TEXTOS DE FICÇÃO


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DE LEVITATIONE

 

Esta que vos conto é a história singular da viagem empreendida por meu tio, Guglielmo de Montparnasse, às longínquas terras do Nepal, atrás do único exemplar de que se tem conhecimento do tratado "De Levitatione". O tratado, escrito por um sacerdote etrusco de nome Janush, que viveu no final do século II a.C. em Calpurnia, cidade destruída por um terremoto e que se situava na região das atuais cidades toscanas de Volterra e Orvieto, permaneceu perdido, até ser encontrado, séculos mais tarde, no Templo romano de Voltumna, por um centurião que o teria negociado com um mercador armênio. Depois disso desapareceu novamente até alguns anos atrás quando foi encontrado por três religiosos, conhecidos de meu tio, na peregrinação que fizeram a um templo situado aos pés do Monte Kailas, próximo às nascentes dos rios Indo, Sutlej e Bramaputra. Desde suas origens o templo vem reunindo adeptos das mais diversas religiões, seitas e ordens, que, somados aos ateus, agnósticos, leigos e seculares, formam uma Sangha heterodoxa, reunida em volta de um interesse comum que é a busca da verdade inegável e do saber supremo, aos quais cada um procura chegar através da combinação de suas crenças e conhecimentos com as crenças e conhecimentos dos demais, sem imposições de quaisquer espécies. Graças a essa dissimilitude sua biblioteca abriga obras das mais diversas procedências, tratando dos mais diversos assuntos, em quase todos os idiomas conhecidos.

A informação que os três hermenêuticos trouxeram para meu tio foi que o tratado tinha ido parar naquele templo por volta de 1800, por obra de um monge hindu da seita Gelupka, conhecido como "Tao, o ancião", o qual havia ingressado no mosteiro por volta de 1750, tendo permanecido lá, cuidando da biblioteca, até morrer, completamente louco, aos 113 anos de idade.

Quando meu tio soube do paradeiro do tratado, imediatamente preparou-se para empreender aquela que seria a grande viagem de sua vida. Na longa carta que me mandou, contando-me a novidade e informando-me da iminente viagem ao Nepal, bem como dos motivos que o levavam a empreendê-la, Guglielmo de Montparnasse, fez alusão a uma teoria da qual havia tomado conhecimento nos tempos de seminarista e que tinha aquele templo como foco principal. Escreveu-me, entre outras coisas: "É lá que se encontra o 'De Levitatione' e é lá que alguns gnósticos vem se interessando desde há muito por uma estranha mas interessantíssima teoria que ocupa meus pensamentos desde que dela tomei conhecimento. Pode ser uma dessas coincidências que tornam os cépticos menos cépticos e os ingênuos mais ingênuos, ou talvez coincidência não seja. Averiguarei".

Claro que não entendi nada, mesmo assim continuei lendo a carta com o maior interesse.

"Segundo aquela teoria" explicava ele "não existe matéria e tudo não passa de ínfimas quantidades de energia que se modificam constantemente, numa dança frenética e contínua, tal como a imaginaram os hindus, à qual se referem, desde há quatro séculos, como a "dança do deus Siva". Aquilo que o homem pensa, externado ou não, também é uma forma de energia e seja o pensamento fruto de uma reflexão ou de uma inspiração, resultado de uma conversa, de uma leitura, da reação a algum fenômeno, ou seja lá o que for, tão logo ele é gerado adquire vida própria e permanece pairando no éter ad aeternum sob forma de seqüências contínuas de energia que, embora nos permeiem, não somos capazes de captar. Essas ondas energéticas, devido à Lei Suprema da Imanência, permanecem próximas ao local onde foram engendradas, distribuindo-se em níveis de acordo com sua importância; assim, os pensamentos bons, úteis, originais e sábios, ocupam as esferas etéreas mais elevadas, cabendo as esferas rasteiras aos pensamentos tolos, vulgares, maus e sem originalidade, portanto sem serventia. Um pensamento idêntico a outro já existente é por aquele absorvido, tornando-se uno. Há ainda pensamentos que de tão ordinários não adquirem consistência suficiente, dissociando-se e diluindo-se na própria insignificância tão logo são produzidos, sumindo sem deixar vestígios. Quem dispõe tudo isso é a lei do mundo, a sabedoria do cosmo; é a ordem das coisas e dos seres, do tempo e das razões, para os quais não há enganos, não há dúvidas, não há ignorância e nem má fé. É a Consciência do Universo. O homem que possua os requisitos necessários pode, desde que o queira com muita vontade e em circunstâncias especiais, captar esses pensamentos "vagantes", através de uma percepção extrasensorial. Claro está que a compreensão dos mesmos vai depender do conhecimento que aquele homem tenha do código em que eles foram pensados, seja ele lingüistico ou musical. Os requisitos necessários são: extrema bondade; pureza (a dos sábios, não a dos estultos), sabedoria desinteressada e, principalmente, total ausência de contato físico com qualquer tipo de matéria sólida ou líquida que seja. Quanto às circunstâncias especiais, as mais importantes são: conjunção astral favorável, momento oportuno e ambiente propício". A carta terminava com a promessa de que ao voltar eu seria a primeira pessoa a quem ele procuraria para conversar a respeito da viagem; e assim foi.

Uma manhã, pouco mais de dois anos após sua partida, recebi um telegrama de meu tio dando-me ciência de sua chegada e convidando-me para passar o fim de semana com ele na abadia das sete preces, não muito longe de São Tomé das Letras, de cuja biblioteca era o encarregado. Eu já tinha ouvido rumores de que a abadia, antiga construção nas fraldas do monte das sete dores, teria, em seus porões, uma porta, nunca descoberta, ou nunca dada a conhecer, permitindo o acesso a uma passagem subterrânea para Machu Picchu, numa caminhada de sete dias e sete noites. A vontade de conhecer a abadia, com seu segredo, aliada à curiosidade em saber das vicissitudes de meu tio, além, é claro, do desejo de revê-lo, me fizeram aceitar o convite.

Cheguei à abadia quando o sol já havia terminado seu labor naquele sítio e os religiosos estavam agradecendo o jantar frugal recém terminado. O jovem asceta que me recebeu acompanhou-me até à biblioteca e em seguida foi avisar meu tio da minha chegada. O edifício que acolhia a biblioteca, distante uns cinqüenta metros da abadia, impressionava por seu tamanho e estilo arquitetônico, predominantemente barroco, onde arabescos esculpidos e pintados se intercalavam em grande profusão, conferindo às paredes externas o aspecto de um enorme e delicado bordado. O pé-direito tinha a altura de mais de três andares e era coroado por uma suave abobada ornada com pinturas representando passagens bíblicas. Em toda a volta via-se um mezanino, com piso e parapeito em madeira de lei, abrigando pequenos armários com portas de vidro, contendo, segundo vim a saber depois, obras em suportes raros e delicados: manuscritos, mapas antigos, códigos, incunábulos, pergaminhos - entre os quais alguns palimpsestos - e até mesmo algumas lâminas de faia. No térreo, estantes de mogno maciço, dispostas em fileiras, acolhiam as mais diversas obras representativas do conhecimento humano. Ao fundo viam-se várias mesas, também em mogno, todas com um lucivéu de bronze no centro e quatro poltronas em couro ao redor.

Um luxuoso candelabro, que devia ter seguramente mais de trinta focos de luz, descia do centro da abobada ostentando seu fausto. Havia janelas em todas as paredes menos na parede do fundo na qual se destacava um vitral colorido, contendo linhas horizontais e verticais dispostas de modo a deixar entrever uma svastika, explicitando augúrios de bem-estar. Tudo somado, aquele ambiente era um convite ao estudo e à reflexão.

Depois de um quarto de hora de espera a porta se abriu e meu tio veio ao meu encontro, sorridente.

- Que bom que você veio! Faz muito tempo que não nos vemos!

Dizendo isso, abraçou-me demoradamente e depois, com a mão no meu ombro, foi me conduzindo em direção às mesas. Enquanto caminhávamos lentamente entre as estantes, fiz a pergunta que ambos esperávamos:

- E então, tio, como foi a viagem?

Guglielmo de Montparnasse parou e olhou-me fixamente.

- Foi uma experiência fantástica - Disse, extasiado.

Ao retomar a caminhada contou-me que depois de alguns dias de andanças tinha chegado ao templo onde se encontrava o "De Levitatione" e que aqueles ecléticos o haviam acolhido muito bem, permitindo-lhe acesso irrestrito ao acervo de sua rica biblioteca, incluindo o tratado. Contou-me das inúmeras conversas que tivera com Markus, um ancião ahedonista jônico, que era o responsável pela biblioteca e que também conhecia a teoria dos pensamentos "vagantes", além de já ter lido o "De Levitatione".

- Um sábio de verdade; pena que faleceu pouco antes de eu sair de lá - Comentou, com voz emocionada.

- A idade não perdoa ninguém - ponderei, com certa tristeza.

- Parece não ter sido pelos anos que tinha, e eram muitos; houve rumores de que foi loucura.

Finalmente chegamos ao lugar das mesas e escolhemos a do canto; nos sentamos, um de frente para o outro, e meu tio continuou, com voz emocionada:

- Foi uma pena, era um homem interessantíssimo, dono de uma cultura invejável e além do mais, como toda pessoa inteligente, tinha um senso de humor extraordinário. Passava a maior parte do tempo na biblioteca lendo e estudando. Sabia latim, grego antigo, francês, inglês, um pouco de italiano e de alemão e ultimamente havia se dedicado ao estudo do mandchu, para poder ler textos do cânon tibetano, em especial o Bkah-hgyur e o Bstan-hgyur.

Nesse ponto, para dar maior ênfase ao que ia dizer, Guglielmo de Montparnasse pegou minhas mãos e apertou-as entre as dele.

- Ele costumava dizer que em toda parte, onde quer que haja um ser humano, há pensamentos pairando; seja em museus, salas de concertos, fábricas, escolas ou nas ruas, mas que é nas bibliotecas onde mais proliferam. Gostava de enfatizar que as bibliotecas são lugares sagrados por excelência, pois nelas "vivem" miriades de pensamentos geniais que se entrechocam sem deteriorar-se, permanecendo intactos na sua transcendência, prontos para quem neles quiser abeberar-se.

Assenti com um leve menear da cabeça enquanto tentava relembrar o que meu tio havia escrito na carta de despedida sobre a estranha teoria dos pensamentos. Alheio ao meu esforço ele continuou, agora falando por ele mesmo:

- Veja você a magnitude de tudo isso! Quando lemos um texto, por exemplo, pensamos o que lemos e ao mesmo tempo pensamos sobre o que lemos, formando um juízo de valor sobre o lido, passo a passo, num processo mental complexo. Ao pensarmos o que lemos nada mais fazemos a não ser repetir o pensamento do autor e de outros tantos leitores do mesmo texto, mas ao refletirmos sobre o que lemos, estamos gerando pensamentos novos. Dessa forma, cada vez que um livro é lido, ainda que o seja pela mesma pessoa que já o leu anteriormente, ele é repesado e novos pensamentos são gerados. "Não lerás duas vezes o mesmo livro", diria Heráclito de Éfeso. Ler é, pois, libertar as idéias do papel que as aprisiona, dando-lhes nova vida. A cada nova leitura um livro renasce, se repensa e se universaliza. Por isso os livros devem ser lidos; para perpetuar e pluralizar o que de outra forma seria efêmero e exclusivo e, portanto, sem serventia.

Ao dizer isso meu tio pôs-se pensativo e eu, que me roía de curiosidade, aproveitei a pausa para voltar ao assunto da viagem, perguntando a razão de tanto interesse pelo tratado. A pergunta trouxe Guglielmo de Montparnasse de volta à realidade. Olhou fixamente nos meus olhos e começou a explicar, com tom paciente:

- Desde que, em meus tempos de seminarista, tomei conhecimento da teoria daqueles gnósticos sobre os pensamentos "vagantes", uma coisa sempre me incomodou.

- E que coisa é essa?

- Diz respeito a um dos requisitos necessários para captá-los, segundo o qual isso só é possível se houver total ausência de contato físico com qualquer tipo de matéria, seja ela sólida ou líquida. Isto sempre me intrigou muito. Afinal, o que aquilo queria dizer?

- E agora, você tem a resposta?

- Tenho, sim. Aliás, já a tinha quando fui atrás do tratado.

- Então, há uma relação entre o tratado e a teoria.

- Exatamente! Quando soube que o "De Levitatione" havia ido parar no mesmo templo onde a teoria tem os adeptos mais fervorosos e ainda por cima pela mão de um ancião tido como o sábio dos sábios, senti que as duas coisas tinham algo em comum e aí tomei a decisão de ir investigar.

Àquela altura minha curiosidade já estava descontrolada e exclamei num quase grito:

- Pelo amor de Deus, tio, fale logo! Qual é a relação?

- Mas... Você não percebe! O que significa não estar em contato com nada que não seja o ar? Se eu quisesse, por exemplo, apreender algum pensamento nesta biblioteca, e que riqueza imensa há aqui, não poderia fazê-lo estando em contato com o chão e nem estando numa escada, sobre uma cadeira, ou trepado numa estante; tampouco poderia estar imerso numa tina de água ou pendurado numa corda; nada disso. Assim, mesmo que os demais requisitos estivessem preenchidos, eu não conseguiria nada. Nada! Simplesmente por não poder evitar estar em contato com algum tipo de matéria sólida ou líquida. Você entende?

Aquela explicação, longe de me satisfazer, deixou-me ainda mais confuso, assim, retruquei secamente:

- Ainda não! Aliás, a bem da verdade, não consigo nem pensar. Diga você.

- Santíssimo Deus! Qual é a única maneira de alguém estar em contato apenas com o ar? Pensa um pouco.

De repente senti um gosto amargo na boca e uma espécie de cãibra torceu meu estômago. Tinha medo do que acabara de passar pela minha cabeça. Não, não podia ser. Ou podia.

- Levitando!?

A exclamação, feita em tom de pergunta, saiu como se tivesse sido vomitada, tal o espasmo que me custou. Senti-me perdido em meus próprios limites de ignorância e ceticismo e desejei como nunca algo que se assemelhasse ao fio de Ariadne para poder encontrar a saída do labirinto de confusões em que me encontrava. Então sobreveio o medo; medo daquele lugar, medo de toda aquela história, medo de Guglielmo de Montparnasse, medo de mim. Afinal, o que significava tudo aquilo? Seria algum tipo de provação? Estaria, eu, ficando louco? As palavras de meu tio trouxeram-me de volta à realidade:

- Sim! Sim! É isso! Finalmente você compreendeu! Levitando!

Meu tio estava eufórico e os olhos brilharam ao concluir:

- A levitação é o dom que o Bem Supremo do Universo concede, não pelo simples prazer de flutuar, isso seria por demais tolo, mas sim para alcançar o saber, para que Fiat Lux.

Parecia que Guglielmo de Montparnasse estava delirando, tal o estado de excitação em que se encontrava. Quanto a mim, já não sabia mais o que pensar e muito menos o que dizer; muita coisa inusitada e de difícil alcance havia sido revelada e isso havia causado uma cisão ainda maior que a usual entre o meu eu objetivo, pragmático e terreno, pela profissão que exerço, e o outro eu espiritual e aberto a todo tipo de experiência transcendental, desenvolvido graças aos estudos de filosofia e à prática da poesia e da música a que me dedico como amador. Concentrado em meus pensamentos demorei em perceber que meu tio havia voltado a falar e quando o fiz as primeiras palavras já haviam sido perdidas.

- ... e veja que outras pessoas chegaram à mesma conclusão que eu.

- Ah sim! E quem? - Perguntei.

- Tenho certeza de duas: "Tao, o ancião", o monge hindu que localizou o "De Levitatione" e o sábio Markus, com quem muito conversei e que também estudou o tratado. Além deles, é perfeitamente possível que outros doutos, conhecedores da teoria dos pensamentos "vagantes", tenham tido contato com o tratado e chegado às mesmas conclusões; quem sabe?

Eu estava tão assustado com aquilo tudo, que falava mais por inércia do que por vontade, embora a curiosidade fosse grande. Assim, veio-me de comentar:

- O interessante é que aqueles dois tinham em comum o fato de serem bibliotecários e de terem morrido loucos.

- É verdade - Replicou meu tio, pensativo - Eu também reparei na coincidência, mas veja: passar, durante dezenas de anos, doze ou mais horas do dia numa biblioteca como a daquele templo ou mesmo como esta e outras semelhantes que há pelo mundo, com acervos tão ricos e tão diversificados, torna esses bibliotecários, que não somente cuidam dos livros, mas principalmente os lêem, seres propensos à meditação, ao estudo, à aceitação do inusitado, à procura das verdades últimas. Quanto ao fato de ambos terem morrido loucos, creio que...

Aqui, Guglielmo de Montparnasse, titubeou, limpou a garganta repetidas vezes e depois continuou:

- ... Creio que eles tenham conseguido.

- Conseguido o que? - Perguntei trêmulo, já prevendo a resposta que viria.

- Conseguido o que buscavam.

A resposta saiu seca e o semblante de meu tio fez-se grave. Em seguida, sem muitos preâmbulos, deu a conversa por encerrada e educadamente despachou-me.

- Já é muito tarde e você deve estar cansado da viagem, é melhor ir descansar.

Dito isso, levantou-se e foi andando em direção à porta com ar decidido de quem não admite réplica.

- Não vai apagar as luzes? - Perguntei enquanto o acompanhava no seu passo acelerado.

- Não! Só vou levá-lo até o quarto e depois volto para terminar umas coisas antes de dormir.

Talvez tenha sido impressão minha, mas aquele "umas coisas", soou-me enigmático, contudo achei melhor não fazer mais perguntas e continuei indo atrás dele até chegarmos ao quarto que me fora destinado para passar a noite. Depois de certificar-se de que tudo estava em ordem, desejou-me um bom descanso e foi embora.

Deitei sem mesmo tirar a roupa e os sapatos, mas longe de conseguir dormir comecei a lembrar no que havia sido conversado na biblioteca. Não sabia o que pensar; tudo estava tão longe de qualquer tipo de compreensão que cheguei a sentir-me um tolo por deixar aquele assunto assumir tamanhas proporções. Por outro lado, tudo era tão fantástico que não conseguia segurar a excitação, a tal ponto que num determinado momento não consegui mais ficar deitado e levantei-me. Passava da uma hora, mas mesmo assim resolvi dar uma volta pelos jardins da abadia. Perambulei por um bom tempo, tentando me acalmar e esperando que o sono viesse em minha ajuda, até que, sem querer, cheguei novamente nas imediações da biblioteca. Lá dentro, uma pequena claridade chamou a minha atenção. "Meu tio ainda está às voltas com as coisas dele", pensei, enquanto me aproximava. De repente estanquei e senti o coração pular dentro do peito, enquanto um suor gélido se formava nas têmporas e nas palmas das mãos. Através dos vidros translúcidos da janela central pude entrever, na semi-obscuridade, a sombra de um homem movendo-se, lá no alto, próximo à abobada. Os movimentos eram lentos e a cabeça estava envolta num claror célico. O suor aumentou e um tremor insólito apossou-se de minhas pernas, subindo lentamente pelo meu corpo, sem que eu pudesse contê-lo. Não queria acreditar no que estava vendo; aquilo era demais para a minha cabeça, quis gritar, quis fugir, mas a curiosidade acabou vencendo o medo e então agarrei toda a coragem que me restava, respirei fundo e fui até à porta da biblioteca, girei a maçaneta e entrei com grande estardalhaço a tempo de ver meu tio no topo de uma longa escada, bem debaixo do candelabro, segurando uma pequena lanterna com a boca enquanto com as duas mãos tentava rosquear uma lâmpada num dos bocais do lustre. A impetuosidade da minha entrada quase o fez cair da escada, olhou para baixo, enfiou a lâmpada no bolso da sotaina e tirou a lanterna da boca, direcionando o feixe de luz em cima de mim.

- Mas o que foi que aconteceu para você entrar aqui desse jeito e a esta hora? Já não tinha ido para a cama?

Sem graça, balbuciei uma desculpa qualquer e saí tão rapidamente como havia entrado. Uma vez lá fora respirei aliviado com o que vira, mas, no fundo, senti uma certa decepção.

Assim que clareou o dia, deixei a abadia, sem sequer despedir-me de meu tio; "depois escrevo explicando minha saída apressada", pensei, conturbado com tudo o que havia acontecido num tão breve espaço de tempo.

Alguns meses após haver deixado São Tomé das Letras, recebi um telegrama de pesares do secretário de meu tio, informando que Guglielmo de Montparnasse havia morrido, completamente louco.

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Roberto Barsotti - Diretor de Serviço do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP, desde 1994. Anteriormente coordenou o Centro de Referência Bibliográfica do Instituto Cultural ITAU

Autor: Roberto Barsotti
Fonte: Autorizado pelo autor em 03/10/2005

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.