ALÉM DAS BIBLIOTECAS


AS LINHAS TORTAS DO NATAL!

Sem quaisquer resquícios de blasfêmias; sem qualquer rejeição ao poder e à bondade dos deuses das diferentes crenças que seguem por aí; sem qualquer negação à beleza do nascimento do Menino Jesus segundo os preceitos da Igreja Católica, confesso, sem resíduos de remorso, que há muitos anos e cada vez mais, sinto-me distante da alegria do Natal. Causa-me imensa dor reconhecer que muitos e muitos cidadãos desafortunados e muitas instituições filantrópicas reconhecidas socialmente esquecem que um ano é feito de 365 dias, os quais extrapolam o mês das grandes festas, o alvoroço das comemorações festivas em meio a presentes milionários, a pratos requintados e a bebidas de valor astronômico.

 

 

Fonte: https://leiturinha.com.br/blog/contos-de-natal

Se é ilusão e loucura imaginar um ano contínuo de festejos, é doloroso assistir “de camarote” a perdões recheados de hipocrisia; a cartões envoltos em palavras-chave, agora, quase sempre, eletrônicos; a mensagens compiladas aqui e ali, mecanicamente. Não me dói a falta de originalidade. Dói a falta de sinceridade. Se Natal é tempo de perdão, gratidão, reconciliação, generosidade, justiça, reencontro, respeito, deveria ser, essencialmente, tempo de reflexão. Na famosa lista de presentes, “recuerdos” ou, como dizem alguns, de mimos, brilho exuberante no olhar, semblante coalhado de emoções, em que é possível divisar belos laços coloridos de cetim. Os presentes necessitariam ser bem-vindos não por seu valor monetário, mas, sobretudo, pelo carinho que apregoam, pela ternura que resgatam, pela compreensão que trazem à tona, pelo perdão que expressam, às vezes, sem palavras e sem gestos.

Para longe, muito longe, deveríamos jogar as injúrias que insinuamos em direção a desafetos ou a “amigos” que nos parecem “fora da caixinha” nos demais dias ou meses. As mentiras desveladas escondidas em promessas de cafezinhos juntos. A inveja em confrontar o nível de conhecimento dos companheiros, em cenas hilárias, como quem disputa até o número de países vivenciados por outrem, num contexto fora do contexto. A injustiça social. A inveja... Com frequência, o desgosto ou o pesar pela felicidade de outrem não está nas palavras ditas ou mal ditas. Ele está no olhar. Eis a força do olhar, mais uma vez.

O Natal pode ser um dia miserável (e o é) para crianças sem pais no sentido mais pleno da palavra. E o é para apenados, enfermos, solitários, os sem teto, os que carecem de uma família amorosa ou uma palavra fortuita de afeto. Da mesma forma, o Natal é uma data trágico-cômica para quem espera o ano inteiro por uma boneca, uma bicicleta vermelha que não chega, um carrinho inteirinho que estaciona noutra garagem colorida e engalanada aos pés de crianças alegres e eufóricas. Há pouco, ao escutar um conhecido apresentador ou jornalista confessar numa emissora de tevê, com palavras recheadas de ira e ressentimentos, o quanto passara a odiar as festas natalinas, desde quando abandonado em situações miseráveis pelo pai brutal, chorei, o perdoei e o compreendi.  

Sim, tudo isso é muito belo, se não fossem as linhas tortas do Natal! O Natal é desigual, na dubiedade do homem magnânimo e cruel! Para muitos, árvores de Natal com seus enfeites brilhantes e vivazes, demandam famílias reunidas numa conjunção de sentimentos únicos e imperdíveis para celebrar harmonia, saúde, vitória frente a enfermidades indesejadas, a amizade verdadeira (embora, cada vez mais rara) e sonhos cultivados e realizados, incluindo a progressão como ser humano cada vez menos imperfeito e como profissional cada vez mais ético! Como coroamento de tudo isto, o mais importante – a paz n’alma e o amor. Não o amor como palavra coberta de emoções voláteis. Falo de amor-ação, que se manifesta invariavelmente por meio de atitudes frente ao outro, no exercício nada medíocre do perdão e do sorriso brando e terno. Não há lugar para ocasionais e furtivos rancores, amargores, represálias e o que mais “der na telha”.

Para muitos outros, a frustração de famílias inteiras e de seres sozinhos, jogados ao léu, ao capricho de alagamentos e à vizinhança de ratos e ratões ou em quartos vazios de afeto. E eis que, ao longo da redação deste texto, me chega uma dessas mensagens perdidas em meio ao universo de informações eletrônicas. Lástima! Sem autoria! Hesitei, mas não poderia deixar de transcrever trecho tão emotivo, tão verdadeiro! Dizem que não há coincidência! Mas aí estão palavras que não são minhas, mas que transcendem o que gostaria de externar. Se o Natal se dilui em linhas tortas diante da desigualdade da humanidade, acreditem que o Natal pode ser qualquer dia, qualquer hora:

Cada vez que duas pessoas se entendem e se perdoam, é Natal.

Cada vez que você mostra paciência com quem convive, é Natal.

Cada vez que você ajuda uma pessoa, é Natal.

Cada vez que alguém decide ser honesta em tudo o que faz, é Natal.

Cada vez que nasce uma criança, é Natal.

Cada vez que se respeita e se auxilia um idoso, é Natal.

Cada vez que duas pessoas se amam com um amor limpo, profundo e sincero, é Natal.

Cada vez que você olhar alguém com os olhos do coração, sem julgamentos ou críticas, é Natal.

Cada vez que alguém socorre e devolve dignidade a um animalzinho, é Natal.

Cada vez que você divide o pão de sua mesa, é Natal.

Cada vez que se demonstra amor ao próximo, é Natal.

Cada vez que você faz uma reforma íntima e procura dar conteúdo novo a sua vida, é Natal...


   222 Leituras


Saiba Mais





Próximo Ítem

author image
CRISE HUMANITÁRIA QUE CERCA O POVO YANOMAMI
Fevereiro/2023

Ítem Anterior

author image
VIVA OS MORTOS QUE DEIXAM SAUDADE!
Novembro/2022



author image
MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”