GERAL


UM ROUBO SEM TAMANHO


É bem maior do que o imaginado o estrago no patrimônio da Biblioteca Nacional, que teve fotografias raras do século XIX furtadas durante a greve dos servidores no primeiro semestre deste ano. Desapareceram do acervo pelo menos 900 imagens, em vez de 150, como divulgado em julho. O Ministério da Cultura disse ter recebido da diretoria da fundação a informação de que "quase mil fotos" sumiram. E o número pode aumentar ainda mais. Segundo a administração interina da biblioteca, inventários parciais continuam a ser elaborados.

Um sem-número de obras do brasileiro Marc Ferrez foi levado. Fotógrafo oficial da Corte, ele documentou ainda importantes momentos da história do país, como a Proclamação da República e as reformas urbanísticas de Pereira Passos, no Rio. Do acervo da Biblioteca Nacional, constam cerca de 300 fotos avulsas dele, além de inúmeros livros e álbuns. Também desapareceram fotos dos alemães August Stahl e Guilherme Liebenau, que registraram respectivamente obras e o cotidiano de Pernambuco e Minas, e do inglês Benjamin Mulock, que retratou a construção da quinta estrada de ferro brasileira, na Bahia. Além disso, atesta Rutônio Santanna, presidente da associação dos servidores da biblioteca, foi levada a gravura "Cascade de Tijucca", de 1835, do alemão Johann Moritz Rugendas.

A Polícia Federal, que investiga o crime, diz não ter recebido o inventário completo das obras. Titular da Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da PF, Deuler Rocha criticou a direção da Biblioteca Nacional, que segundo ele não estaria colaborando adequadamente para a solução do caso. - Sequer fomos oficiados sobre o número real de obras furtadas. Ainda estamos trabalhando com o antigo, de mais ou menos 150. É constrangedor que a direção da biblioteca não nos tenha dito quais foram as obras levadas. Assim fica difícil. Para complicar ainda mais, o inquérito ficou parado por dois meses na Procuradoria da República, o que atrasou nosso trabalho. Fazemos apurações, mas não pudemos enviar nada para a perícia, por exemplo - queixa-se.

 

Ex-diretor diz que PF foi informada

Diretor da Fundação Biblioteca Nacional na época em que ocorreu o furto, Pedro Corrêa do Lago rebate as alegações de Rocha e sustenta ter enviado à PF tudo o que foi solicitado. Ele conta que se empenhou na apuração do crime tão logo tomou conhecimento dele: - Gostaria que a Polícia Federal me dissesse qual informação solicitada a minha direção deixou de prestar. Não se faz um inventário desses da noite para o dia, fornecemos as informações conforme as apuramos. Eu determinei que fosse feito o inventário e o passei para o ministro da Cultura (Gilberto Gil) 15 dias antes de deixar a direção da fundação - afirmou Lago, que disse não se lembrar do número exato de obras inventariado. - Sei que foram alguns álbuns inteiros, dois ou três pelo menos.

O Ministério da Cultura confirma ter tomado conhecimento do número de quase mil obras furtadas, mas informa que não fará comentários sobre as investigações devido ao segredo imposto pela Justiça. Já a presidente interina da Fundação Biblioteca Nacional, Maria Isabel Almeida, que assegura não poder pela mesma razão dar o número exato de obras furtadas, diz continuar enviando inventários parciais à Polícia Federal e à Controladoria Geral da União (CGU).

- O processo para a contratação de um novo, e mais eficiente, sistema de segurança ainda não está concluído. Não há vencedor da licitação e, portanto, data para a instalação. Para sua implantação naturalmente precisaremos de mais verbas, que serão pedidas oportunamente. Já havia câmeras na época do roubo, mas o sistema atual será melhor - ela explica, referindo-se à licitação anunciada pouco mais de uma semana depois da descoberta do furto das fotografias.

Futuro presidente da fundação - a nomeação ainda não foi publicada - o professor Muniz Sodré de Araújo Cabral adianta que sua gestão terá ênfase na segurança da Biblioteca Nacional. Ele revela que já tinha ouvido falar que o número de obras furtadas seria maior do que o inicialmente divulgado, mas surpreendeu-se com a extensão do crime: - Sei que há muitos armários que foram abertos. Agora, todas as providências judiciárias já foram tomadas, já há auditoria investigando o furto e há investigação formal. Mas uma coisa é certa: a questão da segurança será prioritária na minha curta gestão, de menos de dois anos. Há goteiras e infiltrações no prédio. Tentaremos sanar essa situação. Sem falar na proteção do acervo. Trata-se de um patrimônio nacional importantíssimo, parte da memória do país. Espero poder retomar a segurança e a confiabilidade da biblioteca.

Ao tomar conhecimento da extensão do furto, a professora Ana Lúcia Saianes de Castro, da UNI-Rio, doutora em ciência da informação e museóloga, também se mostrou surpresa. Para ela, o roubo não foi praticado por amadores: - Não é como o assaltante que entra na sua casa e leva jóias e eletrodomésticos. O grupo que roubou certamente já tinha em vista canais de escoamento. São peças com valor de mercado. Fundamental, numa hora como essa, é ter um bom inventário do acervo, digitalizado. Prova disso foi o roubo no Itamaraty, que acabou esclarecido.

Para Adolfo Nobre, presidente da Associação Brasileira de Museologia, a dilapidação do patrimônio público se deve à precária infra-estrutura dos museus do país. Ele concorda com Ana Lúcia sobre a necessidade de digitalizar os acervos: - Ninguém sabe exatamente qual é o acervo brasileiro. Há uma estimativa de que seriam 400 mil peças, entre bens imóveis e integrados, mas apenas 40 mil estão catalogadas. Eu acho que o nosso acervo é muito maior. Atualmente, estamos trabalhando numa lei muito importante, a Lei Orgânica do Patrimônio Histórico, que vai criar uma série de mecanismos de controle.

 

Acervo tem mais de 8 milhões de peças

A história da Biblioteca Nacional se confunde com a própria história do país. Ela é a instituição cultural mais antiga do Brasil. É a oitava maior biblioteca nacional do mundo, com cerca de oito milhões de peças e capacidade para atender mensalmente a 15 mil pedidos de consulta.

Seu acervo foi herdado da Real Livraria de Lisboa, uma das mais importantes da época, que em 1755 foi destruída depois de um terremoto na cidade, seguido de um incêndio. Depois foi construída a Real Biblioteca da Ajuda, mas com a invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal, a Família Real foi obrigada a vir para o Rio, em 1808, trazendo seu rico acervo.

Este poderia ter se desatualizado, mas, desde o século XIX, a Biblioteca Nacional recebe pelo menos um exemplar de toda obra impressa no país, razão pela qual se mantém atual e ampla. Em seu acervo, há peças raras de várias áreas do conhecimento.

Só na área de música, há 220 mil peças, incluindo as primeiras edições de Haydn, Mozart, Beethoven e outros compositores dos séculos XVIII e XIX. A Biblioteca Nacional também tem dois exemplares da Bíblia de Mogúncia (Bíblia Latina), que é o primeiro impresso que contém data, lugar de impressão e nome dos impressores (Johann Fust e Peter Schoeffer) no colofão (página de rosto, ou de abertura, de um livro), em pergaminho, com letras capitais feitas a mão com tinta azul e vermelha.

Na biblioteca também estão a primeira edição de "Os Lusíadas" (1562) e estampas originais de artistas brasileiros, como Osvaldo Goeldi, Carlos Oswald e Iberê Camargo. Não bastasse o rico acervo, o prédio da biblioteca tem um dos saguões mais impressionantes do país, com arquitetura eclética do fim do século XIX e início do XX, que mistura elementos neoclássicos e de art nouveau.


Autor: Alessandro Soler e Carla Rocha
Fonte: O Globo, 8/11/05
Divulgado por Rizio Bruno – Enviado para “bib_virtual” em 09/11/2005

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.