LEITURAS E LEITORES


A BOQUINHA DA GARRAFA DA IDADE MÉDIA

Muita gente não sabe recitar um poema completo, às vezes, nenhuma estrofe sequer. Por outro lado, se for solicitado o trecho de uma música, não será difícil de se encontrar quem saiba a canção inteira. É como se, por meio da música, fôssemos conduzidos mais facilmente à memorização do texto.

A relação entre poesia e música é bastante antiga. Na Idade Média entre os séculos XII e XIV, por exemplo, a poesia era cantada. Nessa época, o poeta era chamado trovador, pois, além de compor, deveria tocar um instrumento para apresentar a poesia. Nesse período, as composições poéticas eram chamadas cantigas.

A língua portuguesa estava se estruturando, muitas palavras se formavam, como é o caso da palavra senhor. Não havia a correspondente feminina e o poeta utilizava o pronome para formar o feminino: mia senhor. Veja os versos daquela considerada a mais antiga cantiga que se tem registro em língua portuguesa (séc.XII), intitulada Cantiga da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós.
E, mia senhor,des aquelha
me foi a mi mal di'ai!
E vós, filha de Dom Paai
Moniz, e bem vos semelha
d'avereu por vós guarvaia

Persistia uma mistura lingüística chamada galego-português que dava a feição à língua falada naquela região. Fosse hoje e a chamaríamos de "portunhol". Portugal ainda se estruturava enquanto nação. A quase totalidade da população era analfabeta e formada pela tradição oral, portanto, vamos encontrar aí uma poesia num processo de amadurecimento e construção, com as cantigas compostas de teor mais erudito, com linguagem mais cuidada. Outras, no entanto, utilizavam-se de linguagem mais popular, vulgar.

As cantigas podem ser subdivididas em líricas e satíricas. Nas líricas, há maior preocupação com o vocabulário a ser empregado, com a forma de expressão. Já as satíricas incluíam a ambigüidade, termos chulos, obscenos até.

Existem dúvidas quanto à exatidão desse tipo de composição, embora, de acordo com Rodrigues Lapa, essa poesia seja originária da região de Provença (sul da França). Os portugueses foram "mestres" nestas composições e não economizaram palavrões e xingamentos. Muitos palavrões empregados nessa época permanecem até hoje com a mesma "força e validade".

A sátira portuguesa contida nas cantigas, embora apresente duplicidade de sentidos em algumas composições, noutras predomina o desbocamento como nos versos de Joan Fernández d'Ardeleiro:

"Un sangrador de Leiria
me sangrou estoutro dia,
e vedes que me fazia:
andand'a buscar a vea,
foi-me no cuu apalpar

al fodido irá sangrar
sangrador en tal logar!"

(Cancioneiro da Biblioteca Nacional.1330; Cancioneiro da Vaticana. 936)


A temática dessa cantiga hoje poderia ser o abuso sexual, uma vez que o sangrador de Leiria utilizava sua profissão para apalpar as clientes onde não devia. Essa tradição lusa teve e tem adeptos no Brasil. No século XVII, um dos precursores da composição satírica foi o poeta baiano Gregório de Matos, posteriormente muitos outros.

Existem tradições no Brasil que nos remetem automaticamente aos nossos antepassados portugueses. Por exemplo, os repentistas nordestinos ainda mantêm a tradição do versejar acompanhado da música à maneira dos trovadores medievais. Geralmente utilizam uma cadência construída em rimas de fácil memorização, muito ligados à tradição oral e à expressão popular.

Da Idade Média ao século XX, é como se a semente da cantiga satírica tivesse permanecido aguardando um solo propício para germinar. Encontrou o nordeste brasileiro. A forma de expressão poética se altera de acordo com a situação histórica que a envolve, além de influenciar outras maneiras de expressão. Portanto, nos parece que as músicas atuais intituladas "axé", tenham certa semelhança, ou parentesco com as cantigas satíricas medievais.

Não queremos negar que essas composições divulgadas pelas rádios e TV sejam produto de uma indústria fonográfica massificadora e alienante. No entanto, se existissem TV e rádio na Idade Média quem garantiria que as cantigas satíricas não seriam exploradas da mesma maneira?

Talvez as músicas "axé" valorizem mais os aspectos sexuais, de exploração do corpo, da genitália. Já as cantigas medievais se detinham em outros aspectos, além da sexualidade.

Vamos perceber nessas composições características muito próximas das cantigas medievais: apresentam uma estrutura repetitiva, usam fartamente a ambigüidade, termos chulos e são muito apreciadas pela população que tenha menos acesso à leitura e mais oralidade. Por exemplo, na composição Arrasta- Pé, interpretada pelo grupo TCHAN:

"O trenzinho da sacanagem
tchan, tchan, piui, tchan, tchan
Por debaixo da cordinha, piui, tchan
tchan, piui, tchan, tchan
Olha a cobra, é brincadeira
Vai na dança da bundinha
Cuidado que a fogueira vai
Queimar a passarinha" ( Dito/Paulinho Levi/Cal Adan)

Quase toda a letra da música se estrutura na repetição e no uso de termos, no mínimo, coloquiais. A genitália recebe outros nomes: cobra, passarinha. Tudo isso aliado a um som dançante torna-se muito atraente para o ouvinte que se identifica com esse "gênero" musical.

Daí então é que, guardadas as devidas proporções e momento histórico, acreditamos que as composições satíricas da Idade Média têm um laço, ainda que distante, com as canções populares de hoje, de axé e similares.


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ROVILSON JOSÉ DA SILVA

Doutor em Educação/ Mestre em Literatura e Ensino/ Professor do Departamento de Educação da UEL – PR / Vencedor do Prêmio VivaLeitura 2008, com o projeto Bibliotecas Escolares: Palavras Andantes.