ALÉM DAS BIBLIOTECAS


CINEMA E AUTISMO: UMA MESCLA DE AMOR E DE POESIA

Conheci G. há muitos e muitos anos. Eu, jovem. Ela, menina com Transtorno do Espectro Autista, distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por desenvolvimento atípico, manifestações comportamentais, déficits na comunicação e no processo interativo, com ações repetitivas, e, portanto, repertório restrito de interesses. Era meu primeiro contato com o TEA! Paixão à primeira vista por aquela criança fora dos “padrões”! A mãe, sem recursos para enfrentar quaisquer formas de tratamentos, aliás, à época, bastante restritos, seguia seu dia a dia com graves dificuldades, sem contar as injúrias que lhe acusavam de relapsa e mil outras coisas mais, que omitimos, aqui, para honrar sua memória.

Quem apontava o dedo em riste, decerto não possuía ideia da dedicação diuturna à filha, que não banhava, não comia sozinha, não falava (só balbuciava), não se vestia, enfim, dependia da mãe sola para absolutamente tudo. Abracei a causa. Ajudei pouco nas minhas próprias limitações. Sempre que possível, levava G. para passear, banhar de piscina e outras coisinhas mais. A mãe partiu. G. ficou com quase 40 anos. O pai-ausente não teve outra opção: assumir a filha-mulher e levar para a cidade onde mora. Minha experiência foi tão profunda que costumava sonhar com frequência com aquela criança que se tornara adulta.

No outro lado da moeda, o cinema sempre foi uma de minhas paixões. A linguagem cinematográfica sempre me encantou por sua multiplicidade de unidades – som, imagem, roteiro, cenário, ambiente, etc. São unidades significativas mínimas sem interpretação estável e universal. Estão sempre à deriva a depender da formação do cineasta e das perspectivas dos receptores. Rio abaixo, rio acima; gerações anteriores, gerações atuais repetem o refrão de que o cinema é a sétima arte da humanidade, amálgama de todas as outras. A priori, quatro pilares fundamentam a cultura humana: arte, mística, filosofia e ciência. Em termos de evolução, ainda na Grécia Antiga, surge a compartimentação entre as artes superiores, apreciadas com olhos e ouvidos, e as artes menores relacionadas com o tato. Essas seis – arquitetura, escultura, pintura, música, literatura e dança – formam o conjunto das Belas Artes, que incorpora, tão somente no século 20, o cinema como a sétima arte, graças à luta ferrenha do crítico de cinema, o italiano Ricciotto Canudo, contra a ideia preconceituosa de que o cinema era mero espetáculo de massa.

Como sistema estético e expressivo, pautado em pluralidade de significações, o cinema impõe-se como arte legítima e singular. É quando os filmes extrapolam os muros das salas de cinema para alcançar o mercado, sobretudo, graças ao uso de uma série de recursos, como vídeo em aeronaves; ônibus; sistemas de tevê de hotéis; motéis e similares; programas de tevê pay-per-view; DVD; tevê, tanto em estações de satélite quanto a cabo; em exibições contínuas em variadas e numerosas plataformas de streamings, a exemplo do Netflix e do Amazon Prime.

Eis, pois, dois universos que sempre me comoveram: o TEA representado pelo convívio amoroso com a minha G., que continua no meu imaginário, e o cinema entrelaçado com a literatura, outra das minhas amantes. Foi assim que delirei ao saber que está se tornando realidade a ideia luminosa da “Sessão Azul”. De que trata? O que é? Em termos sucintos, consiste em ideia luminosa de duas psicólogas Carolina Salviano de Figueiredo e Bruna Manta, com apoio do Deputado Federal pernambucano Augusto Coutinho, Partido Republicanos. Este apresentou o Projeto de Lei n. 133, ano 2019, aprovado em novembro de 2022 (vejam a morosidade) pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados.

Segundo a proposição, os cinemas brasileiros ficam obrigados a oferecer 2% das sessões em formato adaptado às pessoas no espectro, identificando as salas com o símbolo mundial da conscientização do espectro autista. O logotipo da neurodiversidade, idealizado pelos próprios autistas, representa o infinito nas cores do arco-íris, com vistas a exaltar a esperança e a diversidade de expressão na esfera do TEA.

 
 

Descrição da imagem: Fundo branco, laço estampado com quebr-cabeça colorido

Diante do exposto, como deixar de fora um segmento populacional que integra a realidade contemporânea, isto é, os indivíduos de diferentes faixas etária com TEA? Afinal, eles demandam um ambiente mais propício à sua concentração, haja vista que os cinemas envolvem fluxo significativo de pessoas e estímulos sensoriais em demasia, o que demanda ajuste de luminosidade e som. Assim, durante as sessões, permanecem meia-luz, refrigeração controlada e som mais baixo. Não são passados trailers comerciais e todos podem entrar e sair quando quiser, dançar, gritar ou cantar à vontade, elementos inibidores até então para quem sonha em levar seus entes queridos com TEA a teatros, restaurantes, festas, cinemas, aquários, etc.

Em evidência irrefutável de que a agilidade dos processos em tramitação no Poder Legislativo prioriza interesses particulares dos parlamentares e não da população, a operacionalização da “Sessão Azul” prossegue para análise das Comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência; e de Constituição e Justiça da Câmara. Mesmo assim, as redes de cinema administradas por proprietários mais sensíveis à causa já podem iniciar a adoção da medida. Isto porque, profissionais de apoio e famílias esperam que os filmes lhes auxiliem como importante extensão do trabalho terapêutico, reduzindo barreiras de adaptação à vida rotineira. É o cinema como instrumento fecundo, criativo e dinâmico capaz de fortalecer o foco social e dar maior visibilidade a essas crianças ou jovens ou adultos.

Decerto, no dia a dia, é vital que os responsáveis pela “Sessão Azul” cuidem dos  detalhes, a partir da seleção dos filmes e do treinamento de voluntários e da presença de profissionais especializados, como psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos, nutricionistas e médicos, que possam acompanhar o andamento das sessões. Quanto mais ambientes assim existirem, mais oportunidades de independência surgirão para que pessoas que vivenciam o espectro ocupem espaços que lhes são garantidos como segmento da sociedade. São intervenções que ajudam no desenvolvimento de habilidades sociais de muitas G. perdidas mundo afora, lhes auxiliando no aprendizado e na busca de felicidade e alegria.

E, de fato, a partir da primeira “Sessão Azul”, dezembro de 2015, a expansão tem sido incrível: já ocorre em 29 cidades e em quase todas as regiões do país, salvo o Nordeste, onde ainda se dá de forma incipiente. E mais, o Projeto prevê meia-entrada para todos e quando há patrocínio, a custo zero. Para além das salas de cinema, a “Sessão Azul” já está nas redes sociais, com forte adesão no Facebook e no Instagram. De preferência, filmes infantis e/ou destinados ao público jovem-adulto.

Afinal, além da Lei Brasileira da Inclusão de Pessoa com Deficiência n. 13.146, 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), há legislação que contempla o autismo, em especial, a exemplo da Lei n. 12.764 ou Lei Berenice Piana, 27 de dezembro de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Se as leis são essenciais, são o cotidiano e a forma como visualizamos as pessoas atípicas que concretizam o prescrito no papel e dignificam o cotidiano de todos, na salinha do cinema, com pipoca e refri... Por fim, é evidente que as G. soltas ao vento agradecem a “dobradinha”: cinema e autismo: uma mescla de amor e de poesia!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”