ALÉM DAS BIBLIOTECAS


HIKIKOMORI: VOCÊ JÁ OUVIU FALAR?

De olho no que se tornou um “chavão” em território nacional, as palavras textuais do compositor e cantor Caetano Veloso, extraídas da canção “Vaca profana”, quando diz “de perto ninguém é normal” (não obstante a controvérsia de que o espanhol Pablo Picasso é o verdadeiro autor da frase), são impressionantes, numa sociedade tecnológica, em que o número de doenças de cunho psicológico cresce a cada dia.

No caso, fazemos alusão ao novo transtorno psiquiátrico constante da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), sob a responsabilidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua 10a edição, acerca da designação dos hikikomori, termo em japonês, equivalente a confinamento ou retraimento social severo. A princípio, considerado um problema ligado à cultura nipônica (Japanese culture-bound syndrome), além do crescimento acentuado no Japão, já “mostra a cara” em outras nações do Oriente e do Ocidente, o que demanda uma série de estudos científicos acerca da anomalia. Nos últimos anos, o hikikomori está presente em países, como Alemanha, Austrália, Bangladesh, Canadá, China, Coreia do Sul, Espanha, Estados Unidos da América (EUA), França, Hong Kong, Índia, Itália, Irã, Itália, Omã, Portugal, Reino Unido, Suécia e Tailândia. Em 2019, no Brasil, há registro de fórum acerca da  temática, além do relato de caso intitulado “Nonprofits in Japan help ‘shut-ins’ get out into the open”, publicado por Hoffman (2011) como “carta ao editor” na revista The Japan Times Online.

O hikikomori refere-se tanto ao fenômeno em geral quanto aos próprios portadores, que podem estar tanto em metrópoles quanto em pequenas cidades ou vilarejos. Segundo informação do psicólogo Tamaki Sait? (outras fontes citam Tomita Fujiya), criador do termo e pioneiro nas pesquisas sobre o tema, a partir dos anos 80. O total preciso de hikikomori é de difícil mensuração, como Sait? admite na autobiografia “Hakushi no kimyo na shishunki”. Atinge com maior frequência, adolescentes e jovens adultos do sexo masculino, embora haja registro de vítimas do sexo feminino. São cerca de um milhão e meio de pessoas que, deliberadamente, se tornam reclusas na casa dos pais, recusando-se a deixar o próprio quarto ou cama (quando jovens) ou a casa (quando adultos, em geral, entre 40 e 50 anos), no mínimo, por seis meses, sem frequentar escola ou sem trabalhar. Como única companhia e nem sempre, o computador ou o videogame.

A growing number of Japanese have become recluses

 

 

Fonte: https://www.economist.com/asia/2019/11/30/a-growing-number-of-japanese-have-become-recluses, 2023

Não obstante a inclusão na lista da OMS e vir sendo colocado como problema de saúde pública, há renomados especialistas que afirmam ser o hikikomori não um transtorno psiquiátrico. Para muitos, ainda rondam muitas dúvidas. Julgam que se trata de síndrome vinculada à cultura japonesa (neste caso, como explicar sua expansão nas mais diferentes nações?), famosa pela rigidez com que trata sua gente, exigindo elevado nível de perfeição em tarefas do dia a dia por meio de contínua pressão, o que parece justificar o total de 21.584 suicídios no país ao longo do ano de 2022, que corresponde ao incremento de 2,7% em confronto com 2021, segundo a “Prensa Latina”, em texto intitulado “Suicídios aumentaram no Japão durante 2022. A bem da verdade, sobretudo, entre os de meia-idade e idosos, aposentados e desempregados, enquanto os mais jovens decresceram para 441 numa população de quase 126 milhões de habitantes, ou, precisamente, 125,7 milhões.

A “cultura da pressão nipônica” tem sido alvo de muitas discussões ao largo de anos e décadas, e, agora, reconhecidamente, segundo Federico (2023), pode incentivar o hikikomori. Eis algumas modalidades de exercer o “doce domínio” sobre outrem:

  1. Pressão para atender às expectativas com resignação e serenidade – famílias, amigos, sociedade e o país nutrem expectativas sobre as crianças desde muito cedo, o que incorpora regras ditas e não ditas. Um exemplo da estrutura rígida é a busca quase desesperada por ingresso à universidade e, a posteriori, por emprego. É o que se chama de shukatsu – abreviatura de shushoku (encontrar emprego) e katsudo (atividades). Desde o terceiro ano da graduação, os jovens iniciam o processo de rastreio, que segue até o final da graduação. Para quem não consegue se graduar ou ingressar, rapidamente, no mercado de trabalho, a cobrança sem tréguas é inevitável.
  2. Ênfase no quesito paciência ou resistência – há expectativa de que todos consigam suportar situações ou tempos difíceis sem expressar emoções. Há apologia à capacidade de resistir diante da crença de que sentir dor (física ou psicológica) é inerente ao crescimento do homem.
  3. Pressão para se tornar independente e não um fardo para quem quer que seja – como decorrência, muitos permanecem sozinhos sem ajuda financeira ou amorosa da família ou de amigos, o que acentua a solidão e o isolacionismo, uma vez que, dificilmente, ousam compartilhar as agruras da vida com quer que seja.
  4. Bullying – devido à rígida estrutura hierárquica da sociedade e à importância que se dá aos mais velhos, há quem sofra constante bullying dos superiores na escola (em seus diferentes níveis) e no campo de trabalho sem esboçar reação, até porque a chance de revanche é real. A maioria não divide suas dificuldades com a família, até porque conhecem a resposta –suportar para vencer.
  5. Tendência dos japoneses de duvidar dos demais e julgá-los com rapidez – o nipônico, salvo raras exceções, não dá ao outro o direito  de explicar suas falhas mesmo mediante sólidos argumentos. Os violadores de regras são sempre malvistos. Daí, o Japão ser visto quase sempre como uma nação de serviços de qualidade e funcionários de alto nível: é o outro lado da moeda, mas que inibe mudanças comportamentais benéficas ao homem diante do receio do julgamento que virá adiante.
  6. Intensa competição – desde muito criança, os japoneses aprendem a ser competitivos como estratégia medular para conseguir sucesso. Por exemplo, na esfera empresarial, a administração costuma atribuir aos funcionários tarefas que lhes incentivem a superar os demais para que atestem que estão à altura dos demais.

Além dessas formas de pressão, no Japão, tal como se dá em outros recantos, há tantos recursos, eletrônicos ou não, e tantas variedades de conveniência e de entretenimento, que as pessoas podem viver sozinhas sem sair de casa. Acessam notícias, pagam contas, jogam e até se comunicam via internet. Compras on-line e a prática crescente do delivery são elementos facilitadores, mas que podem nos afastar uns dos outros.

Por tudo isto, os motivos que causam o hikikomori são cercados, ainda, de pontos de interrogação. Talvez, após eventos estressantes; talvez, ambiente familiar hostil ou  disfuncional; talvez, elevado nível de ansiedade; talvez, medo de enfrentar o bullying escolar ou o cyberbullying; talvez, fobias sociais extremas e distúrbios de personalidade. Há, ainda, a similaridade ou pontos em comum com outras enfermidades, a exemplo da decantada depressão, esquizofrenia, psicoses, níveis variados de autismo.

São muitos talvez... E algumas certezas: em se tratando do Japão, em particular, os dados apontam proporção elevada de hikikomori (37,9%) com histórico anterior de tratamento psiquiátrico e com significativa dependência de medicamentos, além de sintomas obsessivo-compulsivas, depressão clínica, esquizofrenia e tentativas suicidas. Os mais interessados ou curiosos acerca do tema, podem acessar a página eletrônica  https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/pcn.12895, onde encontarão mais detalhes da autoria de Kato e Kanba e Teo (2019), além de figura ilustrativa que expõe a similaridade do hikikomori com outras desordens psiquiátricas e/ou outras situações físicas e sociais preocupantes.

No Japão ou fora dele, há incidência dos solitários eremitas do século XXI em famílias com excelente poder aquisitivo. São famílias que favorecem aos filhos conforto e quaisquer artefatos tecnológicos, esquecendo, porém, de os impulsionar a enfrentar o mundo / a vida. Ao que parece, isto se dá nos EUA e no Reino Unido. Porém, com sua propagação, há mostras concretas de medidas governamentais nas diferentes nações para instaurar programas de assistência social e grupos de apoio, com vistas a trazer os reclusos à vida social. Resta-nos, pois, a certeza de que o hikikomori não pode jamais ser visto como escolha de estilo de vida!

Fontes:

FEDERICO, Hazel Sarah. Why does Japan have so many hikikomori people? Quora. 2023. Disponível em: https://www.quora.com/Why-does-Japan-have-so-many-Hikikomori-people. Acesso em: 24 maio 2023.

HOFFMAN, Michael. Nonprofits in Japan help “shut-ins” get out into the open. The Japan Times Online. Oct. 2011. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2011/10/09/na tional/media-national/nonprofits- in- japan-help-shut-ins-get-out-into-the-open. Acesso em: 24 maio 2023.

KATO Takahiro A.; KANBA, Shigenobu; TEO, Alan R. Hikikomori: multidimensional understanding, assessment, and future international perspectives. Psychiatry and Clinical Neurosciences, v. 73, n. 8, p. I-III, 426-515, IV-VIII, Aug. 2019. Disponível em: https://online library.wiley.com/doi/epdf/10.1111/pcn.12895. Acesso em: 23 maio 2023.

SUICÍDIOS aumentaram no Japão durante 2022. Prensa Latina. 2022. Disponível em: https:// www.prensa latina.com.br/2023/01/20/suicidios-aumentaram-no-japao-durante-2022. Acesso em: 24 maio 2023.

 

Como citar este texto: 

TARGINO, M. das G. Hikikomori: você já ouviu falar? In: Almeida Junior, O.F. Infohome [Internet]. Marília: OFAJ, 2023. Disponível em: <https://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1478>. (Coluna Além das Bibliotecas).


   303 Leituras


Saiba Mais





Próximo Ítem

author image
HAITI: O PAÍS QUE NÃO CONHECI
Agosto/2023

Ítem Anterior

author image
LONDRES: DA REALEZA AOS MORADORES DE RUA
Junho/2023



author image
MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”