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FATO, IDEOLOGIA, UTOPIA

Fala-se muito hoje em dia em sociedade do conhecimento, tema ao qual foi consagrado um simpósio da Unesco, em dezembro do ano passado, em Nápoles. Mas falar muito sobre algo não nos dispensa de indagar sobre o que, exatamente, estamos falando. A sociedade do conhecimento é um fato? É uma ideologia? Ou é uma utopia? A meu ver, é um pouco das três coisas.

O conceito de sociedade do conhecimento se baseia em um fato indiscutível, que pode ser confirmado empiricamente: o conhecimento científico-tecnológico passou a desempenhar um papel decisivo na economia e, por meio dela, na sociedade. Sem dúvida, esse papel sempre foi importante. Foi Francis Bacon, no início do século 17, que formulou a tese da relação fundamental entre saber e poder, mas o mundo não precisou esperar o advento dos tempos modernos para pôr o conhecimento a serviço do poder. Sem o saber especializado dos escribas, dos geômetras ou dos sacerdotes, não teria sido possível gerir nem os grandes impérios nem as cidades-estados nem as sociedades feudais.

A ciência natural foi um poderoso instrumento para o desenvolvimento do capitalismo no século 19, e nisso os cruzados do progresso científico, no século passado (Renan ou Spencer, na vida real, e Monsieur Homais, o solene personagem de Flaubert, na literatura), foram porta-vozes de tendências reais e precursores inequívocos dos atuais profetas da sociedade do conhecimento. Mas a verdade é que o grau de sofisticação alcançado hoje pela ciência, a complexidade das tecnologias geradas e a importância central desse conhecimento no aparelho produtivo, na reprodução material da sociedade e numa vida cotidiana inteiramente atravessada pelo que Jacques Derrida chama de mídio-tecnociência configuram um salto qualitativo na antiquíssima história da relação entre conhecimento e sociedade.

Mas uma coisa é chamar a atenção para esses fatos, e outra é fazer deles uma ideologia. É justamente o que está acontecendo. O conceito vem funcionando como ideologia em seu sentido mais clássico, o de conjunto de idéias destinadas a mistificar relações reais, a serviço de um sistema de dominação. No caso, o sistema de dominação é o exercido pelo capitalismo global, as relações reais provêm do novo lugar ocupado pelo conhecimento na fase atual do capitalismo, e a mistificação consiste em dissimular a verdadeira natureza do modelo que está sendo idealizado. A dissimulação básica está em tratar informação e conhecimento como se fossem sinônimos, o que implica redefinir a sociedade de conhecimento como sociedade de informação. Esse primado atribuído à informação é falso, mas tem uma base real. Robert Kurz assinalou nas páginas do Mais! que efetivamente vivemos numa sociedade em que somos bombardeados por meras informações, que funcionam como sinais, diante dos quais somos forçados a reagir de modo compatível com o programa que nos condiciona. Kurz observou que a informação dispensa o trabalho reflexivo que transformaria os conteúdos do mundo exterior, devidamente processados por nosso aparelho psíquico, em verdadeiros conhecimentos.

A análise de Kurz tem semelhanças com a feita por Adorno para descrever o mecanismo da falsa projeção. Num certo sentido, todo conhecimento se baseia na projeção. Pois o mundo dos objetos é constituído pela impressão recebida dos sentidos mas também pelo trabalho de reflexão pelo qual o sujeito elabora esse material e o restitui sob a forma de conhecimento. Não é outro o esquematismo da razão pura, de Kant, processo pelo qual o sujeito restitui ao real, como percepção estruturada, o que dele recebeu sob a forma de impressões caóticas. A projeção é falsa quando o sujeito constrói o real a partir da cega produtividade do próprio sujeito, que é o idealismo.

Também é falsa quando o indivíduo recebe informações vindas de fora, mas as devolve sem o trabalho interno de reflexão que as transformaria em conhecimentos. Os que dizem que nossa sociedade transformou-se numa sociedade de informação estão afirmando, assim, que o mecanismo da falsa projeção passou a ser a característica geral do conhecimento contemporâneo.

Mas não há sinais de que essa patologia seja assim tão generalizada. Grandes contingentes da população podem estar restritos ao nível da mera informação, mas pelo menos o conhecimento técnico-científico, ainda que limitado a uma elite, não somente é real como transformou-se na grande força produtiva do nosso tempo. Isso não significa negar a importância da informação. Ela é vital para assegurar o funcionamento da economia. Sem a informação, sem sua difusão instantânea em todas as articulações da economia global, não seria possível mobilizar os fluxos financeiros que se deslocam através das fronteiras nem tomar as decisões transnacionais sobre localização e deslocalização de empresas, sobre criação e fragmentação de conglomerados ou sobre políticas de contratação e demissão de mão-de-obra, que constituem a essência da gestão econômica na fase do capitalismo globalizado.

Sem a informação, as decisões políticas não teriam a velocidade necessária. Sem ela, enfim, os próprios pólos de geração do conhecimento não poderiam atuar. A aquisição e transmissão do conhecimento, hoje em dia, são inconcebíveis sem as novas tecnologias de informação e comunicação. Em suma, sem informação, não há sociedade de conhecimento. Mas é este que é decisivo. É o conhecimento técnico-científico injetado no sistema produtivo que constitui hoje a grande força dinâmica para a reprodução material da sociedade, situação que Marx já havia antevisto com grande clareza.

Travestir a sociedade de conhecimento como sociedade de informação significa bloquear os caminhos para uma ação questionadora eficaz, que não passa prioritariamente pela conexão com uma rede mundial de comunicação, transformando netizens em citizens, mas pelo acesso amplo ao conhecimento. Mas toda ideologia contém em seu avesso uma dimensão utópica. A Escola de Frankfurt demonstrou que falso, na ideologia, não é seu conteúdo, e sim a pretensão de que esse conteúdo já tenha se realizado. Assim, a tríade liberdade, igualdade e fraternidade só é ideológica à medida que a república que a tomou por lema considera que ela se já se transformou em realidade para todos, mas não enquanto exprime uma aspiração humana de validade universal. Nesse segundo sentido, ela é uma utopia, no sentido de Karl Mannheim [1893-1947", um conjunto de idéias que transcende toda situação histórica específica. Mas a sociedade do conhecimento não é uma utopia abstrata, e sim uma utopia concreta, na acepção de Ernst Bloch, um conjunto de representações fundadas numa esperança objetiva, instruída por tendências já presentes no real, uma "docta spes", e não uma simples fantasmagoria subjetiva. Nas entranhas da ideologia da sociedade do conhecimento, lampejam ainda, como clarões de astros mortos, centelhas que vêm das mais antigas fantasias de desejo da humanidade, como a fantasia edênica do acesso a saberes proibidos ou a fantasia fáustica da ciência absoluta. Sobre essas memórias filogenéticas podemos construir uma utopia moderna, inspirada pela fantasia iluminista da emancipação por meio de um conhecimento acessível a todos. Em que consiste essa utopia? Podemos construí-la como uma espécie de réplica ao conceito de "sociedade informacional", criado por Manuel Castells. Segundo Castells, a sociedade informacional designa a "forma específica de organização social em que a geração, o processamento e a transmissão da informação transformam-se nas fontes fundamentais da produtividade e do poder, devido às novas condições tecnológicas que emergiram no período histórico considerado".

Acesso igualitário - A partir dessa definição, podemos dizer que uma verdadeira sociedade de conhecimento seria aquela em que o conhecimento, considerado em seu sentido integral, abrangendo não somente as disciplinas técnico-científicas mas também a filosofia e as humanidades, fosse o principal determinante da organização social, e em que todas as camadas sociais, em todos os países do mundo, tivessem chances simétricas, asseguradas por processos democráticos, de âmbito tanto nacional quanto global, de participar da geração, processamento, transmissão e apropriação do conhecimento e das informações necessárias a esse conhecimento.

Como se vê por essa definição torrencial, nossa utopia não contesta a importância da informação, mas a distingue do conhecimento e a vê como um meio para o conhecimento. Reconhece que os cientistas e técnicos constituem uma força de trabalho fundamental na nova etapa do capitalismo, mas tenta diminuir as implicações orwellianas desse fato.

Para que eles não se transformem numa nova e assustadora elite de poder, com jurisdição sobre a Terra inteira, é preciso destacar a importância da democracia e do Estado de direito, as únicas instâncias capazes de impor freios à dominação ilegítima. Em vista dos limites das democracias nacionais, que não têm nenhum poder sobre as decisões tomadas nos Estados hegemônicos, é preciso pensar numa democracia mundial, em que o "demos" seria a humanidade como um todo. Para que o hiato cognitivo e digital, que separa os países detentores das novas tecnologias dos demais membros da comunidade internacional, não se transforme numa versão ainda mais sinistra do hiato de renda que separava e continua separando os países industrializados dos países em desenvolvimento, é preciso prever mecanismos que eliminem as assimetrias de conhecimento entre os países. Para corrigir as características excludentes do capitalismo global, é preciso imaginar o acesso igualitário de todos ao estoque universal de conhecimento. Finalmente, para que o conhecimento não se limite à ciência natural e à técnica, o que daria traços odiosamente tecnocráticos ao novo modelo de sociedade, transformando-a num paraíso de engenheiros e de analistas de sistema, é preciso dar uma ênfase idêntica a outros tipos de conhecimento, como as ciências humanas, a filosofia e as humanidades.

Tanto a ideologia quanto a utopia partem dos fatos e os transfiguram. Mas a transfiguração ideológica tem como objetivo ocultar a realidade ao passo que a transfiguração utópica pretende, ao contrário, mostrar os contornos de uma nova e mais autêntica realidade. Nesse sentido, a utopia tem um compromisso com a realidade que a ideologia não tem. Por isso, feitas as contas, não é nem como descrição neutra nem como ideologia que o conceito de sociedade do conhecimento pode ser considerado realista, e sim como utopia.

Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
Autor: Sergio Paulo Rouanet
Fonte: Folha de São Paulo, 24 de março de 2002

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.