LEITURAS E LEITORES


QUANDO A BIBLIOTECA SE PARECER COM UM CAMPINHO DE FUTEBOL

*Dedico este texto a Luiz Humberto e Herbert que me ensinaram um pouco da "química" do futebol.


A convivência revela muitas possibilidades de ver o mundo. Há aspectos da vida e da cultura que não nos damos conta, ou olhamos superficialmente. O senso comum, às vezes, nos induz erroneamente a pensar que algumas idéias são incompatíveis, impossíveis de se partilhar. Mas a vida, o dia a dia estão aí para mostrar o contrário.

Em Barcelona, me aproximei do futebol. Confesso que nunca foi o meu esporte preferido. Já imaginou isso num país monocultor esportivo como era o nosso na época de minha infância? Nada fácil, era como se houvesse algo errado comigo. Aos poucos, por meio dos livros, encontrei meninos que, como eu, não “gostavam” de futebol. No entanto, foi por meio da leitura de gibi que conheci a história do futebol. Esse aspecto me interessava. Penso que, na verdade, não é que não gostava de futebol, apenas me interessava por aspectos que não eram os do jogo propriamente dito.

 

Parece incrível que só aqui e já adulto eu pudesse redescobrir esse esporte que é tão importante para nosso povo. Foi a convivência com brasileiros apaixonados por futebol é que me ajudou a redescobrir uma pequena filigrana do que é compartilhar de uma partida, de uma torcida, de ir a um estádio. Mas como isso pode acontecer? Acontece quando convivemos com pessoas disponíveis a falar de sua paixão, a não menosprezar o olhar daquele que não sabe e, principalmente, explicar como se não estivesse explicando, aquilo que é o óbvio. Aqui pela primeira vez, coisa que nenhum dos meus professores de educação física na infância explicaram, comecei a entender a dinâmica do futebol.

 

A disponibilidade para aprender se concretiza em aprendizagem efetiva quando vem acompanhada de tratamento humano, de crença no outro, sem ser piegas, ou sentimentalista. Quando aquele que busca a aprendizagem se sente respeitado como ser humano e como aprendiz.

 

Começo a pensar nas bibliotecas escolares e nos “campinhos” de futebol daquela época e o que havia em comum, ou não, entre eles. Num primeiro momento é bom relembrar que, há três décadas atrás, dificilmente as escolas possuíam biblioteca e muito menos uma quadra (cancha) poliesportiva adequada para as atividades físicas das crianças. Isso não impedia que existissem campinhos de futebol improvisados em toda a parte, principalmente nas cidades de baixa densidade populacional.

 

Numa visão generalista, embora existissem exceções, as bibliotecas em nosso país, quase sempre, estavam localizadas no pior espaço da escola. Seu mobiliário parecia ter feito uma volta ao passado, ali se encontravam exemplares dispares de mesas, cadeiras, do “tempo da vovó”. Não bastasse isso, a pessoa que trabalhava na biblioteca quase sempre estava ali por muitas razões que se possa imaginar, menos pela principal que é estar envolvida com a leitura, querer promovê-la.

 

No campinho de futebol, ainda que improvisado, usavam-se materiais mais contemporâneos que os das bibliotecas: um balaustre, um pedaço de madeira de uma construção, cabo de vassoura. De vez em quando uma bola artesanal, outro vez uma bola velha e, noutras, uma bola nova. Ali as relações eram abertas, havia o acolhimento daquele que chegava para jogar. As regras eram estabelecidas, operacionalizava -se todo o tipo de adaptação necessária à realização da partida: com camisa, sem camisa etc.  A cada partida, os embates eram decisivos, ali pulsava a vida.

 

A biblioteca escolar daquela época era quase amorfa. Suas cores apagadas e seu mobiliário anacrônico reafirmavam a tibieza pedagógica existente na dinâmica daquele espaço. Nunca se podia falar. Já imaginou isso para criança? Quando se entrava na biblioteca a recomendação mais insistente era para que houvesse silêncio absoluto, enquanto que no campinho as emoções afloravam, expandiam-se em falas, gritos, palmas, abraços, empurrões, piadas etc.

 

A impressão era de que leitura não compactuava com a emoção, com a identidade humana. Isso não quer dizer que o comportamento que exista no campinho, deva existir na biblioteca. Ambientes diferentes requerem comportamentos distintos, no entanto, um ambiente para criança não pode prescindir da expressão emocional.

 

O resultado disso era que a criança não se sentia atraída a entrar num espaço lúgubre, pouco convidativo e, além do mais, com uma pessoa que não estabelecia uma relação afetiva com ela. Não lhe tratava como igual, muito menos a estimulava a freqüentar o lugar, a descobrir os livros ali existentes. A preocupação maior recaía em que a criança não “tirasse as coisas do lugar”.

 

Ir a biblioteca significava encontrar-se num lugar sem muitos atrativos, pois os livros não podiam ser manuseados à vontade, nem todos podiam ser lidos e, pior, havia sempre olhos perscrutadores a vigiar, a coagir, a conferir se havia barulho, se não estava escondendo livro na hora de sair. Enfim, a criança, antes de tudo, era encarada com suspeição e não com crédito. Já no campinho, por princípio, aquele que ia jogar, recebia o “crédito” de entrar e ajudar a equipe a vencer. Era incorporado aos demais, não estava à margem. 

 

É de se perguntar como seria hoje se, naquela época: o país tivesse tantas bibliotecas escolares quanto os campinhos de futebol? Se a freqüência das bibliotecas fosse tão assídua quanto a dos campinhos? Se a acolhida da criança na biblioteca fosse tão natural, simples e amistosa como a que acontecia nos campinhos de futebol? Como seriam as bibliotecas escolares hoje?

 

Quero acreditar que teríamos mais leitores, mais bibliotecas e que já teria se extinguido a dissociação entre o cidadão brasileiro e a leitura.  Além disso, num país com tantos ídolos do futebol, já imaginou se os Ronaldos, em apenas uma das milhares de entrevistas que concedem à impressa, recomendassem algum livro, revista, ou gibi para a garotada que tanto lhes admira, o quanto de leitores teríamos a mais? Ou ainda que algum dos ídolos do “melhor futebol do mundo” incentivasse a criação de biblioteca nos trabalhos sociais que apóiam? Ou ainda se fossem a uma inauguração de uma biblioteca? Já imaginou o quanto isso poderia sugerir ao imaginário de meninos e meninas do Brasil que ainda não descobriram que ler pode ser prazeroso?

 

Para que a leitura esteja presente na vida das crianças brasileiras é necessário...

   

Que a biblioteca para crianças seja ensolarada como o campinho de futebol,

 

Que o mediador saiba oferecer oportunidades para que o leitor perceba de onde vem o sol da leitura.

 

Que o ambiente da biblioteca não seja burocrático, frio, mas sim que a criança seja acolhida com respeito e que aprenda a respeitar o espaço do outro junto aos livros.


Que, como no campinho de futebol, a biblioteca possa ser explorada em todas as suas potencialidades,


Que as crianças construam uma relação de parceria, de proximidade, de intimidade com a biblioteca.

Que a criança deseje ir à biblioteca como ir a qualquer outro lugar que lhe desperte o prazer.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.