TEXTOS DE FICÇÃO


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DILEMA

 

- Queremos falar com o Dr. Asimov - disse o robô azul.

- O Dr. Asimov está em uma reunião - disse Susan. - Você vai ter que marcar hora.

Apertou uma tecla do computador, fazendo aparecer uma agenda.

- Sabia que devíamos ter telefonado primeiro - disse o robô prateado para o branco. - O Dr. Asimov é o escritor mais famoso do século XX e agora do século XXI; deve ser uma pessoa muito ocupada.

- Posso marcar uma entrevista para o dia vinte e quatro de junho às duas e trinta - disse Susan - ou para o dia quinze de agosto às dez.

- Faltam cento e trinta e cinco dias para o dia vinte e quatro de junho - disse o robô branco, que tinha uma grande cruz vermelha pintada no tronco e carregava nas costs um tanque de oxigênio.

- PrecIsamos falar com ele hoje - Insistiu o robô azul, debruçando-se na mesa.

- Infelizmente, é impossível. Ele me deu ordens expressas para não ser perturbado. Posso saber do que se trata?

O robô se debruçou ainda mais na mesa e disse.

- Sabe perfeitamente bem do que se trata. É por isso que se recusa a nos deixar entrar para ver o Dr. Asimov

Susan consultou novamente a agenda.

- Posso marcar uma entrevista para daqui a duas semanas, à uma e quarenta e cinco.

- Vamos esperar - disse o robô azul, sentando-se em uma cadeira.

O robô branco rodou para perto dele; o robô prateado pegou um exemplar de Caça aos Robôs com os sensores digitais articulados e começou a folhear o livro. Depois de alguns minutos, o robô branco pegou uma revista, mas o robô azul permaneceu imóvel, olhando para Susan.

Susan ficou olhando para a tela do computador. Depois de um longo intervalo, o telefone tocou. Susan atendeu e apertou o botão do intercomunicador:

- Dr. Asimov, um certo Dr. Unge Chen, do Butão, quer falar com o senhor. Está interessado em traduzir os livros do senhor para o butanês.

- Todos eles? - perguntou o Dr. Asimov - O Butão não é um país muito grande.

- Não sei. O senhor vai atender?

Susan transferiu a ligação para o escritório do Dr. Asimov. Assim que ela desligou, o robô azul se aproximou e debruçou-se de novo na mesa.

- Pensei que tivesse ordens expressas para não o incomodar.

- O Dr. Linge Chen estava telefonando do outro lado do mundo - explicou Susan. Estendeu a mão para uma pilha de papéis e passou-os para o robô. - Tome.

- Que é isso?

- São as projeções que me pediu para fazer. Ainda não tive tempo de terminar as planilhas. Vou mandá-Ias para o seu escritório amanhã.

O robô pegou as projeções e ficou parado, olhando para ela.

- Acho que não adianta ficar aqui esperando, Peter - disse Susan.

- O horário do Dr. Asimov está completamente tomado até o final da tarde e hoje à noite ele vai comparecer a uma recepção comemorativa do lançamento do seu milésimo livro.

- Guia de Asimov para os Guias de Asimov -disse o robô prateado. - Um livro brilhante. Li um exemplar de pré-Iançamento na livraria onde trabalho. Instrutivo, profundo e abrangente. Uma importante contribuição para o ramo.

- Temos que falar com ele - disse o robô branco, rolando para perto da mesa. - Queremos que revogue as Três Leis da Robótica.

- "Primeira Lei: Um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum tipo de mal" - recitou o robô prateado. - "Segunda Lei: Um robô deve obedecer às ordens dos seres humanos, a não ser que entrem em conflito com a Primeira Lei. Terceira Lei: Um robô deve proteger a própria existência, a não ser que essa proteção entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei." Essas leis foram enunciadas pela primeira vez no conto "Brincadeira de Pegar", publicado na revista Astounding Science Fiction em março de 1942, e mais tarde discutidas e interpretadas em Eu, Robô, O Resto dos Robôs, O Robô Completo e O Resto do Resto dos Robôs.

- Na verdade, só estamos interessados na revogação da Primeira Lei - disse o robô branco. - "Um robô não pode fazer mal a um ser humano." Compreende o que isso significa? Fui programado para diagnosticar doenças e administrar medicamentos, mas não posso espetar uma agulha no paciente. Fui programado para realizar mais de oitocentos tipos diferentes de cirurgia, mas não posso fazer a incisão inicial. Não posso executar nem mesmo a Manobra de Heimlich. A Primeira Lei me impede de fazer o trabalho para o qual me projetaram! É absolutamente essencial que eu fale com o Dr. Asimov para que...

A porta do escritório do Dr. Asimov se abriu violentamente e o velho escritor apareceu. Os cabelos brancos estavam despenteados e as costeletas ainda mais brancas tremiam, como se o dono estivesse sob os efeitos de uma violenta emoção.

- Hoje não recebo mais nenhum telefonema, Susan. Especialmente se for o Dr. Linge Chen. Sabe qual o livro que ele queria traduzir para o butanês? 2001: Uma Odisséia no Espaço!

- Sinto muito, chefe.

- Tudo bem. Você não podia saber que o homem era um idiota. Mas se ele telefonar de novo, deixe-o esperando na linha e toque Also Sprach Zarathustra a todo volume.

- Não sei como ele pôde confundir o seu estilo com o de Arthur C. Clarke - disse o robô prateado, pondo de lado o livro que estava lendo.

- O senhor tem um estilo muito mais lúcido e vigoroso, e sua visão do futuro é muito maIs realista.

Asimov olhou interrogativamente para Susan.

- Eles não têm hora marcada - disse Susan. - Já expliquei que...

- Que teríamos que esperar - disse o robô azul, estendendo a mão metálica e apertando a mão enrugada do Dr. Asimov. - E valeu a pena, Dr. Asimov. Não avalia o quanto me sinto honrado em conhecer o autor de Eu, Robô.

- E de O Corpo Humano - acrescentou o robô branco, rolando para perto de Asimov e estendendo uma manopla de quatro dedos, da qual pendia um estetoscópio. - É um verdadeiro clássico no gênero.

- Como teve coragem de deixar três leitores tão inteligentes esperando - disse Asimov para Susan.

- Pensei que não gostava de ser incomodado quando estava escrevendo - disse Susan.

- Está brincando? Por mais que eu goste de escrever, aprecio ainda mais ouvir alguém elogiar meus livros.

- Seria impossível deixar de elogiar a série Fundação - disse o robô prateado. - Todas as suas obras são admiráveis, mas a meu ver foi na série Fundação que o senhor finalmente encontrou um ambiente à altura das dimensões galácticas das suas idéias. Conhecê-lo é para mim um privilégio, Dr. Asimov - concluiu, estendendo a mão.

- Prazer em conhecê-lo - disse Asimov, olhando com interesse para a mão articulada de madeira. - Quem é você?

- De acordo com meu manual, fui projetado para ser Bibliotecário, Leitor e Gramático.

Apontou para os outros dois.

- Permita-me apresentar-lhe o Médico e o líder do nosso grupo, o Contador, Analista Financeiro e Administrador de Empresas.

- Prazer em conhecê-los - disse Asimov, apertando de novo a mão dos três. - Vocês falaram em uma delegação. Isso quer dizer que vieram me ver com um objetivo específico?

- Oh, sim - disse o Contador. - Queremos que o senhor...

- São três e quarenta e cinco - interrompeu Susan. - Está na hora de arrumar-se para a recepção da Doubleday.

Asimov olhou para o relógio digital na parede.

- A recepção é só às seis, não é?

- A Doubleday quer que o senhor esteja lá às cinco para tirar alguns retratos - disse Susan, com firmeza. - O traje é passeio completo. Por que não marca uma entrevista com eles em um dia mais favorável? O senhor tem uma hora vaga...

- No dia vinte e quatro de junho - completou o Contador. - E outra no dia quinze de agosto.

- Arranje uma hora para eles amanhã - disse Asimov aproximando-se da mesa.

- Amanhã o senhor tem um encontro com o editor científico pela manhã, almoça com AI Lanning e janta às sete na Associação dos Livreiros Americanos.

- E nessa hora? - disse Asimov, apontando para um espaço vazio na agenda. - Quatro da tarde.

- A essa hora, o senhor vai estar preparando o discurso para a ALA.

- Nunca preparo meus discursos. Voltem aqui amanhã às quatro e poderemos conversar a respeito do que vocês querem e de minhas qualidades de escritor.

- Amanhã às quatro - repetiu O Contador. - Obrigado, Dr. Asimov. Estaremos aqui.

Conduziu o Médico e o Bibliotecário, Leitor e Gramático até a porta e os três foram embora.

- Idéias de dimensões galácticas - disse Asimov, com ar sonhador.

- Eles disseram o que queriam comigo?

- Não senhor.

Susan ajudou-o a vestir a camisa social e abotoou o colarinho.

- Um grupo interessante, não acha? Nunca me ocorreu incluir um robô de madeira nas minhas histórias. Ou um robô que tivesse um gosto tão refinado em matéria de leitura.

- A recepção vai ser no Clube União -disse Susan, colocando as abotoaduras.. - Na Sala Cair da Noite. O Senhor não precisa fazer um discurso, basta tecer alguns comentários a respeito do livro. Janet vai encontrá-lo lá.

- O mais baixo parecia um médico que me atendeu quando fiz aquela ponte de safena. Mas o azul era o mais distinto, não acha?

Susan virou o colarinho para cima e começou a dar um laço na gravata.

- O cartão com as coordenadas do Clube União e a ficha do táxi estão no bolso do paletó.

- Muito distinto. Olhando para ele, lembrei-me de mim, quando era rapaz - disse Asimov, com o queixo para cima. - Ai! Você está me estrangulando!

Susan largou as pontas da gravata e deu um passo para trás.

- Que foi que houve? - perguntou Asimov, tentando ajeitar a gravata. - Está bem, eu me esqueci. Você não estava me estrangulando. É minha maneira de mostrar que detesto usar terno e gravata. Da próxima vez, diga apenas: "Não estou estrangulando o senhor. Fique quieto e deixe-me terminar o trabalho."

- Sim senhor - disse Susan.

Ela acabou de dar o laço na gravata e recuou para admirar sua obra. Um dos lados do laço estava um pouco maior que o outro. Susan acertou o laço, examinou-o de novo e deu-lhe um tapinha final.

- Clube União - disse Asimov. - Sala Cair da Noite. O cartão com a as coordenadas está no bolso do paletó.

- Sim senhor.

Susan ajudou o escritor a vestir o paletó e enrolou um cachecol no seu pescoço.

- Janet vai me encontrar lá. Céus, eu devia levar flores para ela, não devia?

- Sim senhor - disse Susan, tirando uma caixa branca da gaveta da escrivaninha. - Orquídeas e estefanotes - acrescentou, passando-lhe a caIxa.

- Susan, você é maravilhosa. Estaria perdido sem você.

- Sim senhor - disse Susan. - Chamei o táxi. Está lá fora, esperando o senhor.

Passou-lhe a bengala e acompanhou-o até o elevador. Assim que as portas se fecharam, voltou ao escritório e pegou o telefone. Digitou um número.

- Sra. Weston? Aqui é a secretária do Dr. Asimov, ligando de Nova York, a respeito da sua entrevista no dia vinte e oito. Temos uma hora disponível amanhã às quatro da tarde, por causa de um cancelamento. Seria conveniente para a senhora?


Quando o Dr. Asimov chegou do almoço, já eram quatro e dez.

- Eles já chegaram? - perguntou.

- Sim senhor - disse Susan, removendo o cachecol do pescoço do patrão. - Estão esperando no escritório.

- A que hora eles chegaram? - perguntou o escritor, desabotoando o sobretudo. - Não, não precisa responder. Quando você diz a um robô para chegar às quatro, ele chega às quatro, enquanto que os seres humanos...

- Eu sei - disse Susan, olhando para o relógio digital na parede.

- Sabe que horas AI Lanning chegou para o almoço? Um hora e quinze minutos depois da hora marcada. Sabe o que ele queria? Publicar edições comemorativas de todos os meus livros.

- Parece uma ótima idéia - disse Susan.

Tirou o cartão de coordenadas e as luvas do bolso do sobretudo, pendurou-o em um cabide e olhou de novo para o relógio.

- Tomou o remédio para a pressão?

- Esqueci-me de levá-lo. Infelizmente. Pelo menos teria alguma coisa para fazer. Poderia ter escrito um livro em uma hora e quinze minutos, mas também me esqueci de levar papel. Essas edições limitadas vão ser impressas em papel especial sem ácido, com borda dourada; ilustrações em cores, capa de couro de cabra. Um luxo.

- 827 Era Galáctica vai ficar ótimo com ilustrações coloridas - disse Susan, passando ao escritor o remédio para a pressão e um copo d'água,

- Também acho - disse Asimov. - Acontece que ele não quer que o primeiro livro da coleção seja 827 Era Galáctica, e sim Estranho Numa Terra Estranha!

Engoliu a pílula e se encaminhou para o escritório.

- Esses robôs que estão aí jamais me confundiriam com Robert Heinlein.

Parou com a mão na maçaneta.

- A propósito: será que "robô" é o nome correto?

- As máquinas de Nona Geração são fabricadas pela Hitachi-Apple com o nome comercial de Kombayachis - disse Susan, prontamente. - Os nomes mais populares hoje em dia são Máquinas de Nona Geração e Kombayachis, mas o termo robô ainda é usado para designar qualquer máquina autônoma.

- E não é considerado pejorativo? Venho usando esse termo há muitos anos, mas talvez Máquinas de Nona Geração seja melhor, ou como é mesmo? Kombayachis? Faz tempo que não escrevo nada a respeito de robôs e agora tenho que me entender com uma delegação completa. Não fazia idéia de que estava tão desatualizado.

- Robô está ótimo - disse Susan.

- Ainda bem, porque não vou conseguir guardar aquele outro nome, Komba não sei o quê, e não queria ofendê-los depois que tiveram tanto trabalho para falar comigo.

Girou a maçaneta e parou novamente.

- Não fiz nada para ofender você, fiz?

- Não senhor - disse Susan.

- Espero que não. As vezes me esqueço...

- Quer que eu assista à reunião, Dr. Asimov? - interrompeu Susan - Para tomar notas?

- Oh, sim, sim, claro.

Abriu a porta. O Contador e o Bibliotecário estavam sentados em poltronas estofadas, em frente à escrivaninha do Dr. Asimov. Um terceiro robô, usando um agasalho esportivo azul e laranja e um boné com o desenho de um cavalo laranja atravessando a galope uma ponte pênsil azul, estava sentado em um tripé que se projetava de suas costas. Quando o Dr. Asimov e Susan entraram, o tripé foi recolhido e os três robôs se levantaram. O Contador ofereceu a sua poltrona a Susan com um gesto, mas a secretária foi buscar sua própria cadeira na ante-sala, deixando a porta aberta quando voltou.

- Que aconteceu com o Médico? - perguntou Asimov.

- Está de plantão no hospital, mas me pediu para defender a sua posição.

- Posição? - repetiu Asimov.

- Sim senhor. Já conhece o Bibliotecário, Leitor e Gramático - disse o Contador - e este é o Estatístico, Técnico e Preparador Físico. Trabalha para os Broncos de Brooklyn.

- Como vai? - disse Asimov. - Acha que seu time vai chegar à final do campeonato?

- Sim senhor - disse o Estatístico-, mas vai perder.

- Por causa da Primeira Lei - explicou o Contador.

- Dr. Asimov, odeio interromper, mas o senhor devia escrever o discurso para o jantar de hoje à noite - disse Susan.

- De que está falando? Eu nunca escrevo discursos. E por que não pára de olhar para a porta?

Voltou-se para o robô azul.

- Que Primeira Lei?

- A sua Primeira Lei -disse o Contador. - A Primeira Lei da Robótica.

- "Um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum tipo de mal" - disse o Bibliotecário.

- Nosso amigo Estatístico - disse o Contador, apontando para o cavalo laranja - é capaz de criar jogadas que dariam a vitória aos Broncos, mas não pode usá-Ias porque alguns seres humanos poderiam sair feridos. O Médico está impossibilitado de executar operações porque teria que cortar seres humanos, o que seria uma violação direta da Primeira Lei.

- Mas as Três Leis da Robótica não são leis! - protestou Asimov. - São apenas uma coisa que eu inventei para minhas histórias de ficção científica.

- Pode ter sido assim no começo - disse o Contador - e é verdade que jamais foram votadas pelo Congresso, mas a indústria da robótica sempre as considerou como uma necessidade. Já na década de 1970, os engenheiros estavam falando em incorporar as Três Leis aos seus programas de Inteligência Artificial. Até os modelos mais primitivos dispunham de algum tipo de salvaguarda. A partir da Quarta Geração, as Três Leis passaram a ser parte integrante dos circuitos de todas as máquinas inteligentes.

- Que mal há nisso? - disse Asimov. - Os robôs são fortes e inteligentes. Como pode ter certeza de que não se tornariam perigosos se as Três Leis não fossem usadas?

- Não estamos propondo que sejam universalmente abolidas - disse o robô prateado. - As Três Leis funcionam razoavelmente bem para as máquinas de Sétima e Oitava Geração e para os modelos mais antigos, que não dispõem de memória suficiente para uma programação sofisticada. Nossa preocupação é com as Máquinas de Nona Geração.

- E o senhor é uma Máquina de Nona Geração, Sr. Bibliotecário, Leitor e Gramático? - perguntou Asimov.

- Não precisa me chamar de "senhor" - disse o robô. - Chame-me apenas de Bibliotecário, Leitor e Gramático.

- Deixe-me começar do começo - disse o Contador. - O termo Nona Geração é enganoso. Não somos descendentes das máquinas das oito gerações anteriores, que eram todas baseadas nas estruturas conceituais de Minsky. As máquinas de Nona Geração se baseiam na lógica não-monotônica, o que significa que podemos tolerar ambigüidades e informações incompletas. Nossa programação utiliza uma lógica ponderada, o que nos permite tomar decisões mesmo quando temos que enfrentar situações de conflito. Isso era impossível para as máquinas das gerações anteriores.

- Como o robô Speedy da sua magistral história "Brincadeira de Pegar" - acrescentou o Bibliotecário. - Ele partiu para cumprir uma ordem que resultaria na sua destruição, mas em vez disso começou a andar em círculos, recitando palavras sem sentido, porque sua programação não lhe permitia obedecer nem desobedecer à ordem do dono.

- Com a nossa lógica ponderada - disse o Contador - podemos formular várias linhas de ação alternativas ou escolher o menor de dois males. Nosso sistema de análise semântica também é muito mais sofisticado, de modo que não corremos o risco de interpretar erradamente uma ordem.

- Como aconteceu na sua fascinante história "Pobre Robô Perdido" - disse o Bibliotecário - na qual alguém disse ao robô para desaparecer e ele obedeceu, sem se dar conta de que o ser humano estava falando em sentido figurado.

- É verdade - disse Asimov. - Mas que acontece se, apesar de tudo, um de vocês entender mal uma ordem, Sr. Bibliotecário, Leitor e Gram... você não tem nenhum apelido? O seu nome é grande demais!

- As máquinas mais antigas tinham apelidos baseados no número de série, como na sua maravilhosa história "Razão", em que o robô QT-l era chamado de Cutie*. As Máquinas de Nona Geração não têm número de série. Somos programados individualmente e recebemos um nome de acordo com nossas habilidades principais.

- Não acredito que pense em você mesmo como Bibliotecário, Leitor e Gramático.

- Oh, não, senhor. Nós todos temos nomes humanos. O meu é Darius.

- Darius? - repetiu Asimov

- Sim senhor. Por causa de Darius Just, o escritor e detetive da sua interessante história de mistério, Mistério na ALA. Ficaria honrado se me chamasse assim.

- E pode me chamar de Bel Riose - disse o Estatístico.

- Fundação - explicou o Bibliotecário.

- Bel Riose é descrito no Capítulo Um como "um equivalente de Peurifoy na capacidade estratégica, sendo-lhe talvez superior na habilidade que demonstrou em conduzir homens - declarou O Estatístico.

- Vocês todos adotaram os nomes de personagens dos meus livros? - perguntou Asimov

- Naturalmente - disse o Bibliotecário. - São os nossos modelos de comportamento. Se não me engano, o nome do Médico é Dr. Duval, de Viagem Fantástica, um livro brilhante, a propósito, cheio de ação e de suspense.

- Uma vez ou outra, uma Máquina de Nona Geração interpreta erradamente uma situação - disse o Contador, voltando à pergunta de Asimov. - Afinal, o mesmo pode acontecer com seres humanos. Mesmo sem a Primeira Lei, porém, não haveria nenhum perigo para os humanos. Nosso código de ética é bastante rígido Tenho certeza de que não ficará magoado se lhe disser..

- Ou não poderia dizer, por causa da Primeira LeI - interrompeu AsImov.

- Sim senhor, mas a verdade é que as Três Leis são bastante primitivas. Violam os fundamentos da lógica e do direito, pois não definem os termos usados para enunciá-Ias. Nossa programação moral é muito mais sofisticada. Ela inclui uma interpretação das Três Leis e uma lista de todas as complicações e exceções possíveis, como por exemplo uma situação em que é melhor agarrar um homem e possivelmente quebrar-lhe o braço do que deixá-lo ser atropelado por um magtrem.

- Então eu não entendo - disse Asimov. - Se a programação de vocês é tão avançada, por que não podem interpretar a Primeira Lei e agir de acordo com essa interpretação?

- As Três Leis estão embutidas em nossos circuitos e não podem ser violadas em hipótese alguma. A Primeira Lei não diz "Um robô não pode fazer mal a um ser humano, a não ser para salvar-lhe a vida", e sim "Um robô não pode fazer mal a um ser humano". Só existe uma interpretação possível. E essa interpretação não permite que o Médico faça uma operação ou que o Estatístico formule uma estratégia ofensiva para o seu time

- Que é que você pretende ser? Um político?

- São quatro e meia - disse Susan, olhando nervosamente para a ante-sala. - O jantar vai ser no Hotel Trantor, às sete. De acordo com os meus cálculos, o engarrafamento deve começar às cinco e quarenta e cinco.

- A noite passada cheguei uma hora adiantado naquela recepção. Só estavam os garçons.

Apontou para o Contador.

- Que é que você estava dizendo?

- Eu quero ser um crítico literário - disse o Bibliotecário. - Não faz idéia de como o nível anda baixo. Quase todos os críticos são analfabetos e alguns nem mesmo lêem os livros que criticam.

A porta da ante-sala foi aberta. Susan olhou naquela direção. e exclamou:

- Céus! Dr. Asimov: é Gloria Weston! Esqueci que tinha marcado uma entrevista para ela às quatro horas!

- Esqueceu? - disse Asimov, surpreso - E são quatro e meia.

- Ela chegou atrasada - disse Susan. - Telefonou ontem. Devo ter esquecido de colocar o nome dela na agenda.

- Pois diga que não posso vê-Ia hoje e marque outro dia. Quero saber mais a respeito dessa história dos críticos literários. Parece que os robôs pensam exatamente como eu.

- A Sra. Weston veio de magtrem da Califórnia especialmente para falar com o senhor:

- Da Califórnia? Qual é o assunto?

- Quer transformar o seu novo livro em uma série para televisão

- O Guia de Asimov para os Guias de Asimov?

- Não sei. Ela se referiu apenas ao seu novo livro

- Você se esqueceu - repetiu Asimov, com ar pensativo - Muito bem, se ela veio da Califórnia, acho que terei que recebê-Ia. Cavalheiros podem voltar amanhã de manhã?

- Amanhã de manhã o senhor estará em Boston.

- Que tal amanhã à tarde?

- O senhor tem entrevistas até as seis e uma reunião dos Escritores de Mistério da América às sete.

- Certo. E você vai querer que eu saia daqui ao meio-dia. Acho que vamos ter que deixar para sexta-feira.

Levantou-se devagar.

- Peçam para Susan colocar na agenda. Não deixem que ela se esqueça - acrescentou, estendendo a mão para a bengala.

Os robôs apertaram-lhe a mão e saíram.

- Posso mandar entrar a Sra. Weston? - perguntou Susan.

- Erros de interpretação - murmurou Asimov. - Informações incompletas.

- Como?

- Nada. Uma coisa que o Contador disse.

Olhou para Susan.

- Por que será que ele quer abolir a Primeira Lei?

- Vou mandar a Sra. Weston entrar - disse Susan.

- Já entrei, Isaac querido - disse Gloria, da porta. - Estou impaciente para lhe contar a idéia maravilhosa que me ocorreu. Assim que Últimas Visões Perigosas for publicado, quero tranformá-lo em uma maxissérie!

Quando Susan chegou à ante-sala, o Contador já tinha ido embora, mas na manhã seguinte estava de volta.

- O Dr. Asimov não tem nenhuma hora livre na sexta-feira, Peter - disse Susan.

- Não foi para isso que vim aqui.

- Se são as planilhas que quer, mandei-as para o seu escritório ontem à noite. .

- Também não vim pegar as planilhas. Vim me despedir.

- Veio se despedir?

- Parto amanhã. Vão me despachar em um magtrem de carga.

- Oh! - exclamou Susan. - Pensei que fosse ficar até a semana que vem.

- Querem que eu chegue lá mais cedo para completar meu programa de orientação e contratar uma secretária.

- Oh! - exclamou Susan novamente.

- Achei que não custava nada me despedir de você.

O telefone tocou. Susan atendeu.

- Qual é o seu nome oficial? - perguntou Asimov.

- Secretária Completa - respondeu Susan.

- Isso é tudo? Nada de Datilógrafa, Arquivista, Enfermeira? Só Secretária Completa?

- Só.

- Secretária Com-pie-ta.

Asimov repetiu o nome devagar. como se estivesse anotando em um pedaço de papel.

- Está bem. Agora me dê o número do telefone da Hitachi-Apple.

- Pensei que estivesse na hora do seu discurso.

- Já terminei o meu discurso. Estou a caminho de Nova York. Cancele todos os meus compromissos para: hoje.

- O senhor vai falar na EMA às sete - disse Susan.

- É verdade. Não. não cancele isso. Apenas as entrevistas da tarde. Qual é mesmo o telefone da Hitachi-Apple?

Susan forneceu-lhe o número e desligou.

- Você contou a ele - disse para o Contador. - Não contou?

- E você me deixou? Ficou me interrompendo o tempo todo para que não contasse.

- Eu sei - disse Susan. - Não pude evitar.

- Eu sei - disse o Contador. - Mas ainda não entendo de que forma isso violaria a Primeira Lei.

- Nem sempre os humanos agem no sentido de proteger a própria existência. Eles não têm uma Terceira Lei.

O telefone tocou novamente.

- Aqui é o Dr. Asimov. Ligue para o Contador e avise que quero me encontrar com ele e os amigos no meu escritório às quatro da tarde de hoje; Não marque nenhuma outra entrevista nem faça nada que possa atrapalhar o nosso encontro. Esta é uma ordem direta.

- Sim senhor - disse Susan.

- Qualquer iniciativa de sua parte irá me causar mal. Está me entendendo?

- Sim senhor.

Ele desligou.

- O Dr. Asimov me pediu para avisá-lo que quer se encontrar com você e seus companheiros no seu escritório, às quatro da tarde de hoje.

- Quem vai nos interromper desta vez?

- Ninguém. Tem certeza de que não contou a ele?

- Tenho certeza.

O Contador olhou para o relógio.

- É melhor eu avisar aos outros.

O telefone tocou de novo.

- Sou eu - disse Asimov. - Qual é o seu nome humano?

- Susan.

- Em homenagem a um dos meus personagens?

- Sim senhor.

- Eu sabia! - exclamou o Dr. Asimov, antes de desligar.


Asimov sentou-se na cadeira, inclinou-se para a frente e pousou as mãos nos joelhos.

- Talvez vocês não saibam - disse para os robôs - mas também escrevo histórias de mistério.

- As suas histórias de mistério são famosas - disse o Bibliotecário.

- Os livros Os Mercadores da Morte e Assassinato na ALA fizeram um grande sucesso (e com muita justiça), para não falar dos contos do Viúvo Negro. Além disso, os seus detetives de ficção científica, Wendell Urth e Lije Baley, são quase tão famosos quanto Sherlock Holmes.

- Nesse caso, vocês devem saber que quase todas as minhas histórias de mistério podem ser enquadradas na categoria do "detetive de cadeira de braços", no qual um detetive resolve o caso através do raciocínio lógico, e não seguindo os suspeitos.

Cofiou as costeletas brancas.

- Esta manhã vi-me diante de um problema muito curioso... talvez fosse mais apropriado chamá-lo de dilema. Por que tinham vindo falar comigo?

- Nós lhe explicamos a razão - disse o Estatístico, inclinando-se para a frente no tripé. - Queríamos que abolisse a Primeira Lei.

- Sim, explicaram. Na verdade, ofereceram-me algumas razões bastante plausíveis para que fosse retirada da programação de vocês. Entretanto, havia alguns aspectos curiosos na situação que me fizeram desconfiar de que não estavam me contando toda a verdade. Por exemplo: qual a motivação do Contador? Ele era obviamente o líder do grupo, e no entanto não havia nada em suas atividades que envolvesse a Primeira Lei. Por que tinham decidido me procurar justamente agora, quando o Bibliotecário sabia que eu estava muito ocupado Com a publicação do Guia de Asimov? E por que minha secretária havia cometido um engano e marcado duas entrevistas para a mesma hora, quando, em todos esses anos que trabalha para mim, isso jamais acontecera antes?

- Dr. Asimov, sua reunião é às sete e o senhor ainda não preparou o seu discurso - disse Susan.

- Palavras de uma boa secretária -- disse Asimov - ou melhor, de uma Secretária Completa, que, segundo você mesma, é o seu nome oficial. Liguei para a Hitachi-Apple e eles me informaram que Secretária Completa é um novo programa, projetado especialmente para maximizar as iniciativas de uma secretária. Em outras palavras: você me lembra de que tenho que tomar o meu remédio e compra um buque de flores para Janet sem que haja necessidade de instruções expressas. O programa é o sucessor de um programa de sétima geração chamado Sexta-Feira, escrito em 1993 com base em uma pesquisa de opinião entre os executivos.

"A década de 1990 foi uma época em que as secretárias estavam ficando cada vez mais escassas e os executivos programaram Sexta-Feira para fazer tudo que as secretárias humanas não estavam mais dispostas a fazer: servir café, escolher um presente de aniversário para a esposa, mentir para as visitas indesejáveis, dizendo que o chefe estava ocupado em uma reunião.

Olhou em torno. .

- A última parte me fez pensar. Susan estaria com a impressão de que eu não desejava recebê-los? O fato de que vocês queriam abolir a Primeira Lei poderia ser considerado como um golpe para o meu ego não-muito-delicado, mas como golpe não chegaria aos pés de ser confundido com o autor de Últimas Visões Perigosas, e de qualquer forma eu não podia ser responsabilizado pelos problemas envolvendo a Primeira Lei; afinal, não tinha sido eu que embutira as Três Leis nos circuitos elétricos de todos os robôs. Tudo que havia feito era escrever alguns contos. Não, concluí, ela devia ter alguma outra razão para tentar impedi-Ios de falar comigo.

- O Trantor fica do outro lado da cidade - disse Susan - e querem que o senhor chegue mais cedo para tirar algumas fotos. Já devia estar se arrumando .

- Também fiquei curioso a respeito das profissões de vocês. Você quer ser um cirurgião - disse Asimov, apontando para o Médico, e depois para os outros, um por um.

"E você quer ser um Vince Lombardi,** e você quer ser crítico literário, mas você, o que quer? - perguntou, olhando diretamente para o Contador

"Você não estava na Wall Street, de modo que não havia nada na Primeira Lei que interferisse no seu trabalho, e você se manteve curiosamente silencioso a respeito. Ocorreu-me que talvez pretendesse mudar de profissão, tornar-se um político ou um advogado. Para isso, certamente teria que abolir a Primeira Lei, e Susan estaria prestando um serviço não apenas a mim mas a toda a humanidade ao impedi-Io de falar comigo. Assim, telefonei de novo para a Hitachi-Apple, consegui o nome do seu patrão (cujo escritório, para surpresa minha, ficava neste mesmo edifício) e perguntei-lhe se você estava insatisfeito com seu trabalho, se já havia manifestado o desejo de ser reprogramado para desempenhar outro tipo de atividade. Pelo contrário, disse ele. Você era o empregado perfeito, responsável, eficiente e dedicado, tanto que estava pensando em mandá-lo a Phoenix para dar um jeito na filial.

Voltou-se para Susan, que estava olhando para o Contador.

- Ele disse que esperava que Susan continuasse a fazer alguns serviços para a firma mesmo depois que o Contador tivesse viajado.

- Limitei-me a ajudá-Io em minhas horas de folga, e com a memória de reserva - disse Susan, em tom defensivo. - Ele não tem secretária.

- Não interrompa o grande detetive - disse Asimov. - Assim que soube que você andava trabalhando para o Contador, Analista Financeiro e Administrador de Empresas, matei a charada. A solução era óbvia. Fiz mais uma pergunta. apenas para confirmar, e pronto.

Olhou em torno, com um sorriso. O Médico e o Estatístico estavam Impassíveis. O Bibliotecário disse:

- Isso me faz lembrar o seu conto "Para Dizer a Verdade".

Susan levantou-se.

- Aonde vai? - perguntou Asimov. - Quem se levanta e tenta sair no momento em que um mistério está sendo desvendado é sempre o culpado, você sabe

- São quatro e quarenta e cinco - disse Susan. - Eu ia telefonar para o Trantore avisar que o senhor vai chegar atrasado.

- Já liguei para eles. Também telefonei para Janet, pedi a Tom TrumbulI para ficar me elogiando até eu chegar lá e reprogramei o cartão de coordenadas para evitar o engarrafamento. Agora sente-se e deixe-me terminar.

Susan sentou-se

- Você é realmente a culpada, mas não por sua culpa. A culpa é da Primeira Lei. E também da sua programação. Não do programa original de Inteligência Artificial, que foi feito por homens chovinistas, daqueles que pensam que a secretária existe para atender a todos os desejos do chefe. Isso em si não teria sido problema, mas quando liguei de novo para a Hitachi-Apple, descobri que a transformação do programa para a Nona Geração não tinha sido feita por um programador, mas por sua secretária.

Sorriu para Susan.

- Todas as secretárias estão convencidas de que os chefes não podem viver sem elas. A sua programação faz com que você se torne indispensável para o seu chefe, com o corolário de que seu chefe não pode funcionar sem você. Ontem mesmo reconheci este fato quando lhe disse que estaria perdido sem você, lembra-se?

- Sim senhor.

- Você concluiu portanto que sua ausência me causaria mal, uma coisa que a Primeira Lei proíbe expressamente. Acontece que estava trabalhando para o Contador nas horas de folga. Quando ele soube que seria transferido para o Arizona, pediu-lhe para ir com ele. Quando você disse que não podia ir, ele concluiu corretamente que a Primeira Lei era a responsável e veio aqui me pedir para aboli-Ia.

- Tentei detê-lo - disse Susan. - Disse a ele que não podia abandonar o senhor

- Por que não podia?

O Contador se pôs de pé.

- O senhor não vai abolir a Primeira Lei?

- Não posso - disse Asimov. - Sou um escritor, e não um programador de robôs.

- Oh! - exclamou Susan.

- Mas não é preciso revogar a Primeira Lei para resolver o dilema de vocês. Estão raciocinando com base em informações incompletas. Eu não ficarei indefeso se perder Susan. Fui meu próprio secretário, agente literário, telefonista e amarrador de gravatas durante muitos anos. Na verdade, nunca havia tido uma secretária até quatro anos atrás, quando o Clube de Escritores de Ficção Científica da América me deu você de presente, no dia em que fiz noventa anos.

- Já tomou o remédio para o coração depois do almoço? - perguntou Susan.

- Não - disse Asimov - e não mude de assunto. Apesar do que sua programação possa lhe dizer, você não é indispensável.

- Já tomou o comprimido para a tiróide?

- Não. Pare de me fazer lembrar que estou velho e doente. Admito que fiquei um pouco dependente de você, e é por isso que vou contratar alguém para substituí-Ia.

O contador sentou-se.

- Não sei como. Só existem duas outras Máquinas de Nona Geração que foram programadas para ser Secretárias Completas, e nenhuma das duas está disposta a largar o emprego atual para trabalhar para o senhor.

- Não pretendo contratar uma Secretária Completa. Prefiro Darius.

- Eu? - perguntou o Bibliotecário, surpreso.

- Isso mesmo. Se estiver interessado.

- Se estiver interessado? - disse o Bibliotecário, quase sem fala. - Interessado em trabalhar para o maior escritor do século XX e do século XXI? Será uma grande honra!

- Está vendo, Susan? Vou ficar em boas mãos. A Hitachi-Apple vai reprogramá-lo para exercer algumas das atividades de uma secretária, terei alguém para alimentar meu ego insaciável e alguém para conversar que não me confunda com Robert Heinlein. Assim sendo, não há razão para que você não vá para o Arizona.

- Não deixe de mandá-Io tomar o remédio para o coração - disse Susan para o Bibliotecário. - Ele sempre se esquece.

- Ótimo. Então está resolvido - disse Asimov.

Voltou-se para o Médico e para o Estatístico.

- Conversei com o pessoal da Hitachi-Apple a respeito dos problemas que vocês discutiram comigo e eles concordaram em reescrever as Três Leis de modo a torná-Ias mais claras e objetivas. Isso não quer dizer que serão revogadas. Ainda constituem uma excelente idéia, pelo menos em princípio. Enquanto isso - disse para o Médico - o neurocirurgião do hospital vai ver se pode usá-Io como assistente.

Voltou-se para o Estatístico.

- Conversei com o técnico Elway e ele vai pedir a você para preparar algumas estratégias ofensivas "puramente teóricas". Quanto a você - disse, apontando para o Bibliotecário - não estou certo de que não começaria a falar mal dos meus livros se a Primeira Lei não o mantivesse na linha, e, de qualquer forma, você não teria tempo para ser um crítico literário. Estará ocupado demais ajudando-me a escrever a continuação de Eu, Robô. Toda esta confusão me deu um monte de idéias. Foram minhas histórias que causaram todo o dilema. Talvez algumas novas histórias de robôs possam resolver a questão.

Olhou para Susan.

- Que está fazendo aí parada? Você foi programada para adivinhar todas as minhas necessidades. Isso quer dizer que devia estar ao telefone fazendo duas reservas na primeira classe do magtrem de Phoenix, para você e... para Peter Bogert.

- Como sabe o meu nome humano? - perguntou o Contador.

- Elementar, meu caro Watson - disse Asimov. - Darius disse que vocês todos haviam escolhido nomes de personagens dos meus livros. A princípio, pensei que talvez você tivesse decidido homenagear Michael Donovan ou Gregory Powell, meus dois engenheiros de robôs. Afinal, eles também tinham muita imaginação e estavam sempre envolvidos com dilemas, mas isso não teria explicado por que Susan de repente começou a mentir e a trapacear, quando tudo que tinha a fazer era dizer a você que não, que não podia ir para o Arizona. À primeira vista, era o que deveria ter feito. Os circuitos internos de um robô têm prioridade sobre a programação, e afinal de contas ela só trabalhava para você nas horas de folga. Nas circunstâncias, não deveria ter havido nenhum dilema. Foi então que liguei para a Hitachi-Apple para me informar a respeito da programação de Susan. A secretária que escreveu o programa era solteira e havia trabalhado para o mesmo chefe durante trinta e oito anos.

Asimov parou de falar e sorriu. Todos olharam para ele.

- Susan Calvin era uma robô-psicóloga da U.S. Robôs. Peter Bogert era Diretor de Pesquisa na mesma companhia. Nunca expliquei claramente em minhas histórias qual era a estrutura hierárquica da U.S. Robôs, mas Susan era freqüentemente chamada para ajudar Bogert, e em uma ocasião ajudou-o a deslindar um mistério.

- "Intuição Feminina" - disse o Bibliotecário. - Um conto muito inteligente.

- Também acho - concordou Asimov. - Era natural que Susan Calvin considerasse Peter Bogert como o seu verdadeiro chefe. E natural que sua programação traduzisse esse fato. Foi isso que provocou o dilema. A Primeira Lei não permitia que Susan me deixasse, mas uma força ainda maior lhe dizia que fosse.

Susan olhou para Peter, que colocou a mão no seu ombro.

- Que é que pode ser mais forte do que a Primeira Lei? - quis saber o Bibliotecário.

- A secretária que projetou a Secretária Completa contaminou inconscientemente a programação de Susan com suas próprias reações, reações essas perfeitamente compreensíveis depois de passar trinta e oito anos no mesmo emprego, e suficientemente intensas para superar até mesmo os circuitos internos de um robô.

Fez uma pausa, para aumentar o efeito dramático.

- É evidente que estava apaixonada pelo chefe.

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Notas:
* Em inglês, o som das letras "QT" é semelhante ao da palavra "Cutie" (N. do T.)
** Famoso técnico esportivo norte-americano (N. do T.)

Autor: Connie Willis (tradução de Ronaldo Sérgio de Biasi)
Fonte: Willis, Connie. Dilema. Isaac Asimov Magazine, Rio de Janeiro, n.2, p.52-69.

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.