ALÉM DAS BIBLIOTECAS


BIBLIOTECA DE PESSOAS EM VEZ DE LIVROS: COMO PODE SER?

Nossa formação inicial, ainda aos 20 anos, foi graduação em Biblioteconomia. Adiante, ao final de nossa primeira pós-graduação stricto sensu, lançamos o livro “Conceito de biblioteca”, porque desde sempre nos intricou a quantidade de denominações impostas a espaços onde havia livros, indiferentes às metas propostas. Às vezes, estanterias em condições precárias. Às vezes, espaços minúsculos para abrigar livros e crianças. Percebemos, desde então, que a tipologia de bibliotecas guarda relação direta com a coletividade a que se destina, até porque coleções disponíveis e serviços ofertados devem suprir as demandas informacionais do público-alvo. Pensamos haver visto de tudo: bibliotecas públicas, infantis, escolares, universitárias, especializadas, comunitárias, particulares, digitais, eletrônicas e assim segue...

Eis que, de repente, damos de cara com a expressão “Biblioteca Humana”. Como assim? As bibliotecas são, essencialmente, instituições sociais e, portanto, irremediavelmente humanas!? Na realidade, a Human Library Organization (HLO) é uma organização internacional sem fins lucrativos com sede administrativa em Copenhagen, Dinamarca, onde surgiu, em 2000, como iniciativa do movimento não governamental Stop the Violence, sob inspiração do dinamarquês Ronni Abergel aliado ao irmão Dany e a dois amigos, Asma Mouna e Christoffer Erichsen.

A proposta da HLO é surpreendentemente inovadora, surpreendente e instigadora. Comporta “n” adjetivos. O aprendizado ocorre por meio de livros mais do que interativos: as próprias pessoas. A contação de histórias de vida se dá, em tom de drama, comédia, aventura ou romance, pelos próprios atores que as vivenciaram. Os leitores pedem emprestado uma pessoa para ouvir suas experiências por um intervalo médio de meia hora. Ao escolher uma história, o usuário segue até uma área de discussão onde conhece o “livro humano” com quem enriquecerá o diálogo, por meio de interlocução e questionamentos, uma vez que as perguntas são sempre aceitas e nada é vetado dentro das normas de respeito supremo ao outro. Há questões de diferentes naturezas. Exemplificando: como você se reconhece como bipolar? Por que tantos piercings e tatuagens? Por que a nudez pública? Se são questões invasivas quando se faz a um amigo ou a um (des)conhecido, soa natural no ambiente da HLO, porque estamos desvendando folhas de um livro e não enfiando o nariz na intimidade das pessoas para trazer à tona aspectos aparentemente desconcertantes.

Isto é, na HLO, as histórias advêm do relato ao vivo das próprias personagens. O contato humano e a descoberta do outro atua como plataforma de aprendizagem, com ênfase na valorização do ser humano em suas fortalezas e fragilidades, o que favorece a diversidade e a inclusão de diferentes facetas, razão pela qual a “Biblioteca Humana” trabalha com voluntários, em geral, vistos como “raros” pela sociedade, como minorias sexuais, religiosas e raciais, e, portanto, indivíduos marginalizados ou “estranhos” ou que se posicionam, de alguma forma, “fora do quadrado”.

Cada “livro humano” possui um título, como: adepto da modificação do corpo, face ao arsenal de tatuagens, piercings e alargadores; bipolar; cigano; convertido ao islamismo; desempregado; drogadito; eunuco; herói; imigrante; mentiroso compulsivo; morador de rua; naturista; ninfomaníaca; pais de serial killers; perdedor; portador do vírus HIV; refugiado político; obeso; órfão; perdedor; poliamor (prática de manter mais de um relacionamento simultâneo, em geral, sexual, com o consentimento de todos os envolvidos); sobrevivente do holocausto; soldado com pós-trauma; solitário; vítima de abuso sexual; velho; etc. etc. etc.

A HLO tem despertado tanto interesse, que já está nos seis continentes e em mais de 50 países, como Estados Unidos, Canadá, Polônia, Filipinas e Chipre, hospedando eventos tanto virtualmente quanto presencialmente em bibliotecas, museus, festivais, conferências, escolas, universidades e em empresas do setor privado. Informações detalhadas sobre suas funções, seleção de “livros humanos”, inscrição de leitores estão disponíveis na página oficial https://humanlibrary.org, cujo slogan é "não julgue um livro pela capa. Isto porque, a ação mútua entre “livro humano” x leitor atesta que rótulos e/ou títulos, tal como ocorre com publicações impressas ou eletrônicas, nem sempre são fiéis ao que prometem, de modo que não devemos julgar um livro pelo invólucro. Há, ainda, um vídeo no YouTube que nos permite obter mais informes de como funciona a HLO, https://www.youtube.com/watch?v=1ioz1XDDMCE.

Reiteramos que o propósito mor do novo formato de biblioteca é desafiar o que pensamos saber sobre os demais, o que significa confrontar estigmas, preconceitos e estereótipos num ambiente positivo. De fato, vale a pena visitar a página eletrônica da HLO em cada um de seus links, com a ressalva de que sua secretaria geral funciona todos os dias da semana, diariamente, das 10h00 às 16h00, além de poder ser contactada por telefone ou e-mail. Há dados sobre os mais diferentes itens. Lá estão: conceito do que é uma “Biblioteca Humana”; novidades de última hora; livros; eventos; contatos; linha de merchandising e muito mais, embora não tenhamos descoberto a HLO em nosso país. Aliás, preenchemos e enviamos formulário para atuar, quem sabe, como “livro humano”. Até agora, nenhuma resposta.  

Por fim, acreditamos que, no tempo de fluxo informacional intenso nas redes eletrônicas, a “Biblioteca Humana” resgata a tradição oral que está se esvaindo junto com os relacionamentos face a face que migram mais e mais para o espaço cibernético, sob diferentes formas e formatos caricaturais. Talvez compense, sim, conhecer a HLO! Afinal, se ler nos dá sabedoria para seguir adiante, alugar pessoas em vez de livros e conhecer sua história é essencial para nossa formação humanística. É a confirmação das palavras do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, quando diz: “os eruditos são aqueles que leram nos livros; mas os pensadores, os gênios, os iluminadores do mundo e os promotores do gênero humano são aqueles que leram diretamente no livro do mundo”, leia-se, nas pessoas.

Fontes

BIBLIOTECA humana dispensa livros e desafia a aprender ouvindo histórias na primeira pessoa. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2015/10/biblioteca-humana-permite-aprender-ouvindo-pessoas-ao-inves-da-leitura-de-livros. Acesso em: 06 jul. 2021.

FINCO, Nina. Human Library: onde você aluga pessoas em vez de livros. Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/vida/noticia/2016/07/human-library-onde-voce-aluga-pessoas-em-vez-de-livros.html. Acesso em: 04 jul. 2021.

RUELA, Rosa. Human Library: Biblioteca de pessoas em vez de livros. Biblioo: Cultura Informacional, 15 fev. 1016. Disponível em:  https://biblioo.info/human-library. Acesso em: 05 jul. 2021.

STOP THE VIOLENCE. HUMAN LIBRARY ORGANIZATION (HLO). Human Library: unjudged someone. Copenhagen, Dinamarca, Jul. 2021. Disponível em: https://humanlibrary.org. Acesso em: 04 jul. 2021.

 

Fonte: News: catalyst network of communities

 

 

 

Fonte: Voula Monohlias, 2021


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”