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EU CUTTER FRBR, E VOCÊ?

Rumos novos têm norteado a catalogação nas últimas décadas. Recordo-me do comentário de um velho catalogador (saudoso das fichas impressas) que durante um bate-papo dizia: “meu jovem, eu já fui bom na catalogação até decidirem misturar as letras do alfabeto e a pontuação gramatical com os números arábicos e sinais gráficos. Tudo passou a ser reconfigurado como linguagem de marcação para dados linkados. Agora a moda é facebook, e os elementos de informação ficam amarrados por um botão - curtir. Já não entendo mais nada. Aí me aposentei e fui....”.

 

Em realidade, a catalogação muda continuamente. Por vezes dá a sensação de seguir sem rumo claro ou de difícil dedução sobre seu destino. Em tempo de redes eletrônicas, a representação descritiva se transforma. Verdade que premida pelas inovações tecnológicas e a metamorfose documental. Neste cenário de transformações, talvez ao catalogador seja recomendável adotar o comportamento preconizado pelo filósofo da Sociedade Alternativa, Raul Seixas:

 

Prefiro ser / Essa metamorfose ambulante / Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião / Formada sobre tudo / Do que ter aquela velha opinião /Formada sobre tudo...

 

Se o passado é acabado e o futuro uma incerteza, diante das ondas massivas de mudanças geradas pelas inovações tecnológicas, que expandem o universo presente do controle bibliográfico, e do crescente volume de trabalho advindo, o catalogador pode adotar, ao comportamento proposto, uma postura compatível, ou seja, manter o coração tranquilo, segundo outro evangelista da contracultura, Walter Franco:

 

Tudo é uma questão de manter / A mente quieta / A espinha ereta / E o coração tranquilo.

 

Em suma, seguir os rumos novos da atividade catalográfica, e entender as mudanças, requer um esforço de reflexão sobre as práticas realizadas, rever opiniões relacionadas às mesmas e, essencialmente, refazer leituras sobre conceitos da catalogação. Se para alguns graduandos  em Biblioteconomia, ou bibliotecário possa pairar nos lábios um sabor de critica ao obsoletismo da atividade catalográfica. Por vezes, isto decorrer da carência de uma leitura mais aprofundada do legado teórico e histórico da catalogação.

 

Atualmente promove-se o RDA (Recursos: Descrição e Acesso), e divulga-se o FRBR (Requisitos Funcionais para Registros Bibliográficos), que contemplam aspectos dos rumos novos da catalogação, e influem na inovação da atividade prática.

 

Neste sentido, ao refazer leituras, além de reler Panizzi, é essencial aos catalogadores, revisitar Charles Ammi Cutter (1837 – 1903), em especial para compreender algumas das bases do FRBR. Tema sobre o qual este texto resumidamente procura comentar. Comentar muito resumidamente.

 

No panteão da biblioteconomia norte-americana, Cutter situa-se entre os bibliotecários mais brilhantes do século 19, e só não é considerado o maior, pela sombra de Melvil Dewey.

 

Alice Príncipe Barbosa destaca que o séc. 19 é chamado de o “Século de ouro da catalogação ou da codificação”. Período no qual a normalização das regras catalográficas era a preocupação dominante entre os bibliotecários, despertando interesse crescente de sua consolidação. É o cenário no qual Cutter foi um dos arquitetos da moderna biblioteconomia, que se consolidaria mundialmente no século 20.

 

Apesar de mais conhecido por sua famosa tabela (ainda muito utilizada) para a codificação de nomes de autores na classificação dos materiais bibliográficos, ele foi uma importante liderança bibliotecária. Cofundador da ALA – American Library Association (com Dewey e outros). Idealizador da tradicional publicação Library Journal. Criou, também, a Expansive Classification.

 

Apesar da competência reconhecida entre seus pares, Cutter era uma pessoa de temperamento afável, de personalidade tímida, e de formação acadêmica humanista e conservador. Preferia mais a sombra que ser o centro das atenções. A leitura sobre a vida e a obra de Cutter é oportunidade de se conhecer um exemplo de profissional dedicado à sua atividade. Sobre a biografia desta personalidade, na internet se encontra alguns textos como: Biografia de Charles Ammi Cutter, escrita por Stromgren Pip, e publicado originalmente no Daily Hampshire Gazette, e Charles Ammi Cutter: uma breve biografia, elaborado por Noah Sheola. Além destes, há a dissertação de Francis L. Miksa, Charles Ammi Cutter: Nineteenth-Century Systematizer of Libraries.

 

Como citado, o trabalho de Cutter afetou e afeta a catalogação norte-americana e internacional. Principalmente, por sua obra máxima publicada, inicialmente, em 1876, como Rules for a Printed Dictionary Catalog [Regras para um catálogo dicionário impresso] e, em edições posteriores, conhecido apenas como Rules for a Dictionary Catalog [Regras para um Catálogo Dicionário]. O termo “Printed” foi excluído do título das demais edições pela popularização dos catálogos em ficha.

 

O código de Cutter orientava a redação de um registro bibliográfico sob três pontos de entradas: autor, título e assunto. Assim, o código proposto foi o primeiro a criar regras especificas para a catalogação de assuntos. Baseou-se em códigos anteriores, incluindo Panizzi, o próprio prefácio de sua obra menciona as famosas 91 regras aplicadas na biblioteca do British Museum.

 

Cutter buscava desenvolver uma ordenação científica dos livros de maneira a servir de ajuda tanto aos pesquisadores e estudiosos, quanto aos leitores em geral. Na primeira edição da publicação havia uma introdução sobre os objetivos do catálogo. Agregava um glossário dos principais termos utilizados e um estudo teórico sobre catalogação e classificação. Era composto de 205 regras. Muitas delas seguem vivas até hoje, pelo menos em suas linhas gerais.

 

Na quarta edição, publicada um ano após a morte de Cutter, em 1904, haviam sido ampliadas para 369 regras, que enfocavam não só instruções para a descrição de pontos de acesso de autor e título, mas também a configuração e registro dos pontos de acesso por assunto. É considerado como o conjunto de regras mais completas jamais produzidas por uma só pessoa (GARRIDO ARILLA, 1999).

 

Cutter determinou como premissa em sua obra que a conveniência do público deve ser sempre colocada à frente da facilidade para o catalogador (MEY e SILVEIRA).

 

Recomendou, em relação ao titulo de entrada (autoridade) para autor, adoção à forma mais conhecida. Propunha três formas de catalogação: uma simplificada, outra intermediária e outra mais detalhada. Determinou também uma estrutura lógica para redação das entradas bibliográficas, atendendo inicialmente a descrição bibliográfica e, posteriormente os pontos de acesso e cabeçalhos. Estruturas seguidas pelos modernos códigos de catalogação do século XX, como o AACR. O código de Cutter contemplava, ainda, orientações para catalogação de materiais especiais, como manuscritos, músicas, mapas, etc.

 

O desenvolvimento do catálogo dicionário foi inovador em seu tempo. Ao invés de apenas listar itens por autor, listava todo um conjunto de autor, título e assunto em uma única lista ordenada alfabeticamente. Um catálogo dicionário reúne, por exemplo, todos os livros DE e SOBRE uma pessoa.

 

Curtter na introdução das suas regras fez algumas observações gerais e explicações sobre a serventia de um catálogo e o seu funcionamento. Basicamente, deveria permitir ao usuário encontrar: [A] o livro do qual o autor; [B] o título; ou [C] o assunto fosse conhecido. Mostrar o que a biblioteca possuía: [D] de um autor determinado; [E] de um assunto determinado; [F] de um determinado tipo de literatura. Auxiliar o usuário na escolha de um livro: [G] de acordo com sua edição (bibliográfica); e [H] de acordo com seu caráter (literário ou tópico). O catalogador pode substituir livro por recurso ou item (objeto físico que armazena o conteúdo intelectual ou artístico. Também pode ser o assunto de uma obra), e a definição para catálogo em linha, é válida.

 

Ainda, exemplificando, tome-se o caso do autor. Segundo Cutter, o usuário deve ser capaz de encontrar um livro se o autor é conhecido. A implicação mais básica disto é que quando um livro é catalogado, o nome do autor deve ser registrado e torna-se parte da descrição. Mas alguns livros não têm apenas um autor; têm dois, três ou mais, ou um editor, ou tradutor ou ilustrador, e as diferentes funções precisam ser adequadamente trabalhadas.

 

Para Cutter um determinado tipo de literatura (novela, peças teatrais, poesia, etc.), significava que os usuários deveriam ser capazes de verificar o que a biblioteca possuía. A forma de um livro pode ser ou “prática como nos almanaques, dicionários, enciclopédias" (um caráter de atualidade), ou "Literária” (ficção, peças teatrais, comédias), e assim por diante.

 

Esses objetivos são os primeiros conjuntos de princípios da catalogação. São a base sobre a qual Cutter construiu um conjunto completo de regras que abrange tudo o que um catalogador precisaria para construir um catálogo.

 

Ele também se preocupou, por meio do código, em responder algumas questões de representação, do tipo: Todos os autores em uma antologia devem ser listados? Se 15 pessoas colaboram, todos eles devem ser listados, ou apenas os primeiros? Como pseudônimos devem ser tratados? Se o nome é ortograficamente diferente em distintos livros, qual será a versão correta? Como devem ser transliterados nomes em outros alfabetos? Ovídio deve estar sob o seu nome real, Publius Ovidius Naso? Os nomes serão classificados em ordem alfabética, segundo prenome ou sobrenome? Leonardo da Vinci vai ser entrado sob L ou D ou V? E quanto o nome é o nome de família ou nome pessoal? Autoria Coletiva (muitas pessoas trabalhando juntas sob o mesmo nome) é muitas vezes um problema. Um relatório de uma Comissão de Ministros do governo, ele vai sob o nome da Comissão, ou Ministros ou País ou o nome do Chefe de Estado, ou outra coisa? E se a Comissão ou o Ministério muda de nome, em seguida, emite uma versão atualizada do relatório?

 

Essas eram apenas alguns dos problemas que necessitavam das regras de catalogação para resolver. Além de tudo isso, havia o problema de fornecer referências cruzadas (remissivas) no caso do usuário procurar um nome, mas o catálogo apresentar esse termo com outro nome, o usuário deve ser direcionado para a informação correta.

 

Sobre certa peculiaridade da área, Dalton lembra que, ao contrário da matemática, há diferentes maneiras de decidir as regras catalográficas. O Teorema de Pitágoras é uma relação entre os três lados de um triângulo retângulo, e baseia-se diretamente das regras de Euclides. No caso catalográfico, nem sempre se pode usar da pura lógica e dedução para decidir, por exemplo, a melhor maneira de adotar uma determinada entrada de um nome. É possível alguém basear-se nos princípios de Cutter, e construir um conjunto diferente de regras. Isso pode ser um problema. Imagine se dois conjuntos de registros de diferentes catálogos não pudessem ser compartilhados. Se alguém adotar a regra de colocar Machado de Assis, Joaquim Maria em M (para Machado de Assis) e outros usarem A (para Assis), quando os catálogos forem misturados, o mesmo escritor iria aparecer em dois lugares e os objetivos propostos por Cutter não seriam atingidos, e nem as necessidades dos usuários seriam atendidas.

 

O FRBR define-se em relação às tarefas realizadas pelos usuários quando pesquisam e dão uso aos catálogos. Estas tarefas descendem dos objetivos de Cutter. Por exemplo, “encontrar um livro do qual o autor é conhecido” torna-se "encontrar todas as manifestações que incorporam as obras sobre a qual uma determinada pessoa física ou jurídica seja responsável", e "encontrar uma manifestação particular quando o nome do responsável pela obra (pessoa e/ou entidade jurídica), incorporado na manifestação é conhecido”.

 

Na realidade, o conjunto completo das tarefas possíveis no FRBR é muito mais amplo e inclusivo do que aquele especificado por Cutter, e permite aos usuários maior liberdade. O Autor torna-se qualquer entidade do grupo 2 (pessoa e entidade coletiva – uma organização ou grupo de pessoas e/ou organizações). O livro torna-se qualquer entidade do grupo 1 (obra, expressão, manifestação, item). O assunto torna-se qualquer entidade do grupo 1, 2 ou 3 (conceito, objeto, evento, lugar).

 

O FRBR não explica que "encontrar X quando Y é conhecido" é necessário. Eles dizem que qualquer das tarefas realizadas pelo usuário pode ser executada com qualquer combinação de entidades. O usuário pode procurar por todos os livros de um determinado autor, mas também pode procurar por qualquer manifestação (representação dos objetos físicos com as características do conteúdo intelectual. É o suporte físico de uma expressão ou obra) em um conjunto de obras relacionadas, onde as expressões (a forma como se expressa o conteúdo intelectual ou artístico: tradução, interpretação etc. Também pode ser o assunto da obra) têm atributos A e B, as manifestações têm atributos C e D, o produtor das manifestações tem atributo E, e a relação entre as expressões e as obras são atributos F, G, ou H.

 

O próprio FRBR define o conjunto de requisitos para a aquisição dos itens que exemplificam essas manifestações, que vai além de qualquer coisa que Cutter tenha proposto. A aquisição não é uma parte da catalogação, mas faz parte de todo o sistema de disponibilização das informações. As tarefas do usuário no FRBR são mais exigentes e refletem as mudanças ocorridas nas bibliotecas desde a época de Cutter até os dias atuais.

 

Nas regras de Cutter há uma forte presença de duas ideias: o conjunto de princípios e a preocupação com as necessidades dos usuários. A importância da padronização e internacionalização também são partes da vida e obra de Cutter. O que não é destacado é a ideia conceitual de obra.

 

Seymour Lubetzky ao analisar a obra de Cutter, além de destacar sua importância, também comenta que ele é vago sobre o que a biblioteca tem de um determinado autor. Cutter não qualifica em suas regras, de maneira clara e consistente, a distinção do que é livro e do que é obra.

 

Porém, Shiyali Ramamrita Ranganathan (apud DENTON) resumiu a importância do trabalho de Cutter ao comentar que nenhum dos projetos de catalogação [isto é, as 91 regras de Panizzi e alguns códigos germânicos], estabeleceu regras de catalogação de maneira sistemática ou exaustiva. As Regras para Catálogo Dicionário (RDC) foi o primeiro código a transcender estas limitações de ser um conjunto de regras para um único tipo de biblioteca. Sua restrição foi somente no contexto linguístico. Cutter foi feliz na autoria do código. Ele era um gênio. Isto é visto no grau de certeza e na profundidade de penetração encontrada nas regras e os comentários da RDC. Ainda, segundo Ranganathan, as regras são como as eternas epigramas de um sábio. A RDC é realmente um clássico. É imortal. Sua influência foi avassaladora. Ela parece ter sido a principal fonte dos códigos posteriores no idioma inglês. Ressalvou que sendo a criação de um homem, tenha sido amplamente apreendido intuitivamente. Posteriormente foi pouco alterado. Ranganathan, por fim, afirma que o RDC é bem completo como um “ovo”.

 

Atualmente, com os OPACs e/ou Webopacs, repositórios, biblioteca digital, e todos os tipos de biblioteca 2.0, os princípios de Cutter apresentam valor que devem nortear os novos produtos e serviços de informação bibliográfica, agora em ambientes digitais. Especialmente na colocação do usuário como o centro do fazer bibliotecário.

 

É bom frisar, que o sonho de Cutter, há cerca de 100 anos atrás, não se tornou uma utopia. Está ai vagando a velocidade luz no universo bibliográfico, a exemplo do brilho de estrelas que segue marcando o tempo, na expansão do universo.

 

Indicação de leitura:

 

Barbosa, A. P. Novos rumos da catalogação. Rio de Janeiro : BNG/Brasilart, 1978.

 

Denton, W. FRBR and the History of Cataloging. Em: Taylor, A. G. (ed.). Understanding FRBR: what it is and how it will affect our retrieval tools. Westport, Connecticut: Libraries Unlimited, 2007.

 

Garrido Arilla, M. R. Teoría e história de la catalogación de documentos. Madrid : Síntesis, 1999.

 

Mey, E. S. A.; Silveira, N. C. Catalogação no plural. Brasília, DF. : Briquet de lemos/Livros, 2009.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.