INFORMAÇÃO, UTOPIAS E DISTOPIAS


  • A coluna propõe reflexões sobre a informação no cotidiano e nas práticas profissionais em meio às utopias e às distopias da contemporaneidade, abordando temas em diálogo com diferentes áreas e linguagens.

INFORMAÇÃO E BARREIRAS SOCIOINSTITUCIONAIS: ACESSIBILIDADE E “MAIORIAS SILENCIADAS”

As limitações epistemológicas das noções de sistema de informação e de usuários de informação (RABELLO, 2013; RABELLO; ALMEIDA JUNIOR, 2020) orientam parte do fazer profissional tecnicista. A aplicação da técnica pela técnica tende a invisibilizar sujeitos e a orientar o limite da ação institucional possível. Por consequência, os sujeitos invisibilizados tendem a não se identificarem com a instituição que os desconsideram (FLUSSER, 1980).

O texto Atuação profissional e não-usuário em unidades de informação [https://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1336] abordou discussões introdutórias em torno da desconsideração da diversidade e da pluralidade de sujeitos por parte de profissionais que atuam em instituições ou unidades de informação tradicionais.

Os profissionais nomeados de “usurários” de informação [https://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1296] dão forma ao “não-público”, constituído de “não-usuários”. Estes sujeitos silenciados, excluídos e/ou invisibilizados se caracterizariam pelo morfema de negação que os adjetiva: “não-público” e “não-usuário”. Isso porque, em tese, eles não são considerados pela unidade de informação tradicional ou sequer aparecem em seu horizonte de atuação institucional. Nem ao menos são reconhecidos como pertencentes à comunidade ou ao rol do chamado público potencial, comumente denominado de usuários potenciais.

Nessas condições, as instituições atuam como (re)produtoras de barreiras ao não-público, dificultando ou impedindo que este seja içado à condição de público. Tal (re)produção socioinstitucional ocorre segundo concepções e visões de mundo (RABELLO; ALEMIDA JUNIOR, 2020), que podem ser abordadas em termos de barreiras socioinstitucionais orientadas por concepções de classes sociais.

Tais barreiras podem se manifestar via reprodução de preconceitos e de estruturas sociais que legitimam as desigualdades, ou mesmo via inadequações institucionais, atingindo, sobremaneira, segmentos sociais desprivilegiados. Tais inadequações ocorrem, por exemplo, em relação à acessibilidade a determinados espaços ou a determinados produtos e serviços.

As barreiras de acessibilidade podem ser pensadas no âmbito analógico ou digital. Nas barreiras de âmbito analógico se situa a inacessibilidade a espaços, edificações, que também pode ser sintetizado como barreiras arquitetônicas. Para além destas, existem ainda obstáculos para o acesso a objetos informacionais – livros, documentos –, seja em virtude de dimensões linguísticas (pensando nos imigrantes e refugiados, nos deficientes auditivos e visuais etc.) e/ou de dimensões culturais, políticas e/ou econômicas, dentre outras.

As barreiras para o acesso a objetos informacionais alcançam também – apesar da diferença na infraestrutura de informação – aspectos tocantes ao acesso à informação no ambiente digital e em rede. A particularidade da infraestrutura digital requer abordagens específicas, como as que se debruçam sobre problemas de usabilidade de websites, de arquitetura da informação, enfim, relacionadas igualmente à organização e à recuperação da informação.

Os segmentos sociais desprivilegiados podem ser abordados em termos de “minorias sociais” ou de “maiorias silenciadas”. Ao menos dois sentidos possíveis de “minorias sociais” (ainda que, por vezes, correspondam a maiorias populacionais) foram amplamente disseminados, um relacionado a “minorias nacionais” e o outro atinente a pessoas desprivilegiadas (CHAVES, 1971).

O entendimento sobre as "minorias nacionais” ocorre quando há comparação a uma maioria num determinado Estado e/ou território, e, aí, a minoria se consubstancia, por exemplo, em grupos étnicos. O outro sentido aborda um grupo de pessoas com alguma desvantagem no âmbito das relações sociais (CHAVES, 1971) e nas posições de poder. Nesse último sentido, a invisibilidade social também pode ser interpretada como a impossibilidade e/ou dificuldade de participação de sujeitos na vida pública em razão de alguma vulnerabilidade (TOMÁS, 2010).

Por outro lado, ao abordar os avanços da promulgação da Constituição Federal brasileira de 1988, a intelectual Lélia Gonzalez problematiza a ideia de minorias em termos populacionais em virtude do fato de as pessoas desprivilegiadas constituírem, ao invés de minorias, uma maioria silenciada. Nas palavras da autora, a constituinte “[...] nos levou a concluir que era necessário alguém na retaguarda que levasse não só a questão do negro, mas também a questão da mulher, dos homossexuais, das minorias, ou melhor, das maiorias silenciadas.” (GONZALEZ, 2020).

Articulam-se às questões políticas e econômicas, aquelas de ordem racial, de gênero e classe social. No Brasil, a “normatividade” – que coloca à margem as “minorias sociais” (em espaços políticos de decisão) na condição de, em seu conjunto, “maiorias silenciadas” –, é referenciada na cor branca, no masculino, na orientação sexual cis e no ambiente urbano, segregando e invisibilizando pessoas que não se encaixam, em todo ou em parte, nesse arquétipo, sejam pessoas negras, mulheres, LGBTQIA+, indígenas (VIEIRA; KARPINSKI, 2019), pessoas com deficiência, que vivem no meio rural ou de regiões menos desenvolvidas do país.

Estudos recentes têm se debruçado sobre a questão da visibilidade da cultura negra em espaços informacionais. Ao exemplificar o caso da biblioteca no Brasil, observa-se a exclusão daquelas populações em virtude da ausência (ou pouca presença) da memória expressa em materiais bibliográficos. Isso não vai ao encontro do fortalecimento daquele grupo étnico, bem como para a preservação da sua história, memória e cultura (SILVA; LIMA, 2019).

O livro de Nascimento (2021) busca desvendar o véu da opacidade da representação da mulher nos arquivos públicos brasileiros. A autora realiza um levantamento, com abrangência de 1826 a 1985, relativo aos acontecimentos que registraram a participação de mulheres, buscando abranger a escravatura e abolição do trabalho escravo no Brasil, o direito ao voto feminino no Brasil e a Ditadura Militar brasileira de 1964 a 1985. Identifica, ao final, que o papel das mulheres na vida política tem sido obliterado na descrição arquivística e em instrumentos de pesquisa elaborados pelos arquivos públicos do país.

Investigações que consideram o espectro LGBTQIA+ têm observado que o termo “trans” – para se referir a individualidades, como gênero e nome social – é comumente concebido como “anormal” por setores da sociedade, fomentando preconceitos e violências. Alguns cuidados têm sido apontados para o acolhimento de pessoas trans em bibliotecas, como é o caso da não-identificação de gênero em relação a criação de cadastro na instituição, ou da disponibilização de banheiros de gênero neutro, dentre outros (RIGHETTO; CUNHA; VITORINO, 2019).

As pessoas com deficiência, por apresentarem características diferentes, podem fazer parte do rol das “maiorias silenciadas”. Nesse caso, a questão das barreiras de acessibilidade possui posição de destaque. Com a padronização social daquilo que é considerado “normal” (SILVA; BERNARDINO, 2015) ou segundo ideais de beleza (LEITE; MEYER-PFLUG, 2016), as pessoas com deficiência são excluídas de diferentes maneiras em espaços institucionais, que podem promover barreiras arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, metodológicas, instrumentais e programáticas (SILVA; BERNARDINO, 2015).

Na biblioteca podem ser observadas dificuldades de acessibilidade – para deficientes físicos, para deficientes mentais, para idosos etc. – em razão da ausência de sinalização, de elevador/ascensor, de rampas, ou presença de declives, dentre outras estruturas – barreiras arquitetônicas –; ou quando o bibliotecário não é proficiente em libras para atender uma pessoa com deficiência auditiva ou não sabe como agir diante de pessoas com deficiência – barreiras comunicacionais –; ou quando o profissional age com preconceito, com capacitismo e/ou sem alteridade – barreiras atitudinais –; ou quando não dispõe de técnicas adequadas, por exemplo, para o tratamento da informação – barreiras metodológicas –; ou quando não dispõe de equipamentos adequados, como é o caso de carência de reglete para escrever em braile – barreiras instrumentais –; ou, ainda, quando a biblioteca dispõe de regulamentos inadequados que dificultam o acesso aos produtos e serviços oferecidos – barreiras programáticas.

À luz desses aspectos, as unidades de informação devem ser instituições que permitam às pessoas com deficiência o desenvolvimento de atividades diárias com autonomia (SILVA; BERNARDINO, 2015). Como alternativa, as instituições podem se munir de meios e estratégias, como é o caso da promoção de cooperação interinstitucional, contando com equipamentos, serviços e espaços adequados, bem como contando com profissionais e técnicos informados (RIBEIRO; LEITE, 2011), algo que pressupõe concepções e visões de mundo que devem ser objeto de pesquisa e ensino para a formação profissional nos cursos de Biblioteconomia, Ciência da Informação e áreas afins.

Considerações finais

No sentido de se considerar a diversidade de sujeitos da comunidade no âmbito dos profissionais que trabalham com a (inter)mediação da informação, bem como na direção de se ampliar as possibilidades de estudo sobre as barreiras socioinstitucionais ao não-público, há de se problematizar no sentido de apontar para outras concepções e visões de mundo advindas dos questionamentos e debates acadêmicos e profissionais sobre informação e comunidade, bem como realizar investigações epistemológicas no cenário informacional.

O caminho do estudo e da reflexão sobre a composição de classes sociais – por exemplo, na sociedade brasileira – é estratégico para rever criticamente os modos e concepções de mundo influentes na produção acadêmica e na formação e atuação profissional em Biblioteconomia, Ciência da Informação e áreas afins. Ademais, se o paradigma tecnicista tenciona e/ou orienta parcela da pesquisa, do ensino e da formação profissional de modo a se apresentar como meio socioinstitucional de (re)produzir não-público, questões de ordem epistemológica se fazem não apenas necessárias, mas prementes.

Nessa direção, estudos de informação e comunidade e de usuários e não-usuários de informação (RABELLO; ALMEIDA JUNIOR, 2020) apresentam caminhos profícuos para a identificação de diagnósticos e para a reflexão sobre desigualdade e invisibilidade social em unidades de informação, apontando para caminhos epistemológicos, políticos e éticos alternativos para formação e atuação profissional no campo informacional.

Referências

CHAVES, L. G. M. Minorias e seus estudos no Brasil. Revista de Ciências Sociais, v.2., n.1, p. 149-168, 1971.

FLUSSER, V. Uma biblioteca verdadeiramente pública. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, v.9, n.2, p. 131-138, set. 1980.

GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

LEITE, F. P. A.; MEYER-PFLUG, S. R. Acessibilidade digital: direito fundamental para as pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 2, p. 133-153, 2016.

NASCIMENTO, M. I. G. Desvendando o véu da opacidade: a representação da mulher nos arquivos públicos brasileiros. Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora, 2021. (Selo Nyota). 412 p.

RABELLO, R. Noções de sujeito em modelos teóricos na ciência da informação: do enfoque no sistema à consideração da agência em contexto. Informação & Sociedade: Estudos, v. 23, n. 3, p. 57- 71, 2013.

RABELLO, R. Práticas informacionais, usuário e ralé estrutural como não-público: praxiologias restritiva ou receptiva. In: TANUS, G.; ROCHA, J.; BERTI, C. (Org.). Práticas informacionais em diálogo com as ciências sociais e humanas. Florianópolis: Rocha Gráfica e Editora, 2021. (Selo Nyota).

RABELLO, R.; ALMEIDA JUNIOR, O. F. Usuário de informação e ralé estrutural como não-público: reflexões sobre desigualdade e invisibilidade social em unidades de informação. Informação & Sociedade: Estudos, v. 30, n. 4, p. 1-24, 2020.

RIBEIRO, A.; LEITE, J. Contributos para um conceito de “Biblioteca inclusiva”. Integrar, n. 19, p. 50-56, set./dez. 2002. Número temático acessibilidade e ajudas técnicas.

RIGHETTO, G. G.; CUNHA, M. F. V.; VITORINO, E. V. O papel social do bibliotecário voltado às pessoas trans: aproximações teóricas. Em Questão, v. 25, n. 1, p. 212-238, 2019.

SILVA, C. C. O.; BERNARDINO, M. C. R. Percepções sobre biblioteca inclusiva. Revista Folha de Rosto, v. 1, n. 1, p. 30-43, 2015.

SILVA, A. S.; LIMA, G. S. Construindo a visibilidade da cultura negra: ações socioeducativas para combater o racismo nos espaços informacionais. Revista ACB, v. 24, n. 2, p. 333-344, ago. 2019.

TOMÁS, J. La notion d’invisibilité sociale. Cultures et Sociétés, n.16, p. 103-109, 2010.

VIEIRA, K. R.; KARPINSKI, C. Os estudos de usuários para as minorias sociais. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, v. 15, n. 1, p.60-76, 2019.

 

 

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ATUAÇÃO PROFISSIONAL E NÃO-USUÁRIO EM UNIDADES DE INFORMAÇÃO
Setembro/2021



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RODRIGO RABELLO

Professor da UnB. Formado em Biblioteconomia e doutor em Ciência da Informação pela UNESP, com pós-doutorados na mesma área pelo IBICT e pela UnB. Publicou recentemente, em co-organização com a Profa. Dra. Maria Nélida González de Gómez, o livro “Informação: agentes e intermediação” (http://livroaberto.ibict.br/handle/123456789/1068), coletânea editada pelo IBICT e que conta com a colaboração de autores brasileiros e espanhóis.