ALÉM DAS BIBLIOTECAS


REVISITANDO JORGE AMADO

Jorge Amado: sua vida em conta-gotas...

 

Dizem que nada é por acaso. E, na verdade, coincidentemente, ao longo da vida, na condição de docente, sempre citamos Jorge Amado como o exemplo incontestável de que o conhecimento da vida dos autores – romancistas ou não – ajuda, e muito, a compreender e apreender sua obra. Então, apresentava a questão: Jorge Amado teria sido o Jorge Amado que conhecemos se nascera em outra região, em outro país, em outra realidade?

 

Nascido em 10 de agosto de 1912, numa família de classe média alta de fazendeiro de cacau, Jorge Amado chega ao mundo em Itabuna, sul da Bahia. Líder desde jovem e jornalista desde sempre, o amante das letras e do jornalismo, mesmo sem jamais ter exercido a advocacia, conclui seu bacharelado em Ciências Jurídicas na Universidade do Rio de Janeiro, ano 1935, em meio a perseguições políticas contínuas e sistemáticas.

 

Seu primeiro romance “oficial” é O país do carnaval”, de 1931. O romance “Cacau”, 1933, seu segundo livro, é apreendido por militares, o que o leva ao exílio, na vizinha Argentina. Entre 1936 e 1937, é preso como oponente ao Estado Novo. Após a edição de biografia do revolucionário Luiz Carlos Prestes, 1942, em Buenos Aires, J. Amado é, mais uma vez, detido e preso ao desembarcar em Porto Alegre e proibido de deixar Salvador. Poucos anos depois, 1945, investe em sua candidatura a deputado pelo Partido Comunista Brasileiro. Naquele ano, conhece a escritora paulista Zélia Gattai, também, como ele, sobrevivente de um casamento anterior. Lutam lado a lado em prol do movimento pela anistia de presos políticos. Desde então, o casal não mais se separa.

 

Jorge Amado e Zélia Gattai: amor e literatura se encontram

 

 

Fonte: http://https://www.google.com.br/search?q=jorge+amado

 

Zélia continua ao lado do marido, com quem teve um casal de filhos, até sua morte – 56 anos de intenso convívio. Cúmplice e companheira, é uma “verdadeira faz tudo”: datilografa e revisa textos e opina sobre todos os projetos. Aliás, “reza a lenda” que jamais Amado travou amizade com o computador. Manteve-se fiel à velha máquina de escrever, segundo frase notória: “Continuo batendo com dois dedos e errando muito [...] Sou um dos homens mais incapazes do mundo. A lista de minhas incapacidades é enorme.” Entre exílios e retornos ao território nacional e ao cenário político, entre fugas e esconderijos, entre prisões e solturas, nos anos 50, Jorge Amado decide viver por aqui e se dedicar por completo à literatura, o que o faz até a morte, aos 84 anos, em 1996.

 

Jorge Amado: sua obra... seu legado

 

Escrever sobre Jorge Amado é retomar a vida da população brasileira ou do povo baiano, em particular, com sua irreverência, seu sensualismo e sua brasilidade. Isto justifica a quase totalidade de seus biógrafos o considerarem representante da segunda fase do Modernismo nacional e, ainda, um dos expoentes do romance regionalista / romance proletário / romance da terra ou outras designações, todas elas sempre polêmicas. Traz ao palco temas no contexto do realismo socialista, atingindo grande popularidade, ao contar histórias genuínas e legítimas e que, por isso, comovem grandes públicos. O autor insere paisagens, paixões, amores, dramas, secas rigorosas e a perdição da migração, invariavelmente, com ênfase para os segmentos sociais menos favorecidos, a exemplo de crianças abandonadas, plantadores de cacau, artesãos, pescadores, prostitutas, cafetões, vagabundos ou trabalhadores que sobrevivem à beira do cais, na capital baiana ou em periferias da cidade grande e que se transmutam em heróis populares, nem sempre fiéis à ética e ao decoro.

 

É o caso de Vadinho, o malandro de “Dona Flor e seus dois maridos” que, num domingo de carnaval, parte da boemia para mais além, mas não deixa de azucrinar os que ficam. Há, ainda, o exportador carioca Mundinho Falcão e o árabe Nacib, que marcam presença na vida da singela sertaneja Gabriela, em “Gabriela, cravo e canela.” Esta faz companhia a outras fêmeas de extrema sensualidade, como Dona Flor; Tereza Batista, em “Tereza Batista cansada de guerra”, ano 1972; Antonieta (ou Tieta), em “Tieta do agreste”, romance de 1977.

 

Jorge Amado explora, ainda, e com frequência, a tragédia que se segue às epidemias, tal como a varíola, responsável pela mudança de sua família, quando tinha apenas um ano, para viver em Ilhéus, a que chama carinhosamente, vida afora, de “Princesinha do sul, terra de encantos e magias.” Ali, vive parte de sua infância, o que justifica a presença do município em sua bibliografia, como em “São Jorge dos Ilhéus”, “Gabriela, cravo e canela” e “Capitães de areia.” Ainda hoje, o Bar Vesúvio e o cabaré Bataclan com as “meninas” de Maria Machadão, recantos cantados e decantados em “Gabriela...” sobrevivem e atraem turistas, ainda que “infiéis” às funções, à época, sonhadas pelo romancista.

 

Após sua experiência na “Academia dos Rebeldes”, aos 19 anos, ano 1931 e data de seu ingresso no Curso de Direito, J. Amado lança, como antes citado, seu primeiro romance “oficial”, “O país do carnaval”, cujo protagonista, Paulo Rigger, após sete anos em Paris, surpreende-se com a alienação vivida pelos compatriotas no “Brasil do carnaval.” Conservando sua própria inquietação, o autor explora a contradição de Rigger: sente-se brasileiro em meio à folia, mas, paradoxalmente, a irresponsabilidade incontida das festividades fere sua sensibilidade, o que determina seu regresso à Europa.

 

Na verdade, ao longo de anos e décadas, J. Amado mantém-se fiel ao estilo literário do romance moderno, conhecido com tantas denominações como antes mencionadas, ênfase para “romance da terra.” Sua produção atravessa várias gerações pelo tom agradável da linguagem, apesar de considerada por alguns críticos, como áspera e agressiva. Transcreve diálogos entre suas personagens de forma realista, num processo de comunicação direta e sem disfarces, em que denuncia desigualdades sociais e preconceitos. Eis a passagem em que descreve a audácia de Zé Estique, figura do romance “Jubiabá”, protagonizado por Antônio Balduíno, um dos primeiros heróis negros da literatura brasileira:

 

Sabem o que ele faz? Ele entra em Itabunas montado, e quando passa por um graúdo, salta e diz: abra o bolso que eu quero mijar dentro. Não tem homem que não abra [...] Uma vez entrou em Itabuna e encontrou uma moça branca, filha do intendente. Sabe o que fez? – Moça, segura aqui que eu quero mijar. E era pra moça segurar nas coisas dele.     De: AMADO. Jubiabá, 1935.  

 

Apesar de não haver consenso, com certa frequência, críticos literários distribuem a produção intelectual de Jorge Amado em três fases: (1) romances sobre a Bahia ou coletividades representativas da vida em Salvador e / ou em outras cidades, em que a ficção se mescla com a aviltante realidade urbana. Exemplos: “Suor”, “O país do carnaval”, “Capitães de areia”; (2) romances atrelados à cultura do cacau. Exemplos: “Cacau” e “Terras do sem fim”; (3) crônicas de costumes, que favorecem o conhecimento acerca de valores e costumes das comunidades, incluindo segmentos distintos, como política, educação e comunicação. Exemplos: “Jubiabá”, “Mar morto” (agraciado pelo Prêmio Graça Aranha), “Gabriela, cravo e canela”, entre muitos outros que exaltam heróis ou vilões. No melhor estilo de crônica de costumes, Dona Flor...”, ao descrever a perdição das noites baianas, com seus cassinos e cabarés, a culinária apimentada, os ritos do candomblé e o convívio amigável entre doutores, políticos, poetas, prostitutas e malandros exalta a voluptuosidade de Dona Flor, que desfruta as delícias de um Teodoro amoroso e, sem pudor, as loucuras proporcionadas por um Vadinho sem limites: é o Brasil entre trabalho e malandragem; seriedade e baderna; oração e prazer.

 

Sua produção literária alcança tal vigor que, ao falecer, J. Amado deixa livros publicados em quase 60 países e em 49 idiomas. Tudo isto, sem contar as edições em braile e em formato de audiolivro. Prêmios nacionais e internacionais. Ingresso na Academia Brasileira de Letras. E a certeza inabalável da proteção de Exu... Durante décadas, sua vasta obra recebe adaptações (o que merece estudo à parte) para rádio, cinema, teatro e tevê, histórias em quadrinhos, etc., além de ter sido tema de escolas brasileiras de samba, com o ápice, no carnaval de 2012, quando, no Rio de Janeiro, a Escola Imperatriz exalta o centenário do escritor em desfile na Sapucaí.

 

E há mais: aos 70 anos de idade e 50 de literatura, em 1982, Jorge Amado decide criar a Fundação Casa de Jorge Amado, resistindo, bravamente, às investidas de instituições brasileiras ou estrangeiras, com destaque para a Penn State University que pleiteou a doação do acervo do escritor para estudo e pesquisa.  Graças à atitude de sua mulher e amada, que se opôs ferrenhamente à ideia, assegurando que autor e coleção pertencem, genuinamente, ao povo baiano, a Fundação está para lá de viva e atuante, em Salvador.

 

Jorge Amado: considerações para recomeçar...

 

Impossível esgotar o perfil, como narrativa biográfica ou não, de Jorge Leal Amado de Faria, por sua vasta e complexa obra. Além disso, não se trata de escritor restrito a um único gênero literário. Jorge Amado passeia, com desenvoltura, tanto pelo romance (que prevalece) quanto pela poesia. Em 1938, em Sergipe, lança, em edição limitada e sem fim comercial, o livro de poemas “A estrada do mar”, hoje, obra de difícil acesso.

 

Também investe em publicações de cunho biográfico. Em “ABC de Castro Alves”, ano 1941, disserta sobre a vida do poeta baiano Castro Alves, com quem mantém por anos a fio sólida relação de amizade pautada por visível identificação pessoal nas esferas política, ética e literária. No ano seguinte, em Buenos Aires, é a vez de “O cavaleiro da esperança”, biografia romanceada de Prestes com o intuito claro de ajudar na anistia do amigo comunista.

 

Dentro do exposto até então – seu regionalismo e seu sentimento infinito de pertença ao Estado natal – Jorge Amado publica “Bahia de Todos os Santos”, originalmente em 1944, ano de lutas e discussões antifascistas. Coerente com os preceitos em que crê, o autor, ao tempo em que sublima a grandeza do Estado, da capital e de sua gente, não deixa de denunciar as sérias mazelas sociais que envolvem o duro cotidiano do trabalhador braçal, os delitos dos pequenos “capitães da areia”, etc. Emociona, entristece e nos faz refletir sobre os dramas vivenciados pelos pequenos “capitães”, quando oscilam entre a lealdade ao bando e a descoberta às centelhas e não mais às migalhas de amor que encontram aqui e ali, mas que são forçados a deixar lançados por terra, com o coração em chama:

 

[...] naquelas casas, se o acolhiam [...] era como cumprindo [...] obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele [...] Desta vez, estava sendo diferente [...] Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar [...] Então os lábios de Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais do que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia furtar a si próprio também [...]                      De: AMADO. Capitães de areia, 1937.

 

Prosseguindo, “O amor do soldado”, de 1944, é a única obra especialmente para teatro de JA. Escrita a pedido de Bibi Ferreira, narra o atormentado romance entre Castro Alves e a atriz portuguesa Eugênia Câmara. A companhia de Bibi se dissolve antes de o texto chegar aos palcos. Porém, três anos depois, é publicado como livro, quando do centenário do nascimento de “O poeta dos escravos.” Enquanto isto, “O mundo da paz”, 1951, reúne impressões de viagens de quem foi um cidadão do mundo, não apenas por seu deslocamento por diferentes continentes, mas, sobretudo, por sua diligência ante os problemas universais.

 

Jorge Amado não deixa de lado o público infanto-juvenil. Em 1976, edita “O gato Malhado e a andorinha Sinhá”, mais adiante, adaptado para o teatro e o balé. Conta o amor impossível entre o gato Malhado e a andorinha Sinhá, não apenas por ser ele um felino, mas, sobretudo, porque a amada está prometida ao majestoso Rouxinol. Na mesma linha, anos depois, em 1984, chega às crianças e aos adolescentes “A bola e o goleiro”, saga de Bilô-Bilô, goleiro de incompetência ímpar, o que justifica “n” apelidos que lhe causam vergonha e dor. Mão furada, Mão podre e Rei do galinheiro são alguns deles. A fábula “O milagre dos pássaros”, 1997, faz alusão às relações conjugais e extraconjugais que se passam no interior do Nordeste, em particular, em Piranhas, Alagoas, às margens do hoje tão conturbado rio São Francisco. O gênero contos é contemplado por Jorge Amado em “Do recente milagre dos pássaros”, de 1979; enquanto memórias estão presentes em “O menino grapiúna”, 1981 e em “Navegação de cabotagem”, de 1992.

 

Crônicas é a categorização atribuída a um dos últimos lançamentos de Amado, “Hora da guerra”, de 2008. Trata-se de texto comemorativo do aniversário de um ano da coluna que o autor mantém, a cada dia, entre 1942 e 1945, em “O Imparcial”, jornal de Salvador. As 103 crônicas reunidas em livro revelam um escritor que esbraveja contra o nazismo e o fascismo nos continentes europeu, africano e asiático. De um lado, combate Adolf Hitler, Benito Mussolini, Francisco Franco e outros indivíduos “odiosos.” De outro lado, enaltece o ditador russo Josef Stalin. Mas, surpreendentemente, em nenhum momento, descuida de valores éticos universais, como liberdade, paz e respeito ao outro. Resta, pois, o orgulho de manter, no cenário nacional, um escritor de talentos múltiplos e de atenção acurada frente aos problemas sociais. Provocativo e revolucionário, porém, coerente com seus ideais! Por tudo isso, não é à toa que merece verbete completo no recém-lançado dicionário, o Portal do Mutirão Brasileirismo Comunicacional, de nossa autoria.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”