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FRBR MODELANDO A CATALOGAÇÃO SEM ANOROXIA

A catalogação, nos últimos anos, tem experimentado mudanças em suas práticas e teorias, afetadas pelas tecnologias de informação. Aliás, as mudanças não provocam sofrimento, mas saudável inovação, que propicia uma nova dimensão no desenvolver do aparato teórico e em servir como recurso para a gestão e organização do conhecimento impresso, e digital circulante na Internet. Alguns bibliotecários podem achar que as mudanças provocam uma anorexia catalográfica, decorrente de estruturas com poucos metadados e para o qual a magreza descritiva simboliza uma completa representação da informação. Embora haja discordâncias a respeito, para vários catalogadores a “ficha já caiu, na compreensão das transformações que afetam, atualmente, o trabalho catalográfico.

 

Sabemos da importância dos Princípios de Paris e das ISBDs, cujas recomendações incentivaram a criação de uma variedade de códigos de catalogação nacionais incorporando elementos novos na discrição e na operacionalização das políticas de controle bibliográfico. Atualmente, começa a consolidar-se o modelo FRBR (Requisitos Funcionais para os Registros Bibliográficos) que apresentam uma maneira de organizar a informação, possibilitando uma obtenção de resultados mais completos para as buscas dos usuários, além de oxigenar a discussão na área da representação descritiva.

 

O modelo é resultado das resoluções adotadas durante o Seminário sobre Registros Bibliográficos, realizado em Estocolmo, no ano de 1990. As resoluções foram aprofundadas com o trabalho desenvolvido por um grupo de especialistas, entre os anos de 1992 e 1997, com a finalidade de discutir uma estrutura que possibilitasse relacionar os registros bibliográficos às necessidades dos usuários. As ações foram apoiadas e encampadas pelo Comitê Permanente da Secção sobre Catalogação da IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions) que, em 2002, constituiu um Grupo de Trabalho sobre FRBR, posteriormente transformado em Grupo de Revisão do FRBR, o endereço eletrônico é: http://www.ifla.org/VII/s13/wgfrbr/index.htm.  

 

 

 

Finalidades do Catálogo

 

Sobre as finalidades do catálogo bibliográfico baseadas nas necessidades do usuário, vale recordar Anthony Panizzi (1797 – 1879), que estando à frente da biblioteca do Museu Britânico, buscou torná-la mais transparente ao público. A intenção era substituir os mistérios de seu funcionamento, por um procedimento que proporcionasse independência do usuário em saber da existência e localização do material procurado. Panizzi entendia que o principal objetivo do catálogo era ser muito mais que uma listagem. Ser um instrumento para transformação da sociedade ao promover acesso ao conhecimento para todas as classes sociais, sem distinção.

 

Neste sentido, no clássico livro “Introdução à catalogação”, a professora Eliane Mey salienta que as pessoas desejam obter acesso a algum tipo de conhecimento. Assim, compete ao bibliotecário tornar o conhecimento acessível e compatível com as necessidades das pessoas. Em sua reflexão  exemplifica: “Como se tornaria impossível aos usuários das bibliotecas, para escolha do mais conveniente, folhear todos os livros, ou ouvir todos os discos, ou manusear todas as outras formas de registro disponíveis no acervo, mesmo que os itens estivessem ampla e corretamente organizados, nós, bibliotecários, elaboramos representações desses itens, de forma a simplificar a busca. Essas representações abrangem tanto o aspecto físico dos itens como seu conteúdo. Com essas representações, criamos instrumentos diversos: bibliografias, catálogos, boletins de serviços de alerta, entre outros” (p.1).

 

Em suma, ao elaborar a representação de um objeto, descrever seu conteúdo e torná-lo recuperável com visto ao uso, se constrói um meio de comunicação. Comunicação pela qual o usuário é informado sobre os materiais disponíveis na biblioteca, e pode manifestar o seu desejo de obtê-los. Neste aspecto, o FRBR dá continuidade ao objetivo da elaboração de catálogos. O seu diferencial é o aprimoramento que introduz neste processo ao oferecer uma nova perspectiva sobre a estrutura, e as relações dos registros bibliográficos. Contempla propostas, que auxiliam aos responsáveis por códigos de catalogação, os fornecedores de sistemas, e os próprios bibliotecários  a repensarem seus produtos para satisfazerem as necessidades dos usuários. Saliente-se, que o FRBR não é um novo código de catalogação ou um novo tipo de ISBD, mas provoca impactos sobre a revisão dos mesmos.

 

 

Concepção

 

A concepção do FRBR baseia-se no modelo de entidade – relacionamento (E-R), compreendida como um modelo lógico orientado ao objeto, e a identificação de entidades e relacionamentos para projeção de banco de dados.  No modelo E – R, a entidade é compreendida como objeto do mundo real que pode ser identificado de forma unívoco em relação a todos os outros objetos. Ela pode ser concreta ou abstrata. Os atributos referem-se às diversas características que uma entidade possui, ou  propriedades descritivas de cada membro de um conjunto de entidades. O Relacionamento é a associação entre uma ou várias entidades.

 

O FRBR baseado neste modelo divide-se em três grupos de entidades estruturadas sob os seguintes princípios:

 

v     Grupo 1 – compreende os produtos de trabalho intelectual ou artístico que se descrevem nos registros bibliográficos e que formam a base do modelo: Obra, Expressão, Manifestação e Item.

 

Ø      Obra: entidade abstrata, referente a uma criação intelectual ou artística distinta. É reconhecida como entidade por meio de suas expressões. Esta entidade permite fornecer um nome e elaborar relações com a criação intelectual ou artística. Quando falamos de “Don Quixote de Miguel de Cervantes” enquanto uma obra, não se está referindo a uma edição ou texto específico, mas sim a criação intelectual.

 

Ø      Expressão: refere-se à realização intelectual ou artística específica que assume uma obra ao ser elaborada, excluindo-se aí aspectos de alteração da forma física. Envolve palavras, frases, parágrafos, etc., específicos que resultam da realização ou expressão de uma obra e fornece uma distinção no conteúdo intelectual entre uma realização e outra da mesma obra. Portanto, diferenças tipográficas não constituem uma nova expressão.

 

Ø      Manifestação: é a representação física da expressão de uma obra. Compreende um amplo conjunto de objetos físicos (itens) que podem ser monografias, periódicos, vídeos, etc., que compartilhem as mesmas características no que se refere tanto ao conteúdo intelectual como a forma física. A manifestação possibilita descrever as características compartilhadas.

 

Ø      Item: em muitos casos refere-se a um único objeto físico ou um único exemplar de uma manifestação. Em outras determinadas situações pode compreender mais de um objeto como no caso de uma monografia publicada em três volumes. No Item também está representado o artigo eletrônico recuperado da Internet. Este objeto se pode possuir ou ser visualizado em uma biblioteca digital. O Item, normalmente, compartilha as mesmas características físicas e intelectuais que a manifestação.

 

v     Grupo 2 – agrega as Entidades que são responsáveis pelo conteúdo intelectual, guarda ou disseminação das entidades do primeiro grupo. São duas entidades de fácil compreensão: pessoa e entidade coletiva.

 

Ø      Pessoa: indivíduo responsável pela criação ou realização de uma obra, ou aquele que é assunto de uma obra (biográfico, autobiográfico, histórico e etc.). São definidos como entidade pessoa: autores, compositores, artistas, editores, tradutores, diretores, intérpretes.

 

Ø      Entidade Coletiva: organizações ou grupos de indivíduos ou organizações, inclusive grupos temporários (encontros, conferências, reuniões, festivais, etc.) e autoridades territoriais como uma federação, um estado, uma região, uma municipalidade.

 

v     Grupo 3 – envolve as Entidades que representam o conjunto de temas caracterizadores de uma obra. Inclui as seguintes entidades:

 

Ø      Conceito: uma noção abstrata ou idéia. Abrange abstrações que podem ser temáticas de uma obra: áreas de conhecimento, disciplinas, escolas de pensamento, teorias. Um conceito pode ser amplo ou específico. Ex.: Teoria Quântica.

 

Ø      Objeto: uma coisa material. Abrange uma completa categoria de coisas materiais que podem ser as temáticas de uma obra: objetos animados ou inanimados que ocorrem na natureza, fixos ou móveis; objetos que são produtos da criação humana ou objetos que já não existam. Ex.: Apollo 11.

 

Ø      Evento: entidade que inclui uma variedade de ações, ocorrências ou acontecimentos: histórica, época, período de tempo. Ex.: O século XX.

 

Ø      Lugar: entidade referente a uma localização. Abrange uma série de localizações: terrestres e extraterrestres, históricas ou contemporâneas, características geográficas e jurisdições geopolíticas. Ex.: Ilha de Fernando de Noronha.

 

 

 

Projetos de FRBR

 

 

Diversas ações e projetos estão sendo realizados visando aplicar o modelo do FRBR, algumas destas ações estão relacionadas a seguir:

 

AustLit Gateway – projeto de base de dados bibliográfica (não de catálogo) que apresenta um exemplo de implementação de FRBR. É um experimento aplicado ao mapeamento do corpus literário de textos australianos, ou seja, inclui tanto as bibliografias nacionais que compreendem obras publicadas fora do país como aquelas que abarcam artigos e ensaios ou outros tipos de materiais. Utiliza de uma combinação de conjuntos de dados diferentes e heterogêneos onde se inclui elementos da ISBD. O projeto é fruto da colaboração de várias bibliotecas universitárias australianas e da Biblioteca Nacional.

 

Virtua – software integrado de biblioteca – desenvolvido pela VTLS (Visionary Technology in Library Solutions), que fazendo jus à sua nomenclatura, introduziu a partir da versão 4.10 a possibilidade das bibliotecas criarem seu próprio catálogo sob modelo FRBR. O sistema permite a coexistência de registros convencionais e FRBR em uma mesma base de dados. O esquema adotado é baseado no sistema de correspondência do MARC 21 e FRBR e toda a interação interna de montagem dos registros se faz via linguagem XML. No site, do fornecedor, é possível encontrar um texto demonstrativo do modelo e dos avanços propostos em matéria de prática catalográfica:  http://www.vtls.com.br/demonstracao/demonstracao_arquivos/frbr.pdf, mas o arquivo tem quase 30 Megabytes, e baixa-lo é recomendável acesso via banda larga.

 

As utilidades bibliográficas também têm se mobilizado na análise e aplicação do modelo, como é o caso da OCLC (Online Computer Library Center) e RLG (Research Libraries Group). As bases de dados, WorldCat da OCLC e o Catálogo Coletivo da RLG (denominado RedLightGreen), estão avaliando o potencial para uso do FRBR.

 

A OCLC desenvolveu, também, um protótipo FictionFinder  que demonstra como os 177 registros bibliográficos, sobre “Cem anos de solidão” de Gabriel García Marquez, podem ser apresentados aos usuários como um único registro da obra, sob o qual se agrupam todas as suas versões lingüísticas e todas as manifestações de cada versão existente.

 

A Library of Congress desenvolveu um software, denominado “FRBR Display Tool”, que oferece uma visualização hierarquizada de registros bibliográficos obtidos em uma busca no catálogo. Os três níveis superiores do modelo FRBR – Obra, Expressão e Manifestação servem para organizar tais listas hierarquizadas. O programa não permite busca em catálogos bibliográficos, sendo apenas uma ferramenta conversora. Fernanda P. Moreno, em sua dissertação sobre o FRBR, apresenta todo um capítulo comentando  a instalação e operação  da ferramenta, bem como, as limitação e problemas encontrados na configuração.

 

Estudo interessante, de aplicação do FRBR, utilizando o software CDS/ISIS, é mostrado por Roberto Sturman, que durante o II Congresso Mundial de Usuários de CDS/ISIS (Salvador - Ba, 20-23 de setembro de 2005), apresentou trabalho “A case study of cataloging software implementation: IFPA (ISIS FRBR Prototype Application)”. Outras informações sobre o protótipo baseado no CDS/ISIS podem ser obtidas no endereço: http://pclib3.ts.infn.it/frbr/FRBR.htm.

 

 

 

Considerações

 

A inovação do FRBR está em formular um modelo conceitual que possibilita a identificação das entidades, os atributos de cada uma das entidades, e os tipos de relação entre elas.

 

O FRBR oferece a possibilidade de realizar uma única busca, para encontrar todos os materiais relacionados, mesmo se estes materiais se catalogam em diferentes línguas ou edições, ou com diferentes cabeçalhos de assuntos. É uma nova camada que se pode colocar sobre a catalogação tradicional.

 

O conceito tradicional de catálogo automatizado se modifica ao adotar um novo modelo de operação, e apresentação de registro bibliográfico, superando limitações nas possibilidades de busca e no desenho das interfaces de consulta.

 

Um aspecto positivo, observado sobre o FRBR, foi na mudança de foco das discussões técnicas centradas somente na normalização, e nos padrões de intercâmbio bibliográfico, para preocupações sobre: o que os usuários necessitam; como um registro bibliográfico poderia atender satisfatoriamente o questionamento do usuário, ao consultar o catálogo eletrônico. Implica, ainda, revisão e discussão sobre os códigos de catalogação em vigor, formatos de intercâmbio e no desenvolvimento de sistemas de automação. Além da atualização das competências técnicas e habilidades analíticas do catalogador.

 

 

 

Indicação de Leitura

 

Para maior compreensão sobre o FRBR, recomenda-se a leitura das publicações, em português:

 

Mey, Eliane S. Alves. Introdução à catalogação. Brasília: Briquet de Lemos / Livros, 1995.

 

Assunção, Maria Clara. Catalogação de documentos musicais escritos: uma abordagem à luz da evolução normativa. 2005.  Master thesis, Departamento de História, Universidade de Évora.

 

Moreno, Fernanda Passini. Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos – FRBR: um estudo no catálogo da Rede Bibliodata. Brasília, 2006. Dissertação (Mestrado). Universidade de Brasília. Departamento de Ciência da Informação e Documentação - CID

 

Moreno, Fernanda Passini; Arellano, Miguel Angel Márdero. Requisitos funcionais para registros bibliográficos – FRBR: uma apresentação. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v.3, n.1, p.20-38, jul./dez. 2005.

 

 

 

link sobre o tema:

 

A case study of cataloging software implementation: IFPA (ISIS FRBR Prototype Application): http://w2isis.icml9.org/activity.php?lang=es&id=13  

 

International Federation of Library Associations and Institutions, "Functional Requirements for Bibliographic Records": www.ifla.org/VII/s13/frbr/frbr.htm

 

Library of Congress Network Development and MARC Standards Office: www.loc.gov/marc  

 

OCLC FictionFinder: fictionfinder.oclc.org.  

 

RLG's RedLightGreen: www.redlightgreen.com  

 

VTLS's Virtua: www.vtls.com

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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.