A VACA POLLYANNA
Acostumado a concepções de leitura
da forma mais acadêmica possível, como o ato que consiste em decifrar um texto
escrito, por exemplo, um conceito impresso em um objeto artístico chamou-me a
atenção: Ler – todos os verbos
De
Em Sergipe, mais proximamente em Aracaju,
houve um único evento. Por iniciativa das bibliotecárias
Se o proposto foi discutir Leitura enquanto
força de um hábito, levanta-se de imediato uma questão: qual a importância do
ato de ler? Para ser reconhecida como uma força há que ser importante. Então,
qual a importância da leitura nesse período pós-moderno, em que a sociedade se
espelha na tecnologia, e que não existe mais fronteira entre a informação e
Mas é inegável que ela, a leitura, é
importante, pois estimula o raciocínio e desenvolve a inteligência. Mas, sim,
quais os programas oficiais hoje em Sergipe que buscam tais qualidades no
cotidiano da sociedade? Na ausência de projetos conclui-se que não se vê na
leitura a ‘força de um hábito’. Provavelmente, a concepção política seja a de
que o melhor é que não existam ações mais concretas que estabeleçam o hábito. O
hábito de ler pode ser perigoso e a força desse hábito pode questionar o
poder.
Mas de verdade, o que significa esse
hábito? Sou honesto em confessar que já há algum tempo que abdiquei do termo.
Não porque não entenda que na verdade ele contempla o sentido exato da
disposição duradoura adquirida pela repetição freqüente do ato, o uso, o
costume. Talvez ele funcione do ponto de vista pedagógico, não é minha seara
para discussão. Mas no caso da biblioteconomia é uma recorrência tal discussão e
leva a questões ideológicas quando sempre associamos a questão à ausência de
políticas públicas que a contemplassem. Mais por irresponsabilidade do que por
incompetência. (É como que a modelagem desse hábito não deveria ser feita, pois
não havia interesse em que criasse força.). Enquanto isso se procurou culpados,
como sempre se viu em uma sociedade que insiste em políticas públicas que não
dão certo. Assim como é recorrente esta discussão de leitura enquanto hábito, é
também recorrente a promissória da culpa: escola e família. A sociedade culpa a
escola, e a escola culpa a família, alternando-se nessa troca de insinuações de
falha na educação formal e informal. O fato é que cada um faz a sua parte da
forma mais modesta: a família com suas preocupações de ordem financeira não vê
como incorporar este hábito, pois livro não faz parte da cesta básica, ou até
não existe entre ela, a família, a função da leitura. Por sua vez a escola, com
suas preocupações em cobrar tarefas, tem pequena margem de manobra para
incorporação da leitura como tarefa sem parecer cobrança.
Imaginemos então como se pode formar o
hábito. Como as partes envolvidas neste processo podem agir. Para se ter um
hábito, há que se ter uma iniciação. Isso é ponto consensuado. Como se proceder
esta iniciação? Primeiro pensando-se sempre nas três gerações que fundamentam
qualquer sociedade: crianças, adolescentes e adultos.
Inserir a leitura na educação de uma
criança é fundamental. É a fase do caráter lúdico, da não obrigatoriedade da
leitura. E aqui fica uma inquietação: onde estão as bibliotecas públicas de
caráter infantil em Aracaju e no Estado de Sergipe? Pesquisas realizadas dão
conta da associação da prática da leitura infantil ao hábito juvenil e adulto.
Quem manuseou livros na infância continuou com o hábito na adolescência. Claro
que não é regra sem exceção – o que existe para confirmar a regra. Mas na idade
infantil está o grande potencial do exercício da leitura. É nessa primeira
geração, ou o primeiro público de bibliotecas, que reside mais possibilidade e
maior probabilidade de se atingir a proposta do hábito de leitura. É um
procedimento mais natural de aproximação, sem as conseqüências de leituras
forçadas. É importante que a própria criança reconheça o valor da leitura. O que
proporciona a leitura nesse primeiro público: curiosidade, aventura, novos
conhecimentos, novas emoções.
As pessoas que não tiveram contato com a
leitura tornaram-se leitores não-assumidos (onde não existe motivação para tal),
ou leitores esforçados (a descoberta da importância do livro como instrumento
informativo e/ou profissional). Nesse segmento vamos encontrar o segundo e
terceiro público das bibliotecas. No segundo público, o adolescente, encontra-se
o segmento mais resistente à leitura, trafega entre a naturalidade da criança e
o esforço do adulto. Prefere ouvir música, ver TV, praticar vídeo game,
conversar, sair, e tem como parâmetro de informação a Internet. No público
adulto encontram-se os leitores habituais e os esforçados e os não-leitores.
Nesta faixa fica evidente a valorização da leitura. Dois perfis são construídos:
a) o do prazer que a leitura proporciona, solidificando o hábito; e b) o dos
benefícios incorporados, dos que lêem por necessidade, os leitores
esforçados.
Essa é a grande linha divisória dentro do
público: entre o prazer e a necessidade. Se os esforçados descobrem o prazer na
leitura eles passam aos habituados. Então, quais as preferências de leitura que
podem provocar essa leitura prazerosa? No infantil: aventura e ficção; no
adolescente: suspense e ficção; no adulto: romances em geral. Sobre indicação de
leitura é impossível ter uma relação recomendável, pois não se pretende
unanimidade em assunto tão pessoal. Cada pessoa tem um tempo, um gosto. Millor
se considera um leitor esperto justamente por não seguir um padrão de leitura.
Existem livros que pretendem estabelecer tudo aquilo que precisa ser lido para
que se tenha conhecimento de determinadas áreas, ou da literatura que vá
proporcionar um conhecimento mais geral.
É importante observar que os livros não
estão mais sozinhos na corrida pela clientela. E os concorrentes são
pesos-pesados: os meios audiovisuais. Provavelmente o rádio, a TV e o jornal,
junto com o livro formam as quatro grandes fontes de informação. Mas há
diferenças fundamentais entre o livro e as outras três fontes. As três primeiras
criam e fortalecem atitudes comuns, as mensagens são selecionadas por um
pensamento dirigente onde são encaixados os comportamentos. Já o livro firma
personalidade independente, critérios próprios, possibilita atitudes e opiniões
variadas.
Além disso, temos a sombra do livro do
futuro. Hoje já temos o livro falado, muito embora, pelo tempo no mercado, já
não signifique que tenha ocupado um espaço significativo, embora usado
preferencialmente para obras dramáticas e poéticas. Temos o e-book, embora os
preços elevados não o tenham feito ocupar espaço. Então, no futuro, em médio
prazo, acredito ainda teremos o livro de papel, já que tem se pensado
recorrentemente que a difusão dos múltiplos meios de comunicação provocaria a
morte do livro como conseqüência do triunfo da imagem. Isso parece
superado.
Mas estamos em um período batizado de
Sociedade da Informação, onde a tecnologia toma conta do mundo. Seja
Em 2000, segundo dados da Câmara Brasileira
do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional de Editores e Livreiros (SNEL), foram
publicados 45 mil títulos de livros, com 329 milhões de exemplares impressos.
Foram vendidos 334 milhões (produção do ano mais saldo do ano anterior). Quatro
anos depois os números demonstram o decréscimo das atividades editorial e
livreira no país. Foram publicados 34 mil títulos, com 320 milhões de exemplares
impressos. Uma diminuição de 11 mil títulos e menos nove milhões de exemplares
impressos. A queda na comercialização foi na ordem de seis milhões de
unidades.
Uma observação: estamos expondo dados
relativos à produção e venda por ano o que nos proporciona a relação
ano/habitante. Assim, a produção em 2000 foi de 1,8 livro/habitante/ano, caindo
para 1,7 no ano de 2004, com a venda caindo de 1,8 em 2000 para 1,6
livro/habitante ano em 2004.
Pelos dados expostos acima é de se
questionar a existência do hábito e a força dele decorrente. Resta então
provocar o poder institucionalizado para que através de políticas públicas de
educação e cultura se envolva com a leitura, para que o livro possa ser
descoberto como fonte de conhecimento, ou como prazer nos momentos de lazer.
Como disse Hipólito Escolar Sobrinho, o mais importante bibliotecário espanhol,
“o livro foi o mais fecundo invento do homem, a ferramenta mais maravilhosa
criada por ele”.
Apesar do que aqui foi exposto, é possível
acalentar esperanças no crescimento do índice de leitura e na existência do
hábito fortalecido. Isto tomando como base alguns fatos que vêm ocorrendo.
Assim, a diminuição do analfabetismo, a obrigatoriedade do ensino básico, o
aumento da permanência no ensino médio, o crescimento do número de vagas no
ensino superior e os programas de educação de adultos, podem influir decisiva e
positivamente para o hábito de leitura.
Hoje, a sociedade convive com um universo
multimídia caracterizado pela TV que cria o tele ver, onde a palavra é
destronada pela imagem. Vivemos a sociedade da intermediação, onde tudo o que
acontece é narrado ou descrito nas diversas mídias. O hábito de ler converte-se
no hábito de consumo da leitura condicionada às necessidades e
possibilidades.
É preciso também que professores, pedagogos
e bibliotecários assumam posturas ousadas em relação à questão. Aos
bibliotecários, área em que estou incluído, não cabe mais apenas ser curadores
dos acervos, mas ampliar o papel da interface do acesso ao acervo. Envolver-se
com leitores, cuja interação gera conhecimento.
No mais, é esperar que em 2006 possamos ter
uma semana do livro e da
A esta altura, está o leitor a perguntar,
fazendo sua conexão entre o título e o texto: onde está a Vaca Pollyanna? Pois
bem, ela é o objeto de arte, citado no início do texto, suporte físico em que a
artista plástica
Servi-me da vaca Pollyanna para definir a
leitura, tema deste artigo, como o mais simples e mais espetacular conceito por
mim já alcançado. E que se faça o verbo. E da palavra se possa extrair a leitura
enquanto prazer.
(Publicado originalmente no Jornal da Cidade, Cad. Especial, Opinião, domingo, 27 nov. 2005, p. B11)