INFORMAÇÃO E SAÚDE


PESQUISAS SOBRE INFORMAÇÃO EM SAÚDE DIANTE DE VIESES EDITORIAIS

Introdução

Neste texto, serão apresentados alguns pensamentos sobre a produção e publicação de pesquisa sobre informação em saúde no Brasil. É verdade que existe o risco desses pensamentos gerarem críticas desgovernadas e ironias múltiplas, mas também há o risco de encontrar pessoas que se identificam, foram ou são vítimas das problemáticas aqui relatadas e que se sentirão confortáveis em participar do debate.

O objetivo principal deste texto é delinear algumas características do desenvolvimento de pesquisas que envolvam o campo da Saúde e pensar em critérios que alguns editores e curadores do campo da Ciência da Informação estão assumindo como verdadeiros para decidir se um trabalho sobre informação em saúde deve ou não seguir um tramite normal e digno de avaliação por pares. Tem-se por objetivo secundário a proposição de uma desnaturalização desses critérios e a pretensão de colocá-los na categoria de “vieses editoriais”.

Essa discussão é particularmente relevante pois o avanço científico depende da qualidade do processo de revisão por pares, e quando um processo de revisão é afetado por outros fatores que não estão ligados ao mérito acadêmico, impõem-se dificuldades que afetam a ciência, a sociedade e indivíduos (RUBIN; RUBIN; SEGAL, 2023).

Campos científicos e as características de suas pesquisas

Quando observamos a massa de estudos produzidos no escopo da Ciência da Informação vemos um grande número de trabalhos com foco conceitual, um grande número de estudos de base documental e de revisão de literatura, seja sistemática, seja de conveniência. Muitos estudos publicados, em periódicos e eventos da Ciência da Informação, envolvem um caráter extremamente abstrato e linguagem rebuscada que demandam altas capacidades linguísticas e cognitivas para compreensão. Outros estudos propõem modelos, testam tecnologias para processamento de textos, também há a categoria de estudos que dizem o que outros campos científicos devem ou não fazer no que se refere à informação. Agora, todos esses estudos se sustentam no mundo real e empírico? São passíveis de comprovação?

Esse texto não se propõe a responder essas questões. Mas cito um exemplo. Certa vez, revisando um manuscrito percebi que o estudo tinha analisado os prontuários de dois pacientes e a partir daí seus autores tiravam conclusões genéricas para todos os prontuários de pacientes. O problema é que qualquer unidade básica de saúde tem centenas e centenas de pacientes ou até milhares ou milhões de pacientes assistidos, com seus respectivos prontuários. Então, como analisar apenas dois prontuários e desse ínfimo conjunto de dados deduzir e concluir seja lá o que for? Este é um caso que expressa todo o desconhecimento sobre o campo da Saúde, sobre o que vem a ser uma pesquisa de caráter empírico e de como muitas teorias propostas no campo da Ciência da Informação são desconexas do mundo real. Mas o lado bom dessa história é que os autores desse trabalho, pelo menos, tentaram fazer algo diferente e não ficaram ilhados em suas próprias elucubrações sobre o que é um prontuário ou deixa de ser. Tentaram dar um passo a mais – fato louvável.

Para citar um exemplo um pouco mais crítico ainda na temática prontuário, certa vez, uns alunos me chamaram atenção de que uns autores estavam me criticando porque escrevi que o “prontuário do paciente é uma coleção de informações”. Os críticos do meu pensamento nem sequer se deram ao trabalho de ler todo o parágrafo explicativo que escrevi referente a uma tradução da Norma ISO (INTERNATIONAL, 2005) e, portanto, de um documento internacional e de referência para diversos países. Alegavam, os falsos críticos, de que eu não sabia o que é coleção e que coleção é um termo biblioteconômico e não arquivístico etc. Uma descontextualização da minha fala e de quem não leu o que eu escrevi. Isso me custou um ano de brigas com o editor do periódico, que alegou que não poderia retirar o artigo do ar porque a publicação de artigo foi feita mediante um convênio com evento do campo da Arquivologia e que todos os trabalhos aceitos no evento foram publicados sem revisão do periódico porque tinham sido avaliados pela comissão do evento. Desse impasse editorial, derivou um artigo explicativo sobre a Norma ISO intitulado “O termo prontuário do paciente no domínio da saúde” (GALVAO; RICARTE, 2021).

Cito os exemplos apenas para dizer que a Ciência da Informação produzida no Brasil não tem uma tradição expressiva na produção de estudos de caráter empírico e, infelizmente, também produz alguns estudos de análise documental falhos ou mal resolvidos quando o assunto é saúde. Entre os erros mais grotescos, observam-se trabalhos que acham que o médico é único ator da saúde, que o hospital é a única tipologia de unidade de saúde e que o prontuário é do médico e não do paciente. Ou seja, há muita pesquisa sobre informação em saúde com distorções e que não considera minimamente a Constituição e leis vigentes relacionadas ao Sistema de Saúde.

No campo da Saúde, para evitar erros de diferentes naturezas, existe um acordo ético de que para se fazer um estudo, há a necessidade do envolvimento de especialistas na temática a ser estudada porque muitas pesquisas desse campo envolvem e afetam a vida humana. Tudo precisa ser comprovado se funciona ou não no mundo real. Os conceitos, as teorias, as metodologias, tudo que é proposto precisa ser minuciosamente testado e reproduzido até se chegar à conclusão de que realmente funciona. Também existe uma classificação da qualidade de estudos, onde a opinião de um autor isolado, seja qual for sua formação, seja qual for a instituição ou o país onde trabalha, tem praticamente zero nível de evidência científica e uma revisão sistemática de estudos randomizados controlados tem maior nível de evidência (SACKETT, 1996), sendo requerido o número mínimo de três autores para esse tipo de estudo, mas, geralmente, envolve uma equipe maior de especialistas.

Logo, a pesquisa em saúde demanda uma equipe composta por vários pesquisadores e isto não é porque o pessoal é preguiçoso ou ganancioso para publicar muito, mas porque grande parte das pesquisas em saúde são empíricas e envolvem testes de conceitos em seres humanos. Por exemplo, se a pesquisa envolve informação nutricional é recomendado que um nutricionista seja parte da equipe. Se a pesquisa é sobre informações em saúde para paciente com câncer, será necessário contatar alguma equipe especializada em pacientes com câncer para dar suporte ao estudo. Será preciso autorizações de instituições onde os pacientes serão recrutados. Se a pesquisa envolver métodos quantitativos e qualitativos, será preciso especialistas nestes métodos, como um estatístico, um sociólogo ou antropólogo. Isso tudo porque existe uma premissa importante no campo da Saúde, qual seja, nenhuma pessoa deve ser envolvida em um estudo em vão. Em outras palavras, a pesquisa no campo da Saúde tem que trazer algum tipo de benefício, seja para os participantes da pesquisa, seja para o campo científico, seja para a sociedade, não pode ser aleatória. Fazer pesquisas que não sejam em vão demandam o envolvimento de muitos especialistas e atores sociais. Logo, é pouco provável fazer uma pesquisa sozinho em saúde, a menos que seja uma pesquisa de cunho meramente teórico e de opinião, sem validação de conceito, e, que terá baixo nível de evidência científica.

Vieses editoriais

Como visto acima pesquisas no campo da Saúde possuem especificidades por lidar com a vida humana. Qual é o problema de no campo da Saúde você ter que provar se o que você está propondo tem validade no mundo real e, para tanto, precisar de uma equipe mais especializada de pesquisa? Em tese não há problemas se os trabalhos científicos forem avaliados por pares e por mérito acadêmico.

Mas, editores de revistas brasileiras, por exemplo, no campo da Educação firmaram um acordo tácito para que cada artigo tenha, no máximo três ou quatro autores. E por que uma pesquisa só pode ter no máximo X autores? Podemos imaginar que talvez uma pesquisa em saúde seja como qualquer trabalho do ensino fundamental ou ensino médio onde um aluno faz o trabalho e os demais levam o crédito, não é mesmo? Mas, os editores assumem que com, no máximo, três ou quatro autores, os periódicos da Educação terão uma qualidade mais elevada ou um impacto maior, bem como haverá uma maior honestidade no processo autoral. Em decorrência desse viés editorial, se quisermos publicar um artigo sobre a educação médica em um periódico da Educação, o artigo não pode ter mais que três autores. A título de ilustração, tem-se os seguintes exemplos:

“Podem ser submetidos artigos de pesquisadores/as doutores/as, mestres e doutorandos/as, além de mestrandos/as, desde que produzidos em coautoria com doutores/as. O número máximo de autores/as por artigo é de três” (REFLEXÃO E AÇÃO, 2023).

“Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do estudo, do desenvolvimento, análise e interpretação dos dados e da redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. (...) Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar a submissão se assim julgar pertinente” (EDUCAÇÃO E PESQUISA, 2023).

Quais as consequências desses vieses editoriais? Durante a pandemia, por exemplo, fizemos um estudo nacional envolvendo 1172 graduandos, pós-graduandos e professores do campo da saúde para saber como estava sendo o ensino remoto emergencial. Nosso artigo, resultado dessa pesquisa, não foi aceito para análise e nem encaminhado para avaliação por pares por um periódico do campo da Educação porque tinha oito pesquisadores (especialistas em medicina, enfermagem, tecnologia, educação à distância etc.). Um editor brasileiro de renomada universidade disse que publicaria o artigo se o número de autores fosse restringido a cinco autores. E outro editor disse que publicaria o artigo apenas se fosse retirado como autor o nome de um aluno de graduação que atuou como bolsista do estudo e participou de todas as fases da pesquisa. Nosso grupo de pesquisa fez cartas para ambos editores e explicou que não fazia sentido a restrição de publicação pelo número de autores, visto que se tratava de um estudo em escala nacional, em um país gigante como o Brasil. Dada as dificuldades impostas pelos periódicos e editores do campo da Educação, publicamos o artigo dessa pesquisa em periódico do campo da Saúde (GALVAO et al., 2021).

De igual modo, em julho de 2023, em um evento de pesquisa em Ciência da Informação tivemos dois trabalhos arquivados por motivos fúteis. Um trabalho sobre o ensino de terminologias em saúde para a equipe multiprofissional de saúde no sistema de saúde brasileiro foi arquivado porque, apesar de ter quatro autores doutores com formação especializada em Tecnologia, Enfermagem, Ciência da informação e Comunicação, continha a presença de um autor com formação em nível de especialização. A argumentação dos curadores do evento era de que uma pesquisa não pode ter autores apenas com o nível de especialização. Todavia, esse autor, funcionário do Ministério da Saúde, foi de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa, também realizada em escala nacional, empírica e financiada pelo referido Ministério. Neste caso, o trabalho foi arquivado pelos editores e foi impedido de receber uma avaliação por mérito acadêmico e científico pelos pares. Uma atitude anticientífica, arbitrária, não democrática, enviesada e prejudicial para a ciência e para a sociedade. Vale ressaltar que poucos estudos no mundo versam sobre a temática do texto arquivado, se tratando, portanto, de uma pesquisa original no cenário brasileiro e internacional. Neste mesmo ano e evento, tivemos um segundo trabalho arquivado que versava sobre o autismo e era um trabalho com autores autistas, sendo dois doutores e um mestrando. Os curadores do evento arquivaram o trabalho por alegarem que não acharam o arquivo do trabalho na plataforma do evento. Nosso grupo de pesquisa explicou que recebeu a confirmação de submissão do evento por email e que a plataforma do evento não apontou nenhum tipo de erro durante a submissão. Todavia, o trabalho foi arquivado arbitrariamente, sem nenhuma chance de defesa dos autores. Entendemos que este segundo caso é gravíssimo, porque era um trabalho original e inédito que falava da inclusão de autistas na sociedade. No entanto, o trabalho não foi sequer avaliado pelos pares e foi excluído do evento porque os editores do evento não assumiram em nenhum momento a hipótese de que a plataforma do evento pode ter falhado, delegando toda a responsabilidade de sumiço do arquivo da plataforma para os autores. E quem são esses curadores que estão acima do bem e do mal? No nosso entendimento, são jovens pesquisadores que não têm a menor noção do que seja uma pesquisa em informação em saúde, até porque não possuem formação e experiência nesse campo. Logo, dois trabalhos sobre informação em saúde foram arquivados e não tiveram avaliação por pares porque pesquisadores que não sabem a importância desses trabalhos para o cenário brasileiro consideram que os trabalhos não seguiram as “regras do evento científico” – por sinal confusas e medievalescas.

Conclusão

Hosseini; Lewis; Zwart (2022) esclarecem que quando se pretende fazer estudos mais robustos, que envolvem mais participantes e que buscam resolver problemas complexos, faz-se necessária uma equipe maior e, geralmente, com conhecimentos de diferentes naturezas. Negar esta realidade é negar que vivemos em um mundo científico colaborativo e interligado, colocando-nos em um passado remoto onde apenas um cientista fazia todas as etapas da pesquisa. Pelo exposto, a conclusão que se impõe ao presente trabalho é que vieses editoriais são aqueles que não priorizam o mérito acadêmico, não possuem um embasamento científico, não oportunizam a avaliação por pares, não garantem o diálogo científico e desconsideram a evolução dos métodos científicos gerando danos para a ciência, para a sociedade e demais envolvidos, em prol da manutenção de poder de um grupo, geralmente, com uma competência científica questionável.

Referências

EDUCAÇÃO E PESQUISA. Instruções aos colaboradores. São Paulo: USP, 2023. Disponível em: https://www.educacaoepesquisa.fe.usp.br/category/submissao/ Acesso em: 25 jul. 2023.

GALVAO, M.C.B.; RICARTE, I. L. M. O termo prontuário do paciente no domínio da saúde. RACIn - Revista Analisando em Ciência da Informação, v. 9, n. 2, p. 1-18, 2021. Disponível em: http://arquivologiauepb.com.br/racin/edicoes/v9_n2/racin_v9_n2_artigo01.pdf. Acesso em: 25 jul. 2023.

GALVÃO, M. C. B.; RICARTE, I. L. M.; FERREIRA, J. B. B.; DARSIE, C. .; FORSTER, A. C.; CARNEIRO, M.; SAMPAIO, S. dos S.; BARBOSA, L. S. Ensino superior no campo da saúde e o uso de tecnologia durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Asklepion: Informação em Saúde, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 64–84, 2021. DOI: 10.21728/asklepion.2021v1n1.p64-84. Disponível em: https://asklepionrevista.info/asklepion/article/view/10. Acesso em: 25 jul. 2023.

Hosseini, M., Lewis, J., Zwart, H.et al. An ethical exploration of Iincreased average number of authors per publication. Science and Engineering Ethics, v. 28, n.25, p.1-25. 2022. https://doi.org/10.1007/s11948-021-00352-3 Acesso em: 25 jul. 2023.

INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. ISO/TR 20514: 2005: Health informatics: electronic health record; definition, scope and context. Genebra: ISO, 2005.

REFLEXÃO E AÇÃO. Submissões. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2023. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/about/submissions Acesso em: 25 jul. 2023.

Rubin, A., Rubin, E., Segal, D. Editor home bias? Research Policy, v. 52, n. 6, p. 104766, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.respol.2023.104766. Acesso em: 25 jul. 2023.

SACKETT, D. Evidence-based medicine: what it is and what it isn't. BMJ, n. 312, p. 71-72, 1996.

 

Como citar este texto

GALVAO, M.C.B. Pesquisas sobre informação em saúde diante de vieses editoriais. 27 de julho de 2023. In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Marília: OFAJ, 2023. Disponível em: http://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1480


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MARIA CRISTIANE BARBOSA GALVÃO

Professora na Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Sua experiência inclui estudos na Université de Montréal (Canadá), atuação na Universidad de Malaga (Espanha) e McGill University (Canadá). Doutora em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Comunicação e bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade de São Paulo.