ALÉM DAS BIBLIOTECAS


A DOCE PAZ DA MORTE

Amanhã, alguém irá estacionar ou reduzir suas atividades para visitar seus mortos. Antes, na Antiguidade, o sepultamento ocorria mediante o uso de criptas, espécie de galerias subterrâneas que faziam a vez de cemitérios, em geral, para autoridades seculares ou espirituais, isto é, para grandes personalidades, confirmando, desde então, que as diferenças econômicas e sociais, ao contrário do que escutamos falar, existem desde sempre e vão além da vida terrena. Exemplos significativos de cripta, também, são a Necrópole do Vaticano, galeria de grutas subterrâneas onde os Papas repousam do luxo vivenciado, ou, ainda, o Panteão dos Reis da Espanha. Neste caso, as criptas reais conservam os restos mortais de rainhas e reis espanhóis das dinastias Habsburgo e Bourbon.

E o que dizer das catacumbas de Paris? Desde o século 17, constituem sistema de túneis subterrâneos onde repousam ossuários silenciosos, lúgubres, tristes, soturnos, fúnebres e funestos, por conta da enxurrada excessiva de mortos, anjos ou demônios. Afinal, ao contrário do que cremos, as pessoas não se transformam em seres angelicais ou divinos após sua partida. Nenhuma discussão acerca da filosofia espírita e/ou da demanda imposta pelos deuses para que cumpramos os denominados carmas, vinculados às teorias de transmigração, segundo as quais o sofrimento de hoje resulta de ações anteriores que cobram um encadeamento inevitável. Respeito absoluto! Há quem acredite! Há quem negue!

Ainda em território francês, em meio à beleza estonteante da cidade, com incríveis parques e jardins de sonhos e devaneios, em sua imensidão, estão crianças, jovens, adultos e anciãos. Estes últimos parecem buscar a infância perdida em meio a cochilos intermináveis. E mais, Paris exala sensualidade e erotismo, sobretudo, no bairro Pigalle, com o Musée de l´Erotisme e farta oferta sexual. Eis Paris como a cidade dos enamorados que celebram a vida e esquecem da inevitável morte no rebuliço do Quartier Latin ou às margens longas e estreitas do rio Sena, em meio à espetacularidade da sempre polêmica Torre Eiffel.

Porém, Paris é a nostalgia ou o doce apego aos tempos idos, o que faz do passeio ao Cemitério Père Lachaise um dos pontos mais concorridos. Lá, é possível render homenagem à diva maior da música francesa, Edith Piaf, ou ao criador do espiritismo, Alan Kardek, reforçando o antes dito – nem sempre os mortais são simples e humildes imortais. E mais, um mausoléu para lá de interessante é a tumba de Napoleão, também em Paris, no Hôtel des Invalides, conhecida como Le Dome, onde está o sarcófago com os restos mortais do Imperador. A curiosidade é que a tumba não é acessada diretamente. É vista apenas por cima ou por baixo, fazendo jus à grandiosidade de Napoleão, que continua, segundo a tradição, bem além do nível dos homens.

Há muitos e muitos outros casos de belos cemitérios, tais como o de Havana, onde a visita é paga e o dinheiro é convincentemente destinado aos sobreviventes do país.

Figura 1 – Velhos cubanos esperando a morte chegar ou a estrela brilhar

 

 

Fonte: Acervo pessoal, 2023.

No caso de Diana, Princesa de Gales, há muitas interpretações sobre o local onde está após sua morte. À época, seus restos mortais seguiram para a Capela Spencer, anexo da Igreja da Virgem Maria, cerca da mansão Althorp, propriedade da família de Lady Di, em Northamptonshire, Inglaterra. Posteriormente, Charles Spencer, irmão da eterna Princesa, declarou que o corpo seria trasladado para uma tumba na propriedade da família para visitas privativas de filhos e familiares. Um pouco de paz, por favor para a que fora uma bela e atuante mulher!

No entanto, embora pareça o contrário, a discussão do que se fará com os corpos sem vida não é tema de nosso interesse. Para nós, dá igual. As valas onde se jogam montes de corpos de inocentes, não importa a faixa etária, em guerrilhas urbanas, doses de terrorismo animalesco ou em guerras inomináveis, como a mais recente entre Israel e Palestina e/ou da Ucrânia, são a prova mais forte de que nossos restos mortais são incrivelmente e tristemente banais. E isto, sim, dói e muito! Assim sendo, para evitar visitas que se esquecerão de nos visitar, estamos convictas de que nossa opção é a cremação, uma vez que representa, no ponto mais elevado, o aniquilamento e a destruição do que fomos um dia: cinza per se é uma cor que não revela muito. E mais, se algum órgão ainda tiver utilidade, o transplante é inevitável para ajudar a alguém! Aliás, como mera informação, julgamos interessante registrar que a cor verde da bandeira brasileira representa os velhos para que consigam viver dias melhores e sejam vistos não como estorvo, mas como cidadão com direitos. O dégradé do verde atesta os vários anos vividos e os matizes da existência que se esvai...

Figura 2 – Olha ela aí! A doce paz da morte com todos os enfeites a que faz jus!

                            

 

Fonte: Acervo pessoal, 2023.

Por fim, em nosso caso, esta é uma das transmutações mais flagrantes dentre as estações da existência – quando criança ou adolescente ou jovem adulto, nunca pensamos sobre a morte. Com a velhice pondo a cara no espelho, eis uma temática recorrente. É muito interessante e usual que os adultos em suas esteiras ou em outros tipos de atividade física não consigam mudar de assunto: doenças em “erupção vulcânica” ou o nome dos recém-mortos na cidade! São nossas incoerências e nossas perdições que nos remetem, às vezes, a lembranças perdidas na memória escorregadia: menina e curiosa, escondida à porta, aos 10 anos mais ou menos, lembramos de uma frase incompreensível à época, quando nossa mãe disse a uma comadre: “Sabemos que estamos envelhecendo, quando os amigos começam a partir!” Hoje, percebemos, mas sem qualquer lamento, a premonição agoureira de então, não obstante a doce paz da morte!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”