ALÉM DAS BIBLIOTECAS


PALAVRAS SÃO MAIS DO QUE PALAVRAS

Alguém me mandou num dia qualquer um vídeo. Mas não um vídeo qualquer. Em poucos minutos, expõe a figura de um senhor cego sentado nas cercanias da escadaria de um prédio qualquer num dia qualquer. Um papelão anuncia, em palavras garrafais, aos transeuntes sua deficiência: “Sou cego, por favor, ajude”. Indiferentes, as pessoas continuam a circular. Vez por outra, uma moeda resvala aos seus pés. São, na verdade, raras.

 

É quando uma jovem para ao seu lado. Ele toca os sapatos da moça para reconhecer quem se deteve ao seu lado. Com gesto seguro e decidido, ela vira o papelão e escreve nova sentença. Segue. De repente, as moedas começam a cair com frequência inusitada. Algo muda. A jovem volta mais tarde. O homem lhe pergunta: o que você escreveu? Ela diz: “escrevi a mesma coisa, mas com palavras diferentes” – “É um lindo dia e não posso vê-lo”. O vídeo finaliza: “Mude suas palavras. Mude seu mundo.”

 

De fato, não é um vídeo qualquer. Traz uma lição que se aplica ao ser humano de qualquer geração. É preciso cuidar das palavras. É preciso usá-las com desvelo. Há casos de pessoas que comprometem sua imagem pelo mau uso das palavras. Um caso emblemático é o de Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal. Elevado à condição de vencedor por sua vida de enfrentamento diante de obstáculos comuns a quem nasce negro num país mestiço, mas que teima em negar sua negritude, Joaquim deixou cair pelos árduos caminhos que cruzou a importância do afago às palavras. Apesar de sua competência, numa das muitas cenas protagonizadas, exatamente no dia 5 de março passado, chama o repórter Felipe Recondo, jornal “O Estado de São Paulo” de “palhaço” e o manda “chafurdar na lama”. Palavras que ferem frontalmente o Art. 140 do Código Penal brasileiro, segundo o qual injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro constitui crime com pena prevista de detenção de um a seis meses, ou multa. Há duas alternativas: ou o Código só se aplica aos cidadãos “comuns” ou Barbosa teme reduzir sua autoridade ou a relevância do cargo que ora ocupa se lançar mão de traços mínimos de civilidade, cortesia e afabilidade com os interlocutores, não importa quem sejam.

 

Há mil outros casos. Pessoas que ocupam cargos simples, mas que lhes dão poder instantâneo. É o poder “miojo”. É o professor universitário (ou não) numa chefia qualquer. É o segurança de banco investido de autoridade fugaz, mas vivendo a doce ilusão de ser banqueiro. São jovens assistentes em embaixadas, travestidos de embaixadores ou embaixatrizes. Na verdade, observação atenta e minuciosa diante da postura e do uso das palavras em nosso cotidiano é a leitura de um manual de comportamento humano. Há situações hilárias ou dignas de compaixão. São pessoas que precisam se impor para conseguir temor, nunca, respeito.

 

As palavras ofendem mais do que a realidade, seja no âmbito do STF ou numa esquina qualquer. Geram distorções, desentendimentos e equívocos. Algumas vezes, por engano. Outras, propositadamente. Assim, sobrevivemos num mundo de desencontros, e, sobretudo, de desperdício de afago e afeto. Às vezes, em vez de esclarecer, calamos, uma vez que elucidar traz o risco de agravar os mal-entendidos. Estou dentre os que recorrem às palavras em vez dos silêncios cheios de mágoas ou das palavras não ditas (aqui, entram os sorrisos de descaso, os gestos de deboche, as agressões camufladas) para rever os fatos. No entanto, reconheço que há situações em que o ressentimento assumiu tal proporção que está tudo perdido. Em parte, porque tudo que precisava ser falado foi calado; em parte, porque o outro ou nós mesmos não temos o dom de entender que as palavras são mais do que palavras. São recursos de uma convivência pautada pela sinceridade, complacência e, sobretudo, pelo respeito às diferenças. De forma similar, são armas que ferem e nos impedem de partir com deferência e apreço.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”