ALÉM DAS BIBLIOTECAS


VIVA OS MORTOS QUE DEIXAM SAUDADE!

Há profundas distinções entre os ritos que cercam a morte, a depender das religiões cultuadas, e, por conseguinte, dos universos culturais. Dentre os elementos representativos que se fortalecem em cada coletividade, nenhum é maior do que a religião. O sentimento de religiosidade é algo arraigado ao ser humano. Todos o possuímos, de maneira mais, ou menos latente, até mesmo para os que o negam. Os ideais religiosos contribuem para estruturar e confirmar o sistema legal dos povos, escrito ou oral, apesar de, vez ou outra, atuarem muito mais como ópio do que como devoção.

Excelente exemplo vem da Índia, cuja idiossincrasia religiosa é para lá de surpreendente. O hinduísmo predomina entre 80% da população, em seis linhas – nyaya; yoga; vaisheshika; samkhya; mimansa e vedanta. Resultante da evolução, ao longo dos séculos, do vedismo e do bramanismo, hoje se impõe como ampla manifestação cultural, expressa por rica literatura poética e religiosa. E há muito mais: budistas, jainistas, parses, judeus, sikhs, católicos, etc.

Não falo em convivência sempre pacífica, mas, sim, na sobrevivência concomitante de tantos e tão distintos mitos e ritos, inclusive os que caracterizam o enfrentamento diante da partida aos céus. Por exemplo, os adeptos do jainismo, fundado por Mahavira, século VI a.C., com seus fascinantes templos de pedras, creem no carma e no ainsa (rejeição à violência e respeito absoluto à vida de qualquer ser) e se opõem ao sistema de castas do bramanismo, defendendo severos valores morais ascéticos. Os mais ortodoxos chegam a se dispersar em regiões longínquas, completamente nus, na tentativa de maior aproximação com a mãe natureza para esperar a Senhora Morte chegar.

Os sikhs, adeptos do sikhismo, religião monoteísta (século XVI), fundada pelo Guru Nanak, professada em especial pelos panjabis, repelem o sistema de castas e a idolatria, mas conservam suas gurudwaras de mármore e ouro. Há, ainda, sinagogas para os judeus; catedrais para os católicos; e as igrejas ortodoxas dos armênios, na maioria, refugiados da perseguição atroz dos pogroms (ataques contra comunidades judaicas) do Império Otomano. Os parses, antigos persas zoroastristas, por sua vez, permanecem em torres de silêncio ou em templos de fogo, cultuando hábito que nos assombra, como ocidentais: devolvem os mortos à natureza para a delícia dos abutres que rondam as colinas. Enquanto isto, à semelhança dos católicos, os muçulmanos enterram os seus mortos. Os hinduístas os cremam, com naturalidade descomunal. Sem choros e sem velas, cadáveres trafegam pelas ruas, carregados por homens da família. Há casos em que se lançam os corpos às águas sagradas, sobretudo, do rio Ganges. São os ditos “insepultos”: bebês, gestantes, leprosos, portadores de varíola e os iluminados, ou seja, aqueles que renunciaram às posses do mundo.

No caso de Cancún, o éden do século 21, pertencente ao território do México e sujeito a influências inevitáveis do povo norte-americano por sua proximidade física, mantém costume de origem indígena no que se refere ao quesito Senhora Morte, desde o tempo dos astecas e maias. De início, as festividades aconteciam em agosto. Quando os colonizadores espanhóis chegaram, ficaram chocados com os rituais pagãos, mas a cultura nativa prevaleceu. Na atualidade, há variação quanto aos dias de festejo. Quase sempre, os preparativos começam no dia 31 de outubro, o que significa que o período coincide com algumas datas tradicionais da Igreja Católica, como o Dia de Todos os Santos (1o de novembro) e o Dia de Finados (2 de novembro). Ao som de muita música, os cemitérios cobrem-se de flores, incenso, alimentos, bebidas e muitas velas de diferentes cores e tamanhos colocadas cuidadosamente sobre as tumbas.

Apesar da prevalência do dia 2 de novembro, em algumas províncias, as festas vão de 28 de outubro até 2 de novembro: cada dia é dedicado a um grupo de mortos. Exemplificando: 28 de outubro é consagrado àqueles que perderam a vida em acidentes aéreos. O que importa é que os mortos recebem muitas homenagens com esqueletos passeando pelas ruas, portando roupas, chapéus e uma multidão de adereços, que vão de brincos grandes a echarpes coloridas. O intuito é recepcionar as almas que visitam os entes queridos nesses dias de reencontro. Paradoxalmente, é uma festa linda e cheia de encantamento!

No Brasil, perdura o hábito de enterrar os corpos nos cemitérios, ainda que a cremação comece a mostrar a cara. Porém, em nossa opinião, mais relevante do que o culto aos mortos é a vida que carregamos conosco. É a complacência permanente. A ternura inesperada. O memorável é permanecer viva e vívida na memória dos que fizeram parte de nossa existência. É aquela saudade doída, mas que deixa escapar um sorriso leve de recordações plenas. Podemos ser aquela saudade que bate, vez por outra, no coração de um amigo ou de um amor perdido, mas que, de repente, numa madrugada de frio ou numa noite de chuva chorosa, descobre que fomos o amor infinito, aquele que permanece n’alma pela vida inteira e na morte eterna.  Por tudo isso, afirmo com veemência: viva os mortos que deixam saudade!

 

Foto: Acervo pessoal da autora

Antigo cemitério do bairro Judeu, século 15, República Tcheca, Praga


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”