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O PADRÃO DA BIBLIOTECA É SER PADRONIZADA

Um aspecto característico da atividade bibliotecária é o uso de padrões. Há criticas e  defesas sobre este aspecto da profissão. Entretanto, padrões é a base para que bibliotecas, em seus diversos contextos sociais, operem sob uma linguagem comum (ou ao menos tentem). Na era das redes eletrônicas, a padronização se torna essencial para a comunicação e troca de informações entre máquinas para a construção da web semântica.

 

Se os padrões estão na base da atividade bibliotecária, é porque também os recursos de informação têm formatos padronizados. Afinal, a sociedade adota a padronização para o funcionamento do seu quotidiano e, sobretudo, nas suas inter-relações sociais, culturais e econômicas, seja em ambiente analógico ou digital.

 

Segundo Nicola Nosengo, em sentido tecnológico e econômico, os padrões são mecanismos para governar o mercado; tanto os Estados quanto empresas ou organizações criam padrões para promover o próprio bem-estar coordenando e limitando o comportamento individual. Sob a ótica econômica a existência dos padrões é uma forma de gerir situações nas quais a conduta de um ator do mercado influencia (de forma positiva ou negativa) o bem-estar do outro. Como exemplo, tome-se a fixação de limites para as emissões de gases poluentes que uma empresa pode lançar no ambiente são padrões negociados e impostos para regular o impacto da atividade de um sujeito sobre o bem-estar de uma comunidade.

 

No dicionário Webster´s, a palavra inglesa standard (padrão) é algo estabelecido por uma autoridade, pelo consenso geral ou pelo uso como modelo ou exemplo a ser seguido. Embora a definição seja vaga, indica a variedade de atores envolvidos no processo de padronização e o diferente grau de normatividade de um padrão. Pode ser um rígido esquema fixado por uma autoridade com poder legal, ou um exemplo aceito por convenção e costume que deixa certa liberdade de interpretação.

 

Tassey define padrão como um conjunto de especificações para o qual todos os elementos de produtos, processos, formatos ou procedimentos sob sua abrangência têm que estar de acordo. Já, David e Greenstein destacam que um padrão deve ser compreendido como um conjunto de especificações técnicas aderido por um grupo de fornecedores tacitamente ou como resultado de acordo formal.

 

A definição do significado de padrão é variável, e o seu desenvolvimento e aplicação é algo difícil. Há padrões que sequer passam da fase de desenvolvimento por problemas de articulação das discussões e definições. Outros apesar de especificados não são adotados. Mesmo as inovações tecnológicas ou mudanças de mercado podem tornar um padrão irrelevante ou requerer adaptações nas suas especificações, sem garantia de torná-lo aceito. Mesmo adotado um padrão pode tornar-se obsoleto, criando uma necessidade de substituição.

 

A jovial geração de bibliotecários e de bibliotecárias, na faixa etária dos 50 anos, se lembra das batalhas entre padrões: Betamax e o VHS (Video Home System), o vinil e o CD, a fita cassete e seus aspirantes a substitutos, dentre outros. O êxito de um padrão sobre outro não está necessariamente na escolha do “melhor”, com base numa avaliação puramente técnico-econômica.

 

Padronização não é só resultado de interesse econômico ou de mercado, como exemplificado. Em setores de interesse social nos quais há baixa cooperação e o que está em risco é a vida das pessoas, compete ao Estado fixar os padrões. Exemplos neste sentido são os padrões de segurança dos ambientes de trabalho, trânsito, ou de saúde.

 

Nos últimos anos o número de organizações que desenvolvem padrões tem aumentado, com superposição de legislação e consequentes conflitos: desde organizações reconhecidas e financiadas por governos, a comitês e grupos de natureza privada, originados de acordos informais.

 

A autoridade de padronização internacionalmente reconhecida é a International Standard Organization (ISO), que reúne organizações análogas atuantes em vários países. Incluídos tanto agências públicas como particulares. A ISO promove padrões em milhares de produtos e serviços, amplamente observados em virtude da necessidade de coordenação do mercado, mas normalmente não faz outra coisa a não ser ratificar escolhas que o mercado ou comunidades efetuaram. No Brasil, a organização normativa análoga a ISO é a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).

 

Podemos supor que, atualmente, a maioria dos setores produtivos tem um padrão normativo de seu processo. Nem sempre foi assim, ao longo da história encontramos diversos tipos de unidades de medida que nos permite perceber quão confusas deveriam ser as conversões entre umas e outras normas adotadas nas regiões do Globo.

 

Um dos primeiros esforços de padronização se refere justo aos sistemas de medidas, no final do século 18, na França. O país usava a auna (unidade de medida de comprimento de cerca de 1,20cm) para comercializar tecidos, mas na cidade de Paris se usavam três aunas diferentes para o mesmo tipo de tecido. E mais, para cada um dos três tecidos se usava uma para a venda no varejo e outra no atacado. Eis o motivo da expressão “dois pesos e duas medidas”. Durante a Revolução Francesa se concebeu ideia de um sistema de medida único – logo tornado universal. É também, por este período, que se organiza o primeiro manual de catalogação da França: “Instruction pour proceder à la confection du catalogue de chacune des Bibliothèques sur lesquelles le Directoires ont dû ou doivent incessamment apposer les scellés” (editado em Paris pela L´Imprimerie Nationale, 1791, 16 páginas) com vistas a garantir uniformidade nos procedimentos de trato dos acervos tomados da nobreza.

 

Outro fato marcante, ao surgimento do conceito de padrão, acontece no século 19 com a necessidade de padronizar as especificações técnicas de manufatura, base da produção padronizada. Até então a indústria manufatureira (norte-americana e europeia) era constituída por artesãos que trabalhavam de forma isolada, sem nenhum interesse em integrar seus equipamentos com os dos outros.

 

É neste ambiente industrial que William Sellers se destaca ao propor uma uniformidade ao problema dos parafusos e porcas, e que foi um dos primeiros passos na direção de uma intercambialidade das peças construídas por diversos fabricantes e, portanto, o primeiro passo do fim da produção mecânica artesanal.

 

Vale lembrar que é nesta época, que vai se estabelecendo os fundamentos da Biblioteconomia, com adoção de procedimentos e produtos que subsidiaram a formação de processos padronizados na área, como: códigos de catalogação, de classificação etc.

 

A padronização foi fundamental para a indústria porque permitiu o rápido desenvolvimento de setores inteiros da mecânica, demonstrando que numa produção industrial voltada para um mercado de massa, mesmo os componentes mais banais necessitam de uma rigorosa padronização, o que deu inicio à proliferação dos padrões e das agências encarregadas de regulá-los.

 

Há outro aspecto relevante e ao mesmo tempo paradoxal, quando olhamos para as inovações e expectativas tecnológicas, atuais. Que padrão irá prevalecer? Desde celulares, leitores de livros eletrônicos e formatos de arquivos, tablets e netbooks. Inovações ou mudanças muito rápidas apresentam uma taxa de adoção muito lenta, pois se torna difícil identificar aquela destinada ao sucesso, e a decisão de comprar imediatamente pode significar assumir ônus de uma tecnologia destinada a tornar-se obsoleta.

 

Outra situação é aderir a uma tecnologia baseada em um padrão que parece tornar-se dominante ou inevitável. Como exemplo, recorremos ao caso do CD e do vinil. O CD apesar de dominante começou a perder terreno até mesmo para o antigo rival. Atualmente, músicos de sucesso lançam sua produção em CD ou DVD e, também, em vinil a um preço “bem salgado”. Atualmente, o vinil atende um nicho de mercado. Bibliotecas com acervo neste suporte têm um regaste do material para consulta. Caso não tenha se desfeito do toca disco. As plataformas de informação se esgotam, mas nem por isto a obsolescência é um conceito definitivo.

 

Deve-se compreender a importância dos padrões tanto na área da Biblioteconomia quanto nos materiais e formatos de arquivo tratados, ou ainda no mercado em geral.

 

A padronização na atividade bibliotecária apresenta benefícios para a operação do sistema de informação. Melhora o gerenciamento dos registros bibliográficos, ao contribuir na construção da infraestrutura de bases informacionais, e no estabelecimento de produtos e serviços.

 

A padronização dos registros bibliográficos facilita a troca e a reutilização dos mesmos, preservando, ainda, o livre fluxo informacional.

 

A padronização também ajuda a atividade bibliotecária, em termos tecnológicos. Previne o aprisionamento a ferramentas e formatos proprietários. Entretanto, para um padrão bibliográfico ser bem sucedido na sua aplicação, é necessário que seja usado por todos os envolvidos nas transações e intercâmbios biblioteconômicos.

 

A padronização ganha importância para a política de ação da biblioteca. Possibilita a intercomunicação e a orquestração entre os sistemas de informação bibliográficos e o desenvolvimento de aplicações para o acesso universal por qualquer dispositivo conectado à Rede.

 

Atualmente, na área, um termo ganha grande importância – a interoperabilidade. Alguns padrões de metadados se propõem a resolver essa questão de interoperabilidade em domínios específicos ou em domínios heterogêneos. Em domínios específicos, tais como informação bibliográfica ou arquivística, os metadados especializados (MARC, EAD etc.) são adotados, garantindo que informações de diferentes fontes sejam integradas e pesquisadas de forma avançada. Já, no domínio heterogêneo, o padrão Dublin Core é um dos poucos que se propõem integrar fontes diversificadas utilizando um conjunto mínimo de elementos descritivos e qualificadores.

 

Como exemplificação de quantidade e diversidade, lista-se alguns padrões ISO relacionados com a área:

 

§  ISO 10160:1997 -- Open Systems Interconnection -- Interlibrary Loan Application Service Definition.

§  ISO 10324:1997 -- Holdings statements -- Summary level.

§  ISO 11620:2008 -- Library performance indicators.

§  ISO 11799:2003 -- Document storage requirements for archive and library materials.

§  ISO 11800:1998 -- Requirements for binding materials and methods used in the manufacture of books.

§  ISO 12615:2004 -- Bibliographic references and source identifiers for terminology work.

§  ISO 14416:2003 -- Requirements for binding of books, periodicals, serials and other paper documents for archive and library use -- Methods and materials.

§  ISO 15511:2009 -- International standard identifier for libraries and related organizations (ISIL).

§  ISO 15707:2001 -- International Standard Musical Work Code (ISWC).

§  ISO 15836:2009 -- The Dublin Core metadata element set.

§  ISO 15924:2004 -- Codes for the representation of names of scripts.

§  ISO 19115:2003 -- Geographic informationMetadata.

§  ISO 20775:2009 -- Schema for holdings information.

§  ISO 21047:2009 -- International Standard Text Code (ISTC).

§  ISO 214:1976 -- Abstracts for publications and documentation.

§  ISO 2146:2010 -- Registry services for libraries and related organizations.

§  ISO 23081-1:2006 -- Records management processes -- Metadata for records -- Part 1: Principles.

§  ISO 23081-2:2009 -- Managing metadata for records -- Part 2: Conceptual and implementation issues.

§  ISO 23950:1998 -- Information retrieval (Z39.50) -- Application service definition and protocol specification.

§  ISO 25577:2008 MarcXchange.

§  ISO 2709:2008 -- Format for information exchange.

§  ISO 2788:1986 -- Guidelines for the establishment and development of monolingual thesauri.

§  ISO 2789:2006 -- International library statistics.

§  ISO 3166-1:2006 -- Codes for the representation of names of countries and their subdivisions -- Part 1: Country codes.

§  ISO 3297:2007 -- International standard serial number (ISSN).

§  ISO 5123:1984 -- Headers for microfiche of monographs and serials.

§  ISO 5127:2001 Vocabulary.

§  ISO 5426:1983 -- Extension of the Latin alphabet coded character set for bibliographic information interchange.

§  ISO 5964:1985 -- Guidelines for the establishment and development of multilingual thesauri.

§  ISO 6357:1985 -- Spine titles on books and other publications.

§  ISO 6630:1986 -- Bibliographic control characters.

§  ISO 6862:1996 -- Mathematical coded character set for bibliographic information interchange.

§  ISO 690:2010 -- Guidelines for bibliographic references and citations to information resources.

§  ISO 7154:1983 -- Bibliographic filing principles.

§  ISO 832:1994 -- Bibliographic description and references -- Rules for the abbreviation of bibliographic terms.

§  ISO 8459:2009 -- Bibliographic data element directory for use in data exchange and enquiry.

§  ISO 8777:1993 -- Commands for interactive text searching.

§  ISO 9230:2007 -- Determination of price indexes for print and electronic media purchased by libraries.

§  ISO 9707:2008 -- Statistics on the production and distribution of books, newspapers, periodicals and electronic publications.

§  ISO 999:1996 -- Guidelines for the content, organization and presentation of indexes.

§  ISO/TR 19033:2000 -- Metadata for construction documentation.

§  ISO/TR 28118:2009 -- Performance indicators for national libraries.

§  ISO/TR 8393:1985 Bibliographic filing rules (International Standard Bibliographic Filing Rules) -- Exemplification of Bibliographic filing principles in a model set of rules.

 

I love library standards, there are so many of them”. A frase não é ironia, é apenas expressão de um aspecto característico da atividade bibliotecária. Só os bibliotecários podem dizer o quanto é bom ou não. Porém, ainda que não se goste não podemos viver sem.

 

Indicação de leitura:

 

David, P.; Greenstein, S. The economics of compatibility standards: an introduction to recent research. The Economics of Innovations and New Technology, vol. 1, n. 1/2, p.3-41, 1990.

 

Nosengo, N. A extinção dos tecnossauros: histórias de tecnologias que não emplacaram. Campinas, SP : Editora da UNICAMP, 2008.

 

Tassey, G. Standardization in technology-based markets. Research Policy, vol. 29, n. 4/5, p. 587-602, 2000.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.