ALÉM DAS BIBLIOTECAS


CONFLITOS RELIGIOSOS E CONTRADIÇÕES

Nada mais difícil do que a concepção de religiosidade / religião. Nada mais difícil de mensuração do que sentimentos e outras “coisinhas” mais, como amizade, amor, bem-querer, bom caráter, fidelidade, princípios, etc. É o resultado de abstrações quando buscamos separar mentalmente um ou mais elementos de algo complexo em sua totalidade, os quais, na realidade, só subsistem fora de tal totalidade.

Cada dia mais, face à expansão das redes sociais em suas diferentes vertentes, correntes de oração percorrem o espaço virtual ou frases que exaltam a força da fé e da oração vão para lá e para cá. São úteis, sim. Servem, no mínimo, para lembrar que os deuses existem e aí estão presentificados ou brincando de se esconder. As religiões, em sua diversidade, ocupam lugar de destaque para que muitos sigam seu caminho. Nada há de negativo nesse passeio ao longo de veredas dos que precisam se ancorar no amor divino para seguir: todos buscam algo em que se apoiar, uma vez que o sentimento de religiosidade parece algo profundamente arraigado ao ser humano. 

No entanto, ao mesmo tempo em que a religiosidade instiga o ser humano a reflexionar sobre os aspectos das atividades ditas sagradas, observando como o homem refere-se às “coisas” que lhe parecem santas ou veneráveis, é preciso respeitar as tendências do outro. Não importa se a Santa Missa da Igreja Católica com seus numerosos rituais; os cultos da Igreja Evangélica; a beleza infinda do Espiritismo, doutrina religiosa de natureza filosófica, cuja crença central gira em torno da evolução espiritual do ser humano via reencarnações; e os múltiplos ritos das religiões afrodescendentes. Neste caso, cerimônias e deuses recebem denominações distintas a depender do local e do modelo de suas matrizes. Por exemplo, em termos de Brasil, no Nordeste há o tambor-de-mina maranhense; o xangô pernambucano; o candomblé baiano; a umbanda e, novamente, o candomblé (comum no Sudeste); e no Sul, o batuque gaúcho. Todas essas variações são válidas e merecem deferência.

O continente indiano é exemplar para se observar a idiossincrasia religiosa. É impressionante a força das religiões entre o povo indiano. Força ou fraqueza. Isto porque nutrimos a sensação (talvez equivocada) de que, na Índia, a religião é muito mais ópio do que devoção. Cada rio ou lago, cada montanha ou colina, cada gruta ou descampado parece abrigar alguma fé ou lenda. Há conformação e passividade em torno dos desígnios dos deuses para justificar a pobreza extrema que assola a maior parte do país. Isto justifica a fala atribuída a um político indiano, com o qual concordamos quando diz: “[...] a Índia precisa mais de privadas do que de templos ou mesquitas". 

O hinduísmo predomina entre 80% da população. Resultante da evolução ao longo dos séculos, do vedismo e do bramanismo, hoje se impõe como ampla manifestação cultural, expressa por rica literatura poética e religiosa. Os templos variados refletem a orientação de milhões de deuses. Os hinduístas ultrapassam em quase seis vezes os muçulmanos. Cremam, com naturalidade descomunal, seus mortos. Inaceitável, porém, é que, ainda hoje, os radicais hindus mobilizem-se para impor o hinduísmo como religião nacional, num país reconhecidamente devocional. Os direitos das comunidades cristãs são violados a céu aberto, uma vez que os hindus percebem os irmãos cristãos como alienados à nação. Daí, lutam para “limpar” a Índia do islamismo e do cristianismo, recorrendo à violência e ao desamor.

Na Índia, radicais hindus querem limpar todas as outras religiões do país...

 

 

Fonte: https://portasabertas.org.br/noticias/cristaos-perseguidos/principais-conflitos-religiosos-no-mundo

Há, ainda, budistas, jainistas, parses, sikhs, judeus, e católicos que se misturam. Em relação ao budismo, as denominadas estupas (stupa = monte, em sânscrito) e os mosteiros espalham-se por muitos lugarejos, em infindas variações, mas sempre em veneração ao Dalai-Lama, chefe supremo do lamaísmo, religião dominante do Tibete, originada do budismo maaiana, associado aos cultos mágicos locais e ao tantrismo. Os adeptos do jainismo, fundado por Mahavira no século VI a.C., com fascinantes templos de pedras, creem no carma e no ainsa (rejeição da violência e respeito à vida de qualquer ser) e se opõem ao sistema de castas do bramanismo, defendendo valores morais severos. Os mais ortodoxos perdem-se em regiões distantes, nus e desnudos, para maior aproximação com a mãe natureza.

Os parses, antigos persas zoroastristas, por seu turno, permanecem em torres de silêncio ou em templos de fogo, cultuando hábito singular: devolvem os mortos à natureza para a delícia dos abutres que rondam as colinas. Os adeptos do sikhismo, religião monoteísta (século 16), repelem o sistema de castas e a idolatria. Há, ainda, sinagogas para os judeus; catedrais para os católicos e as igrejas ortodoxas dos armênios, quase sempre refugiados da perseguição atroz do Império Otomano.

É possível que alguém mencione outro credo! Afinal, há muitos outros! Nosso intuito não é exaurir a temática, mas tão somente (re)afirmar a oração; a adoração às divindades em qualquer de suas formas; os ritos; os rituais e cultos, inclusive às forças da natureza e aos animais; a veneração e a reverência em qualquer religião como essencial à prática religiosa como AÇÃO. Estamos nos referindo tanto às religiões monoteístas quanto às religiões politeístas ortodoxas e heterodoxas. Neste último caso, é quando os adeptos das religiões se opõem aos princípios fundamentais tradicionalmente estabelecidos pelo clero ou “chefes” e assumem comportamento dissidente sob qualquer ótica. Em qualquer instância, o essencial é a AÇÃO a favor do outro.

Mais do que qualquer cerimônia, o importante é não olvidar a grandeza que há na solidariedade. E quando falamos em solidariedade, estamos nos referindo ao AMOR contínuo e inconteste, e não àqueles momentos de dor advindos de catástrofes naturais ou de tragédias humanas. É o AMOR no dia a dia. É o voluntariado como forma de dedicar algumas horas por semana ou por mês aos desassistidos. Muitas vezes, indígenas e quilombolas; apenados ou pessoas em situação de rua; os que possuem saúde mental comprometida; pessoas com deficiência; população rural; profissionais do sexo; drogaditos; anciões; órfãos, enfim, os desassistidos, quase sempre, precisam mais de uma carícia do que de uma sopa ou, quem sabe, de ambas. Devoção, piedade, zelo: eis um tripé mágico!

Afinal, nada mais insensato do que as chamadas guerras santas, em sua acepção ampla, sem recorrer a detalhes ou às longínquas Cruzadas, série de batalhas travadas pela Igreja Católica, entre 1096 e 1272, com o objetivo explícito de reconquistar a Terra Santa – Jerusalém. As guerras santas são recursos extremos ou extremistas que as grandes religiões, com ênfase para as monoteístas, têm adotado no decorrer da história para proteger possíveis ou imaginárias ameaças aos dogmas que defendem e a seus lugares sagrados. Na origem das primeiras guerras santas estão os supracitados islamismo e cristianismo. Na atualidade, há povos e povos que se matam por amor aos deuses! Barbaridade! Sob esta ótica, há quem afirme que os credos têm ocasionado mais violência do que paz e/ou mais ódio do que o amor.

Os conflitos religiosos com suas visíveis contradições atravessam continentes, períodos históricos e intervêm na política, na economia e na tessitura social. Na sociedade contemporânea ou na dita sociedade tecnológica, leia-se, “avançada”, além das imposições impostas pelo hinduísmo ortodoxo, há lutas religiosas com gosto amargo de sangue e barbárie, como no Afeganistão, país da Ásia Central situado na região bélica do Oriente Médio e predominantemente islâmico. No ano de 1996, o Talibã assumiu o controle de Cabul e impôs a sharia / conjunto de leis islâmicas radical até 2001, quando ocorreu sua expulsão do Poder graças à intervenção dos Estados Unidos da América. Não tardou muito. Em 2021, o Talibã retomou o Poder após o Governo recém-eleito fugir do país. A bem da verdade, o povo afegão, ênfase para os cristãos, não sabe o que é paz há mais de 40 anos, enfrentando um cotidiano de muitos embates e sofrimentos, professando sua fé a sete chaves.

No caso da Nigéria e de outros territórios do Oeste Africano, desde 2002, são eles alvo de ataques sem tréguas do grupo extremista islâmico Boko Haram. Dividida em Norte muçulmano e Centro-sul cristão, a Nigéria vivencia um dos mais terríveis combates da atualidade. Ademais, outro conflito de natureza religiosa no Cinturão Médio do país envolve, de um lado, agricultores cristãos; do outro, extremistas fulas, ou seja, muçulmanos radicais, que se estendem na savana sudanesa, do Senegal até o Norte dos Camarões. Dados indicam que essa gente já causou mais mortes de cristãos do que a odiosa facção Boko Haram.

O autoproclamado Estado Islâmico tanto no Iraque quanto na vizinha Síria representou e representa ataque sórdido contra as minorias cristãs das duas nações. No caso do Iraque, desde a derrota territorial do Estado Islâmico, a principal fonte de pressão aos cristãos são as milícias xiitas apoiadas pelo Irã. E mais, o Estado Islâmico também intensificou seus ataques à sociedade civil, à infraestrutura vital para a sobrevivência da população e às forças de segurança do país, entre 2020 e 2021, levando cidadãos a migrar para outros rincões. Na Síria, por sua vez, as comunidades cristãs enfrentam há mais de 10 anos desafios violentos, em especial, contra quem opta por deixar o islã.

Para além da Síria: os 12 maiores conflitos mundiais em 2018

 

Fonte: http://diplomaciacivil.org.br/para-alem-da-siria-os-12-maiores-conflitos-mundiais-em-2018

Nesse panorama devastador, ao contrário dos séculos predecessores, os conflitos religiosos estão paulatinamente atrelados a ideologias temporais e “frouxas”. Exemplificando: sistemas / regimes políticos, como nacionalismo, socialismo, comunismo e fascismo veem as religiões como ameaça à consolidação de novas sociedades. Com o colapso das ideologias e a recuperação de diferentes religiões em diferentes recantos do mundo, observamos incremento da violência e de guerras por motivação religiosa. Em vez de os credos definharem, foram as ideologias que se esfacelaram, não importa se ao preço elevado de milhões de vidas humanas. A religião continua viva e vívida, além de inspirar movimentos de resistência contra as tais ideologias frágeis e efêmeras.

Em resumo, da Igreja Católica polonesa ao budismo cambojano, dos muçulmanos na Ásia Central e luteranos na Alemanha Oriental, a religião segue avante com o fim de regimes coercivos. Em muitas nações, a religião, como no Brasil, persiste no cerne de questões amplas com o intuito de prosseguir e fortalecer seu papel na construção e na conservação das nações, dos povos e das culturas. Por fim, incomoda-nos muito conviver com indivíduos – homens e mulheres – que falam o tempo todo sobre o clero de sua religião, os lugares onde cada crente senta durante os cultos, as vestimentas dos colegas, etc. No viver cotidiano, porém, esquecem de destinar um doce sorriso ao colega que está a seu lado, clamando por um gesto caloroso ou um olhar de cumplicidade, na acepção de aceitação e compreensão. Eis, QUIÇÁ, uma “fórmula milagrosa” de combate aos conflitos religiosos e às suas contradições: Não apenas ver, mas olhar o outro, o que demanda atenção especial e um momento dedicado àquela ação amorosa, com compromisso, responsabilidade e contemplação!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”