidade.

Sentado na mesa de Referência, tomou um gole de água (ah! se fosse uma cerveja), olhou ao redor e ficou feliz com o silêncio.

Aquela calma se parecia com a ideia que tinha, quando criança, de uma biblioteca. Na época, a biblioteca da escola, que ele tentava frequentar (tanto a biblioteca como a escola), era chata, estava quase sempre fechada e o professor responsável por ela quase não era encontrado para abri-la. No seu imaginário, a biblioteca com que sonhava era um espaço agradável, quieto, com pessoas lendo e gostando do que liam.

A biblioteca de agora, em que ele trabalhava, mesmo fechada, era clara, bem iluminada. Um lugar agradável para trabalhar. Nessas horas ele agradecia a si mesmo por ter escolhido a profissão que exercia.

Aquele dia tinha sido especialmente cansativo, daqueles que não se parava nem mesmo para um café. Muitos usuários com questões complexas ou sobre temas com os quais ele, bibliotecário, não conhecia bem ou não gostava. Entre os usuários, um não sabia ao certo o que precisava. As técnicas da entrevista de referência pouco adiantaram. O usuário saiu descontente e o bibliotecário ficou frustrado. 

Usuário é a alma da biblioteca. Essa é uma verdade, mas também é verdade que alguns (ou muitos deles) são chatos, querem mostrar que são inteligentes ou superiores aos que os estão atendendo. Os bibliotecários costumam contar entre eles, casos pitorescos, engraçados ou nem tanto, que ocorrem durante o processo de referência. 

A frustração no atendimento daquele usuário deixou Francisco pensativo, revendo cada passo, cada etapa da entrevista de referência, desde o momento em que a questão foi apresentada, como ele a havia compreendido, até a entrega de uma resposta, de uma informação que atendia parcial e superficialmente ao que foi solicitado.

Em tempo: o bibliotecário se chamava Francisco. Os colegas de trabalho, em tom de brincadeira – ele achava – diziam que ele era filho do Papa. Ser filho desse Papa até que era algo interessante, pensava ele. Triste seria ser chamado de filho do Bento XVI.

O motivo para ser chamado de Francisco não era conhecido por ele. Houve época em que ele pensou ser uma homenagem ao Rio São Francisco, pois seus pais eram nordestinos. Depois pensou que a homenagem seria para o Francisco Alves, um cantor antigo conhecido como “Rei da Voz” e de quem sua avó era grande fã. Pensou em São Francisco, claro, mas descartou, uma vez que sua mãe era devota de Santa Rita de Cássia. Seu pai não era religioso e se o fosse, talvez rezasse para Santa Edwiges, a santa dos endividados. 

Gostava do Papa, das posturas, das ideias que defendia, mas não se considerava católico. Várias vezes afirmou ser cristão, mas o fez por não ter o que dizer. Não lhe agradava as igrejas. Seriam elas representantes de um Deus, qualquer que fosse ele? Se não era religioso, teria que se considerar ateu? As coisas, para ele, não se resumiam em uma dicotomia, ou seja, é religioso quem frequenta uma igreja e quem não a frequenta é ateu. Ele não se enquadrava em nenhuma dessas duas categorias. Ultimamente, resolveu se apresentar, quando o questionavam sobre isso, como agnóstico. Era de fato um agnóstico? Nem mesmo ele sabia.

O momento de paz e relaxamento era importante para Francisco. Era um preparo para o retorno ao mundo dos não-bibliotecários, ou melhor, ao mundo dos não-bibliotecas. A biblioteca era um refúgio, um lugar contra a tragédia que se vivia lá fora. As coisas e os coisos estavam soltos, se proliferando, se reproduzindo. A cada dia um pouco menos de liberdade. Não sabia ele que em breve a biblioteca deixaria de ser um refúgio para entrar no cerne do redemoinho, não onde se caça Saci, mas onde se destrói a liberdade. 

Para Francisco, viver entre os livros, entre as informações, era algo maravilhoso, ele não trocaria isso por nada. Cansativo? Usuários chatos? Pouco apoio, falta de verbas, falta de reconhecimento? Tudo isso era verdade, mas a biblioteca era o espaço em que as coisas aconteciam, em que a informação circulava. A biblioteca era um dos locais, mesmo inconsciente para muitos, de resistência.

Ainda se revigorando com o silêncio da biblioteca vazia, silenciosa, Francisco, como faz todos os dias em que se acha sozinho, abriu seu diário. Não era um diário tradicional, em que a pessoa escrevia coisas que aconteciam, sentimentos, impressões etc. O de Francisco era algo pessoal, sim, mas que nada havia de secreto ou que não poderia ser revelado. 

No diário estava reproduzido coisas vividas pelo bibliotecário durante o dia a dia da biblioteca, mas relacionadas com pesquisas, atendimentos, sensações em relação a usuários, esse tipo de acontecimento. Às vezes ele fazia anotações durante o trabalho, nas poucas e raras situações em que existia um hiato entre os atendimentos. Naquele dia, no entanto, essas situações que lhe permitiam preencher algo não ocorreram. Cinco ou dez minutos bastavam para preencher algumas informações no diário. A proposta, quando Francisco o idealizou, era fazer preenchimentos mais extensos, no entanto ele percebeu que isso demandava um tempo que ele poderia dedicar a um gole a mais de água e um tempo maior no intervalo entre trabalho e volta pra casa.

Enquanto escrevia, se lembrou de um usuário. Agora, rememorando, mais do que esquisito, perdido, aquele usuário era estranho. Queria saber sobre comunismo. Mas, exatamente o que você quer saber sobre comunismo, questionou Francisco. O usuário, de maneira exasperada, rude, disse que simplesmente o bibliotecário deveria apontar onde estavam os livros sobre aquele assunto, bastava indicar o local, o setor em que eles estavam armazenados. Como haviam outros usuários esperando para serem atendidos, Francisco direcionou o usuário para o setor que ele havia solicitado. 

Qual seria o motivo daquele interesse? Quanto mais pensava, mais ficava curioso. Resolveu se levantar, a contragosto, e seguir até o setor dos livros sobre comunismo. Os usuários, boa parte deles, não tinham ideia de como os livros eram organizados e, assim, imaginavam que todos os assuntos específicos ficavam separados e destacados. 

Passando no meio das estantes, o bibliotecário chegou no local que queria. O que o tal usuário desejava? Teria ele ficado temeroso em procurar por um assunto veladamente proibido, por um assunto tacitamente incluído no rol de temas considerados subversivos? Difícil entender o que se passa na cabeça dos usuários. 

Olhando as estantes e os livros sobre o tema que o usuário desejava, o bibliotecário nada achou de anormal. Foi e voltou pelo corredor até que notou uma pequena e estranha poça de água (seria água?). Quando se aproximou, viu que a poça era escura, quase preta. Se água, estava bem suja. De onde viria aquele líquido? Uma goteira, talvez? O teto parecia normal, nenhuma mancha ou evidência de umidade. Alguém derramara refrigerante? 

Curioso, Francisco se agacha para olhar sob as estantes quando percebe que uma gota caíra de uma estante e que, com certeza, vinha de alguns livros. Abriu um deles e percebeu que as letras caiam, ou melhor, a tinta do livro gotejava e as páginas do livro ficavam sem nenhuma mancha, sem nada escrito, sem nada impresso. E os outros livros? Abriu rapidamente os que estavam ao lado do livro que perdia tinta e, estarrecido, constatou que todos estavam quase em branco. Os livros estavam desaparecendo, não fisicamente, mas seus conteúdos. E o bibliotecário estava no setor do assunto que o estranho usuário procurara.

(Continua)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.