REFLEXÕES ÉTICAS


BIBLIOTECAS PÚBLICAS E SEU PÚBLICO: COLETIVO DISFORME?

No festivo mês de fevereiro deste ano de 2016 faleceu com pouco mais de quarenta anos uma “moradora de rua” que gostava de cantar e de conversar com pessoas em Florianópolis, cidade onde resido. Eu também gosto de cantar e conversar, muitos gostam de cantar e conversar. Por que iniciar este texto lembrando Olga Emily? Talvez porque Emily morava na rua, como mencionei inicialmente, o que não configurava empecilho na interação com indivíduos de diversas categorias sociais. Ainda recordo algumas cenas envolvendo Emily: um rapaz do judiciário sentado no chão “traindo” a seriedade de seu terno e gravata com muitas risadas, uma senhora atenta à sua fala articulada, um senhor aparentemente contrariado mas engajado no debate que os dois mantinham, jovens ao seu redor (um deles com a mão no seu ombro), ela dando uma bronca em outra mulher também moradora de rua, um grande músico da cidade a acompanhando no chorinho “Noites Cariocas”, uma jornalista de olhos brilhantes empolgada com sua história de vida (1)... Emily parecia demonstrar interesse pelos mais diversos assuntos, nós conversávamos sobre particularidades de nossas vidas, música e filosofia. Quando sóbria, mantinha o olhar atento – sabida pra falar e escutar. Tive a oportunidade de conviver um pouco com ela e, além de mim, muitas outras pessoas foram surpreendidas com a vontade de partilhar e com o teor da sua conversa, das ideias e pensamentos, preciosidades na rua, na calçada. Na rua, na calçada, onde estão (ou deveriam estar!) as bibliotecas públicas.

 

Seja qual for nossa ideologia política, religiosa ou nosso direcionamento para uma conduta de vida que vá pautar nossas ações, é razoável pensar que as pessoas trabalham, cada uma em sua área de atuação, para avançar no sentido de alcançar maior bem estar para si e para outros (“outros” - numa perspectiva mais ampla ou mais reduzida). Para quem trabalha em bibliotecas públicas esta questão também é colocada. Acredito na biblioteca pública como um instrumento de empoderamento para as pessoas. Um conglomerado de pessoas e obras (que não incluam só a leitura da palavra), ambas, com todo tipo de posicionamento, pensamentos e ideias e que estão ali, à disposição, na rua, no meio do povo. Que outro lugar, por exemplo, pode ser mais propício para que moradores de rua como Emily (ou diferentes dela) possam ter a possibilidade de viver melhor, com qualidade de vida?

 

Um dos pontos que diferenciam as diversas categorias de bibliotecas (públicas, escolares, especializadas, universitárias...) são as pessoas para as quais estes serviços são destinados. O público mais diverso de todas as categorias de bibliotecas é o da biblioteca pública. O dicionário nos informa que diversidade é o nome que se dá a um “coletivo disforme”. Diante dessa particularidade inerente às bibliotecas públicas muitas questões se colocam para a efetivação dos serviços prestados: o relacionamento com estas pessoas, a equalização da convivência desse público no ambiente coletivo, a padronização de regras e tantas outras que envolvem a interação com este coletivo disforme. Esse coletivo pode incluir sujeitos escolares, universitários, especialistas em alguma coisa, criança, jovem, adulto, idoso, trabalhadores, ociosos, moradores de rua...

 

Pode incluir – é uma potencialidade! Entretanto essa condição depende, como lembra Castrillón (2011), de uma capacidade de convocação e de uma orientação que se tem sobre a biblioteca pública. Porque há bibliotecas públicas que direcionam instalações e verbas para um setor restrito da população e oferecem possibilidades limitadas de materiais de leitura para os iniciados no desejo de ler, o que nos faz refletir sobre o adjetivo “pública” e traz insatisfação com relação a sua função e responsabilidade social. (CASTRILLÓN, 2011).

 

A autora colombiana também ressalta que não devemos perder de vista possibilidades que tornariam a biblioteca pública ainda mais necessária e vital para a sociedade, para além de um plano mínimo de trabalho. Possibilidades de bibliotecas públicas como espaços de encontro, de debate de temas a respeito de minorias e maiorias, onde “crianças, jovens e adultos de todas as condições, leitores e não leitores, escolares e não escolares, encontrem respostas a seus problemas e interesses e lhes sejam abertas novas perspectivas”, ou seja, que prioritariamente sejam um mecanismo contra a exclusão social, que promovam debates públicos sobre temas necessários para os cidadãos, incitem a reflexão, a crítica e o questionamento, instrumentos capacitados para apoiar a tomada de consciência e a real formação cívica e cidadã. (CASTRILLÓN, 2011, p. 36).

 

E isso é possível. Mesmo em uma realidade como a brasileira em que é raro o investimento adequado para instituições como bibliotecas públicas e em que a formação de bibliotecários é pautada na técnica, tratando pouco de questões relacionadas às relações humanas e éticas, e em que as discussões relativas às bibliotecas públicas não são frequentes, podemos ler no noticiário, por vezes, manchetes sobre o impacto dos serviços prestados por algumas destas instituições. Provavelmente, porque há gente animando estes serviços. Há relatos de idosos para quem a biblioteca pública é local de convivência e afeto, moradores de rua e pessoas de baixo poder aquisitivo para quem a biblioteca pública oferece acervo que possibilita o ingresso em cargos públicos, crianças carentes da presença dos pais trabalhadores do dia inteiro para quem a biblioteca pública é local de segurança... E tantas outras situações...

 

Saindo em campo para coletar dados para minha pesquisa de doutorado em vias de finalização, vivenciando os espaços e conversando com bibliotecários que gerenciam bibliotecas públicas catarinenses, pude ter acesso a um pouco do contexto precário que envolve a prática destes profissionais no Estado de Santa Catarina. Como o estudo está entrelaçado com a temática da exclusão social, as reflexões elaboradas em meio ao discurso demonstram como a potencialidade de alcance de uma diversidade de público, por vezes, ou não é percebida (já que a biblioteca pública é muito frequentada por escolares, crianças) ou esbarra na dificuldade de ser assumida como comprometimento profissional, tendo como pedra no caminho uma postura passiva, sem o mover da articulação política. As bibliotecas públicas, em sua maioria, estavam com pouca gente.

 

Em outra realidade vivenciada por mim, de bibliotecas abarrotadas de indivíduos, em Madri na Espanha, conversando com funcionários (bibliotecários ou não) que trabalham nas bibliotecas da rede municipal de bibliotecas públicas (31 bibliotecas públicas ao todo), pude acessar outro discurso, outra realidade de políticas públicas para bibliotecas públicas, outro contexto cultural de relação com as bibliotecas. Entretanto, as problemáticas relacionadas ao coletivo disforme permaneciam diante dos profissionais, esse coletivo lembrado como algo pouco discutido no ambiente de formação, algo que se apresenta como “surpresa” e desafio na prática profissional.

 

Irei trazer mais destas experiências posteriormente nos textos que seguirão nesta Coluna “Reflexões Éticas”, mas deixo algumas questões para direcionar os escritos, diante de toda essa “conversa” anterior, principalmente diante da minha crença particular já declarada na potencialidade dos serviços de bibliotecas públicas para melhoria da qualidade de vida das pessoas: nos tempos atuais e futuros, são as bibliotecas públicas ainda necessárias? Por que? Se sim, porque cada vez mais estão ausentes dos currículos e ambientes de formação, interesse e discussão de bibliotecários? Qual relação pode haver entre esse serviço/espaço e o bem estar das pessoas? E entre a possibilidade de diminuição das desigualdades sociais? E entre a possibilidade de construirmos um mundo com mais possibilidades? Qual a parte que nos cabe (nós: bibliotecários, estudantes de Biblioteconomia, docentes da área, gestores públicos) “neste latifúndio”? Gastamos tempo discutindo sobre como podemos “convocar pessoas”, lembrando que são um coletivo disforme, para inclui-las em serviços de biblioteca pública? Estamos comprometidos com isso?

 

Lembro de ter falado com Emily, após uma conversa sobre questões de moral e cultura que traria um livro para ela, sugestão que ela rapidamente recusou: “não traga livro, todo mundo traz livro, aqui chove, molha tudo, não quero ler – quero conversar”. Ah uma biblioteca pública que alcançasse Emily!

 

Iniciar e finalizar o texto lembrando Emily é mais uma forma de destacar que é necessário olhar e direcionar nossos estudos e atenção também para fora da Universidade, dos ambientes acadêmicos e de pesquisa. Olhar para as pessoas, esse coletivo disforme, diverso, motivo pelo qual existem os serviços e profissões... Vamos em frente.

 

Referência

 

CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. São Paulo: Pulo do Gato, 2011.

 

Notas

1 - https://www.youtube.com/watch?v=2HWHIEtHEAc 

http://dc.clicrbs.com.br/sc/estilo-de-vida/noticia/2016/02/morre-emily-moradora-de-rua-de-florianopolis-reconhecida-por-talento-musical-4983521.html


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ANA CLAUDIA PERPÉTUO DE OLIVEIRA

Docente do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui mestrado e doutorado em Ciência da Informação pela UFSC. Possui graduação em Biblioteconomia pela UFSC e em Ed. Artística - Habilitação em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Integra o Grupo de Pesquisa Informação, Tecnologia e Sociedade, da UFSC. Atuou por quase 20 anos em biblioteca universitária, escolar, comunitária, especializada e em políticas públicas para bibliotecas públicas. Tem como interesse de pesquisa assuntos relacionados à ética em unidades de informação, bibliotecas públicas e comunitárias, relações entre biblioteconomia e arte, ação cultural, exclusão/inclusão em unidades de informação, centros e acervos culturais, relações entre escrita, oralidade e leitura. Aposta na arte como forma de reinventar uma atuação profissional que desenvolva empatia e o compromisso com uma sociedade mais igualitária.