ALÉM DAS BIBLIOTECAS


CINQUENTA TONS DE CINZA

Há uma lenda bastante conhecida entre gerações mais antigas, advinda da mitologia grega, reconhecidamente rica em contos, mitos e crendices sobre deuses e seres humanos em caminhos tortos e nunca retilíneos. Segundo dizem, três irmãs moiras determinavam o destino dos deuses e dos homens. Sua força é (ou era) tamanha que, hoje, nos dicionários generalistas brasileiros, o termo – moira – aparece como sinônimo de “personificação do destino imperioso e inflexível, e que conduz tudo a seu fim”, ou seja, corresponde ao “destino de cada indivíduo”.

 

As três mulheres se dedicavam a fabricar lentamente o fio da vida, recorrendo para tanto à chamada roda da fortuna, designação dada ao tear utilizado exatamente para trançar os fios da existência. As voltas da roda colocam a linha do indivíduo ora em partes mais privilegiadas (topo = períodos benéficos da existência), ora em partes mais lúgubres (fundo = períodos sombrios). Assim, as senhoras decidem, sem pudor e sem parcimônia, as fases de boa ou má sorte de deuses e homens. Lembramos que sorte é uma palavra repetida à direita e à esquerda. Falamos: “fulano tem uma sorte incrível!” ou “que má sorte a de sicrano!”, num temor desmedido de pronunciar a palavra – azar. Usamos sorte em diferentes acepções: destino; sina; força que determina tudo que ocorre e cuja causa se atribui à predestinação; fado; casualidade; acaso; ventura; boa estrela, etc. etc. Os dicionários são pródigos na explicação sobre tal verbete.

 

E é sorte a palavra-chave ou palavra mágica que nos faz recordar o best seller instantâneo da londrina E. L. James, intitulado Fifth shades of grey. Lançado a princípio na internet, quando a autora adota o pseudônimo Snowoqueen’s Icedragon, James já tem seu original publicado em vários países, incluindo o Brasil, onde está editado como “Cinquenta tons de cinza”, sob responsabilidade da casa editorial Intrínseca, Rio de Janeiro, ano 2012. No lastro do sucesso inesperado e surpreendente, E. L. James, ex-executiva de TV, casada e mãe de dois filhos, é estreante na literatura, mas bastante ágil e bem assessorada. No lastro do sucesso “miojo”, escreve de imediato dois outros títulos, “Cinquenta tons mais escuros” e “Cinquenta tons de liberdade”, completando a trilogia anunciada como o maior fenômeno editorial dos últimos anos.

 

A princípio, nada de estranho: mais um sucesso de vendas. O problema é que se trata de obra que nada acrescenta ao leitor. Impossível ou difícil entender o êxito entre as mulheres de nacionalidades distintas. A história assim se resume: a jovem universitária Anastasia Steele entrevista um também jovem empresário, Christian Grey. Paixão fulminante os une desde então. Eis o descompasso: uma virgem inexperiente e sonhadora ao lado de um homem que, após uma infância difícil e sofrida, mantém face tremendamente obscura. Apesar de sua fortuna, do amor incondicional da família de adoção, Grey é, essencialmente, um sádico. Dedica-se a colecionar um arsenal de tortura para as possíveis companheiras. Nenhuma censura contra os praticantes do sadomasoquismo, até porque relações pautadas na dominação e na submissão não são recentes. Acreditamos que resultam do ambiente familiar, do nível de afetividade dos envolvidos, das desilusões amorosas, dos sofrimentos e das agressões vivenciadas por cada um. Ademais, quando nomeamos a perversão como tudo o que excede a normalidade sexual, resta definir o que é “normalidade” e a dificuldade aparece com força total.

 

Então, sem tentar discutir o sadismo e masoquismo, isoladamente ou em separado, o que nos chama a atenção é, sobremaneira, a roda da fortuna em tons de cinza que as três irmãs moiras teceram a favor da medíocre E. L. James.  O enredo é bastante previsível. As evidências são jogadas via recursos que carecem de linguagem e construção expressivas. Penso em escritores, atores e atrizes, e tantos outros profissionais, anônimos, perdidos na tecelagem da vida e não agraciados pela roda da fortuna. O que dizer de compositores sensacionais, como o mineiro Paulinho Pedra Azul, praticamente relegado ao esquecimento? O que dizer dos sortudos João Lucas & Marcelo na divulgação do hit “Eu quero tchu. Eu quero tcha”, composição do paraibano Shylton Fernandes? Um adendo: há poucos dias, num casamento bastante chique, eis o tchu e o tcha tocados à exaustão. Escutamos e sorrimos, recordando a roda da fortuna das moiras...


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”