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SEGUNDA-FEIRA DE ÁGUAS: PROSTITUIÇÃO E TRADIÇÃO

Prostituição: a profissão mais antiga do mundo. Eis frase que circula no imaginário de diferentes povos, quase sempre, ou sempre, em tom zombeteiro. Na verdade, trata-se de tema complexo, com matizes os mais distintos possíveis em diferentes países dos cinco continentes. Os elementos culturais, como conhecimentos, técnicas, bens, valores, hábitos, costumes, tendências, vulnerabilidades, gostos e tradições diferem mundo afora. As legislações de cada nação seguem linha própria. Aqui e ali, divergências incríveis ou coincidências inesperadas. Em países islâmicos, as mulheres são condenadas à morte. Na Índia, literalmente banidas do convívio social. Afinal, as jovens são reservadas para belas cerimônias de casamento, ainda hoje, estabelecido pelas famílias como um negócio lucrativo, enquanto os homens não hesitam em usufruir os prazeres do sexo junto às fêmeas de países vizinhos ou estrangeiras de outras partes que visitam o País. Teoricamente, às ocultas, mas sob o olhar cúmplice dos companheiros, o que lhes assegura status de herói.

 

Alemanha, Holanda, Nova Zelândia e Suíça regulamentam e outorgam à prostituição direitos similares às outras categorias de trabalho. Nos Estados Unidos e na Austrália, a situação é mais confusa, com legalização em determinadas regiões, por exemplo, Estado de Nevada e Sydney, respectivamente. Na Suécia, a punição vai para os clientes, e não para as prestadoras de “serviço”. Em contraposição a posicionamentos tão díspares, há nações, que nem legalizam nem perseguem os praticantes de forma ostensiva, com exceção da prostituição infantil, cuja linha de ação é justificadamente implacável. Brasil e Espanha são exemplos. No Brasil, o meretrício não constitui crime, e, sim, as atividades correlatas, tais como favorecimento, indução e tráfico de mulheres. Em se tratando da Espanha, em 2007, o Congresso votou contra a legalização da prostituição, em meio a polêmicas estridentes. Afinal, segundo dados publicados pela imprensa, nesse País, atuam na prostituição 400 mil mulheres (das quais, inacreditavelmente, 98% são estrangeiras), movimentando por ano cifra em torno de 18 milhões de euros. São dados que dimensionam o problema, que também é grave no Brasil, cujos números exatos sobre a prostituição não são dignos de crédito, por uma razão única e inequívoca: a fragilidade que ronda o conceito da prostituição per se.

 

O significado dicionarista, em qualquer idioma, define a prostituição como comércio habitual ou profissional do amor sexual, ou seja, o sexo pago. Nesta concepção tão simplista, onde inserir mulheres de programa, que se vendem por valor imensuravelmente alto, que envolve carros de última geração, apartamentos, viagens, instâncias em paraísos, jóias etc.? Outra faceta também mutável, é que a profissão agrega, agora, mais e mais homens, que se vendem por dinheiro, em troca de vida aparentemente fácil. E o que nos parece mais paradoxal é a atitude da sociedade como um todo. Ao tempo em que as pessoas condenam as (os) profissionais do sexo, cada vez mais, anúncios de jornais divulgam serviços, com detalhes sórdidos sobre as proezas oferecidas; programas de TV convidam prostitutas ou michês para que narrem sua trajetória; páginas eletrônicas da internet oferecem de tudo, absolutamente de tudo; sites, com a finalidade explícita de reduzir a solidão humana, terminam por mostrar pretensões escusas; há serviços telefônicos para a consumação do sexo; e assim por diante...

 

Todo este preâmbulo tão-somente para chegar às tradições culturais e à complexidade subjacente a elas. Há casos curiosos. Na Espanha, em particular, desde a Constituição de 1978, inexiste religião oficial. Há cuidados especiais e oficiais para o cumprimento da prescrição constitucional. Por exemplo, a página eletrônica do Governo de Madrid, www.munimadrid.es, não traz quaisquer dados sobre religião. Mesmo assim, é visível a estreita relação entre Estado e Igreja Católica, com mais de 95% de católicos numa população estimada em 46.063.511 habitantes, segundo dados oficiais do ano de 2008. E o que ocorre, em Castilla e Leon, ou mais precisamente, em Salamanca, embora a tradição venha se expandindo a outras províncias, parece-nos uma das tradições culturais mais surpreendentes.

 

É a chamada segunda-feira de águas (lunes de aguas). Sua origem remonta ao longínquo século XVI. Por ordem do rei Felipe II, durante os 40 dias entre a quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa, as prostitutas locais, à época, são levadas para fora da cidade, ao outro lado do Rio Tormes, que banha a cidade, para evitar tentação aos “pobres” homens. Permanecem isoladas, sob a custódia do denominado “Padre Putas”, cargo instituído por um dos membros da realeza. Finda a Quaresma, os jovens (porque libertos das obrigações maritais), sob o olhar conivente dos mais velhos, se juntam para uma grande festa de boas-vindas às mulheres que chegam, sedutoras e belas, em barcos devidamente engalanados. 

 

A cada ano, na segunda-feira, logo após as celebrações da Ressurreição de Cristo, a cidade literalmente pára ou reduz drasticamente sua movimentação. Em bandos ruidosos, famílias inteiras, grupos de amigos, amantes, pessoas solitárias, enfim, crianças, jovens, adultos e velhos seguem às margens do rio Tormes, onde comem, bebem, cantam, amam, lêem, jogam cartas ou conversa fora, por todo o dia. E, desde a década de 80 do século passado, à semelhança do que acontece em Teresina (Piauí), com o “carro das putas”, no período carnavalesco, há barcos que chegam à Salamanca, em lunes de aguas, com mulheres fantasiadas e acompanhadas de um “padre”, numa representação simbólica dos fatos passados.

 

Em tudo isto, o que causa espanto é o paradoxo que se conserva por tantos séculos: ainda que as leis vigentes da Espanha não criminalizem a prostituição, uma sociedade majoritariamente católica celebra, com vigor e esplendor, uma tradição cultural que põe em relevo a “utilidade” e a “beleza” da prostituição. E o que é mais surpreendente: trata-se de uma nação, cujos movimentos em prol da dignidade da mulher são intensos. Há uma infinidade de associações. Há uma quantidade quase imensurável de seminários, cursos e eventos similares, promovidos por instituições salmantinas de ensino superior, em defesa dos direitos humanos. Para quem batalha nesta trincheira, é evidente que mulheres e homens, ao se prostituírem, não somente se despem aos olhos de outros, mas, sobretudo, aviltam corpo e alma, sujeitando-se à crueldade desses outros e / ou a aberrações de quaisquer naturezas. As prostitutas e / ou os michês afirmam, com veemência, que homens e mulheres que os freqüentam são extremamente verdadeiros em seus lençóis. Despem as máscaras sociais. Expõem sua face mais sórdida, mais cruel, mais bestial, e, mormente, a mais verdadeira. Travestem-se em quatro paredes.

 

Por outro lado, há que se convir que nada disto é privilégio de um só país. São as tradições de ontem moldando hábitos de hoje. São costumes de nossos avós e bisavós nos deixando antever a natureza humana, como irremediavelmente única, embora oculta sob véus distintos. São as civilizações construídas e reconstruídas a cada momento, coletivamente ou individualmente, em suas contradições inevitáveis. A prova está no sucesso da celebrada brasileira Surfistinha, nome de guerra de Raquel Pacheco, cujo maior mérito é ter optado, numa fase de sua vida, pelo meretrício. Ao primeiro livro, O doce veneno do escorpião, lançado em 2005, sob intensa publicidade e, por conseguinte, com estrondoso sucesso editorial e bombástica polêmica em diferentes meios sociais, seguem outros títulos. E isto, num país, onde acadêmicos e literatos, com freqüência, percorrem verdadeiro calvário para publicar seus trabalhos. E lá está a jovem, como convidada de honra em distintos programas televisivos e de distintas emissoras. Em outubro de 2010, ei-la na grande tela. É o momento do filme homônimo O doce veneno... , que conta com Deborah Secco como protagonista. Hoje, Raquel Pacheco está na mídia, na Wikipedia e no The New York Times.

 

Ou seja, povos distintos, em momentos distintos ou formas distintas, enaltecem a prostituição como tradição cultural (ou não) e assim ela segue como a profissão mais antiga do mundo e, quiçá, a mais gloriosa. Nós, brasileiros, temos, pois, nossa lunes de aguas ou nossas lunes de aguas!

 

FONTE:

SILVA, J. B. da S. Legalização da prostituição e seus efeitos. Jus Vigilantibus, 27 dez. 2007.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”