ALÉM DAS BIBLIOTECAS


QUEM DISSE QUE VELHA SÓ AMA NETOS E REPUDIA HOMENS?

Desculpem-nos os cinéfilos apaixonados. Desculpem-nos nossos companheiros de cineclube de longa data.  Desta vez, eis um comentário totalmente passional, sem rodeios nem atalhos, acerca do recente filme “Boa sorte, Leo Grande” (ou Good luck to you, Leo Grande), produzido no Reino Unido, em 2021 com estreia em 2022, sob a direção de Sophie Hyde (filme de grande sucesso: 52 Tuesdays) e roteiro de Katy Brand. Isto porque acreditamos que muitas mulheres de meia idade ou instauradas na velhice identificam-se com a questão sorrateira de sexualidade adormecida ou agonizante e, pior ainda, uma quantidade indizível de mulheres jovens e faceiras acostumam-se a fingir, vez por outra, ou, com certa frequência, o tão alardeado orgasmo para agradar o companheiro.

“Boa sorte, L.G.” explora a velha lenda que perpassa gerações, de que, tal como os velhos só amam jogos de cartas ou dominó e temem enfrentar as mulheres sem a tal pílula azul ou da cor que seja, a sociedade decreta com letras de fogo que velhas só amam netos e repudiam homens. Pura mentira. Embuste puro. Há poucos dias, a atriz brasileira Suzana Vieira, no alto de seus 80 anos, veio a público confessar com naturalidade que está aberta a novos relacionamentos e a novos amores. No caso, Nancy Stokes, protagonizada pela sempre impecável Emma Thompson, após aposentadoria como professora de religião e uma viuvez depois de anos a fio num casamento morno e numa cama gélida, procura descobrir o prazer do orgasmo sobre o qual escutou falar a vida inteira, mas lhe pareceu inatingível mesmo quando o buscava na solidão de seus lençóis sempre impecáveis.   

Uma agência de garotos de programa primorosamente selecionados parece a solução. E é quando entra em cena, Leo, interpretado por Daryl McCormack, bonito, atencioso, carinhoso, amável, porte elegante, conversa encantadora, e, sobretudo, extremamente paciente com as parceiras, até quando elas chegam ao encontro, como Nancy, com uma listinha hilária ditando o que pode e o que não pode acontecer entre eles num sequência rígida a ser obedecida. No caso, veto irrevogável ao sexo anal e a outras coisitas mais. Para a “viúva-virgem”, é difícil admitir sua feminilidade e/ou sexualidade. Mas é a ele, seu segundo homem e sua primeira aventura, que ela confessa o inconfessável até então: a vida de mentira até então levada adiante e seu desencanto perante os dois filhos, que parecem a seus olhos aquém de suas expectativas.

É evidente que para Nancy – como para a maior parcela das mulheres não jovens e não belas, nas quais me incluo – a busca não é tão somente por um orgasmo fugidio e fugaz. Mesmo de forma inconsciente, ela pede colo, aconchego humano, irrestrito apoio para deixar vir à tona os demônios interiores que carrega consigo. No decorrer dos quatro encontros, que se estendem ao longo dos 97 minutos de duração do filme, os quais ocorrem sempre no mesmo quarto de hotel, o público assiste às cenas num recinto propositadamente clean como se fora adequado para retratar a vida cinza da mulher austera e sem cor como Nancy o fora por toda sua existência.

Na verdade, Bryan Mason, responsável pela fotografia e montagem, imprime maior brilho à película “Boa sorte, Leo Grande”, no momento em que lança os dois protagonistas literalmente em meio a uma iluminação diáfana, recorrendo à janela do quarto como ferramenta visual e narrativa. Ao tempo em que nos permite vislumbrá-los enclausurados no obscuro movimento do prazer, narra sem palavras essa procura quase obsessiva quando as silhuetas dançam retoricamente ao redor um do outro num jogo pleno de beleza, volúpia e sensualidade.

Pouco a pouco, sem que ambos se deem conta, há sutil descoberta de um pelo outro e maior autodescoberta de cada um por si mesmo, até porque Leo também possui dores e perdas que carrega consigo como um fardo pesado, incluindo a rejeição da mãe por sua opção de vida. Há, então, em belo desnudamento não de corpos, mas de almas... É este um dos momentos mais lindos do filme. É a sensação que atinge os espectadores: eis um encontro provisório de almas, mas que transmuta uma transa num encontro de luz. Há uma doce entrega que extrapola qualquer orgasmo, onde homem e mulher deixam escorrer pelo olhar denso o desejo intenso diluído em seus corpos liquefeitos em pura luxúria.

Afinal, Leo é bem mais do que uma máquina de produzir orgasmos. Ele é tão humano quanto ela, e, possivelmente, tão carente quanto ela. Não poderia ser uma relação duradoura pelos momentos distintos de vida de cada um, mas, com certeza, ambos carregarão consigo para sempre as lembranças do que viveram.

A cena final quando a mulher se olha num grande espelho – ela e o corpo esplendorosamente nu – transmite a todos a dimensão humana do envelhecimento. A velhice existe. A velhice faz parte do ciclo da vida. E não significa perda de dignidade e de vontade de vencer, amar, gozar e brilhar. Brilhar, com a luz própria desse estágio da vida.


Fonte: Google Imagem - divulgação do fiulme


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”