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JOÃO DE DEUS OU JOÃO-DE-BARRO

João. João Luís. João Batista. João Carlos, João Gilberto e assim vai. Afinal, João é um dos prenomes judeus mais comuns em todo o mundo desde a Antiguidade, passando, com o tempo, a ser adotado em diferentes países e idiomas, a exemplo do espanhol, italiano e irlandês. Sua popularidade é atribuída a dois personagens do Novo Testamento, ambos reverenciados e reconhecidos. O primeiro, João Batista, profeta filho de Zacarias, é considerado o antecessor de Jesus Cristo; o segundo, São João Evangelista, um dos 12 apóstolos de Cristo e autor do Evangelho Segundo João.

Num dia que se faz longínquo, 24 de junho de 1942, chega ao mundo mais um João. Na pequena Cachoeira de Goiás, nasce João Teixeira de Faria. Não seria, no entanto, um João qualquer. Pouco a pouco, sente-se privilegiado pela luz divina e descobre o poder da cura que carrega consigo. Não tarda a erguer um centro de atendimento, a Casa Dom Inácio Loyola, no meio do cerrado brasileiro, no até então pacato Município de Abadiânia, também no Estado de Goiás, ano 1976. De início, alguns poucos crentes o buscam. Mas, sua fama corre a passos largos. Atrai celebridades de diferentes segmentos do mundo político, artístico, empresarial, etc., tanto do Brasil quanto do exterior. Segue a serviço rumo aos Estados Unidos da América e a outras nações, como Alemanha, Áustria, Austrália, Nova Zelândia e Suíça. O jovem pobre e humilde torna-se referência na mediunidade mundial! 

Sua força espiritual exerce forte efeito sobre a vida dos que o buscam. São crianças, adolescentes, adultos e velhos. São homens e mulheres. São pobres, remediados e milionários. São pessoas crédulas que entregam nas mãos daquele homem sofrimentos, mágoas, pesares e aflições. Todos têm algo em comum: são sempre indivíduos em desespero por dores d’alma e/ou do corpo. Recorrendo à origem etimológica primitiva da palavra João, advinda do hebraico e que significa nada menos do que “Deus é propício”; “Graça divina”; “Deus é clemente”; “Deus é misericórdia”, etc., não tarda muito para que João Teixeira de Faria se auto-intitule João Curador. Mas é pouco: João de Deus é uma expressão mais impactante. Assim, ao tempo em que brinca de ser Deus, de forma paradoxalmente diabólica, consegue fazer muitos acreditarem que está a semear paz, generosidade, complacência, fé, perdão e misericórdia. 

A cobiça descabida toma conta de sua alma. Ao tempo em que diz nada cobrar por sua benevolência e clemência, instala na Casa Loyola verdadeiro centro comercial, onde água “benta” e medicamentos “milagrosos” são cobrados a preço de ouro, mediante o auxílio de um cortejo de séquitos que o cercam e o veneram. Como Abadiânia é dividida pela rodovia federal BR-060, de um lado, está o mundo dos espiritualizados; do outro, o mundo dos pagãos. Porém, é no lado santo que se expande, com força total, o comércio a serviço dos quase 300 mil peregrinos transbordantes de esperança, que chegam em caravanas ou às escondidas, a cada ano. Apesar da separação da cidade, por todos os recantos, a certeza de que o município possui um só dono: homem inclemente, que fere, pune e agride os não adeptos à expansão de seu império.

De fato, denúncias espocam desde as décadas de 70 e 80, século XX. Incluem tráfico de drogas; contrabando de minérios; sessões de tortura; ameaças veladas ou explícitas. Agora, o escândalo traz à tona um patrimônio incalculável; uma fortuna suspeita para lá de protegida em suas propriedades; um surpreendente arsenal... Se a ambição de João de Deus já não passa desapercebida, sua luxúria demoníaca traz revelações de assédio sexual, abuso e estupro de meninas e mulheres vulneráveis, dentre as quais está uma das próprias filhas, Dalva, violentada a partir de 10 anos, e, hoje, aos 49 anos, ainda escrava dos momentos de terror vividos. 

O incrível é que tudo foi devidamente arquivado ou escondido pelas autoridades locais, incluindo eventuais prisões. A razão: suborno, extorsão. Sei lá o quê. O médium misericordioso confunde-se com o charlatão monstruoso, até que, em 16 de dezembro de 2018, depois de tantos anos de impunidade, João de Deus transforma-se, publicamente, em João-de-Barro. Com imenso respeito à linda ave, símbolo da vizinha Argentina e cuja característica é o belo ninho de barro em forma de forno, referimo-nos à fragilidade da argila e de sua aparência, às vezes, enganosa, o que justifica o ditado popular: “devagar com o andor porque o santo é de barro” relacionado ao cuidado que se deve ter diante de atitudes mais sérias para evitar consequências futuras, ou seja, o médium João de Deus nem se iguala nem se aproxima da beleza de nosso passarinho, tido como trabalhador e inteligente. 

Acusações de todo tipo não param a cada dia. Os dados policiais falam em 500 mulheres. Ele está trancafiado num complexo prisional; elas, no universo de suas áridas lembranças, onde procuram paz, serenidade e coragem para um recomeço. Se João-de-Barro errou como homem, deve ser punido conforme a lei dos homens, que não exclui o amplo direito de defesa. Longe do linchamento inclemente, nós, cidadãos brasileiros, precisamos lutar para resgatar a crença na Justiça deste país, que se mostra tão cabisbaixa e envergonhada... 

Fazer o bem a anônimos ou famosos, graças ao dom que lhe foi concedido pelo bom Deus, não dá a João Teixeira de Faria o direito de fazer tanto mal, aproveitando-se da vulnerabilidade dos que padecem. Segundo sábias palavras do médium Christian Bittencourt, quando invocamos o nome de Deus “em nossas orações, estamos humildemente pedindo por sua intervenção e não assinando aquela demanda em seu nome. Não há um único ser humano [...] com procuração divina [...] embaixo do braço para falar e agir em nome da autoridade máxima de Deus.” Se não assimilarmos tal verdade, prosseguiremos vivenciando tremenda e dolorosa desilusão com religiosos de diferentes credos, que se travestem em ovelhas para explorarem a fragilidade humana.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”