CINEMA


ENTRE O CÉU E O INFERNO, A PAIXÃO EM ALMODÓVAR

Pedro Almodóvar surpreende em Má educação (Espanha, 2004). Deixa de lado o universo feminino e penetra no estranho universo masculino, pouco afeito ao amor (os homens normalmente fazem sexo - um defeito da criação divina), suspeito na paixão (os homens geralmente se revelam farsantes - fingem-se apaixonados) e declarado no desejo (como o amor é da alma feminina, a canalhice impera).

Pois bem, nós que estávamos acostumados ao amor, à paixão e ao desejo femininos desfilados nos diletantes filmes do diretor espanhol, agora nos deparamos com o desejo carnal homossexual masculino e com a mórbida paixão pedófila. Desejo e paixão que constrangem, ao tempo em que mostram reações adversas (do público) que vão do escárnio à indiferença. O menosprezo das relações homossexuais, algo que a sociedade convive e teima em não aceitar; e a indiferença com as relações pedófilas, algo que a sociedade conhece e a trata no submundo da co-existência.

Má educação é um filme em que o sexo é tratado como perversão. As relações mostradas são perversas. É assim que vivem os personagens desta trama que discute a iniciação sexual em internato religioso e a conseqüência no futuro dos assediados. Almodóvar discute o homossexualismo fincado na igreja católica responsabilizando-a por pedofilia e sua conseqüência como o homossexualismo assumido, tão condenado por esta mesma igreja. É a hipocrisia determinante nas relações carnais do desejo e da paixão.

A fé é posta de lado e os personagens principais declaram-se agnósticos. A cena do assassinato do travesti, cometido por dois padres e tendo Deus por testemunha (segundo os próprios) é de uma preciosidade cínico-religiosa digno de quem faz parte de instituições que se consideram acima do bem e do mal (e a igreja é uma delas). A afirmação, feita pelo padre-assassino, de que Deus é testemunha, mas está do lado deles é o xeque-mate Almodoviano nas pretensões clericais de pureza religiosa.

Má educação não tem glamour, não tem charme, características mais próximas do mundo feminino, é cínico, farsante e interesseiro, características mais próximas do mundo masculino. O filme tem uma trama que não empolga embora guarde uma surpresa, nada que um observador atento não a desvende antes de aparecer na tela.

A trama revela paixões no limite do proibido. E revela também, entre outras coisas, o já sabido, mas pouco confessado: que as paixões são recorrentes, e que se ama mais de uma vez. No caso do padre Manolo duas: a primeira como um homem adulto, no cargo de padre-diretor de um internato masculino, na figura de um pedófilo; a segunda, como adulto, já numa fase próxima a terceira idade, na figura de um homossexual.

É a igreja o alvo maior da crítica no filme. É nela que se encontra a perdição da paixão na forma mais vil do sexo que é a pedofilia, praticada por baixo das batinas e segredados nas sacristias. Como diz Antonio Carlos Viana em Aberto está o inferno (Companhia da Letras, 2004) "A igreja sempre foi cheia de escândalos [...] porque batina cobre o pau, mas não cobre as taras".

Por fim, mais uma vez Almodóvar mostra-se competente ao trabalhar o seu objeto de desejo cinematográfico: a paixão. E mostra que uma vez vivida uma grande paixão, a vida não mais retorna ao seu curso natural. E que estar apaixonado é viver entre o céu e o inferno. E não há igreja salvadora para tamanho desatino.

_____________________

Má educação. Espanha, 2004. Direção e Roteiro de Pedro Almodóvar. Com: Fele Martinez, Gael Garcia Bernal, Daniel Gimenez Cacho, Lluis Homar, e Javier Câma


   442 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo