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HAITI: O PAÍS QUE NÃO CONHECI

Início de dezembro próximo passado. Viagem de 15 dias à República Dominicana (RD), ex-colônia da Espanha e nação insular da América Central, localizada na Hispaniola, a segunda maior ilha do arquipélago das Grandes Antilhas, mar do Caribe. Nos estudos que costumam anteceder nossas viagens como forma de tirar maior proveito, a constatação da proximidade com o Haiti, única fronteira terrestre da República, a oeste. Ainda como nações vizinhas, Porto Rico, Jamaica e Cuba, das quais a RD conserva grande similaridade cultural, sobretudo, no caso de Cuba, com danças, fábricas de tabaco e significativa idiossincrasia religiosa.

Obviamente, muitos de nós conhecemos a República do Haiti por ouvir falar sobre sua pobreza: Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo = 0,535. A miséria extrema parece não comprometer sua beleza natural, haja vista que os franceses a denominam (ou a denominavam) de La Perle des Antilles ou A Pérola das Antilhas, com o elevado ponto Pic la Selle de 2.680 metros de altitude. Planejei ainda no Brasil a possibilidade de visitar, no mínimo, a capital e, também, a cidade mais populosa, Porto Príncipe, com o intuito de avaliar a realidade de sua gente, mesmo que de forma não conclusiva. Afinal, tanto em área quanto em população, o Haiti é o terceiro maior país do Caribe (aquém de Cuba e da RD), com 27.750 km², onde vivem cerca de 11. 439 646 habitantes, o que corresponde à densidade demográfica de 292 hab. / km².

“É preciso aguentar para sobreviver”: o drama dos haitianos na fronteira dos Estados Unidos

 

Fontes:

Criador: PAUL RATJE | Crédito: AFP - 
Direitos autorais: AFP ou licensors

As dificuldades surgiram logo na compra de passagens aéreas. Diziam: “mais fácil comprar na própria República Dominicana”, porque somente os dois países, e só eles, integram a ilha Hispaniola. São muito interligados. Verdade. O Haiti está separado da RD somente pelo rio Artibonite, cuja nascente está nos montes Cibao, na Cordilheira Central da RD, embora a maior parte de seu comprimento se situe no Haiti. Mas a inter-relação para por aí.

Para mim, um grande susto. Um susto inesperado e bastante triste. Tentei voos aéreos: raros e valores inalcançáveis. Transporte coletivo, como vans; táxis e por aí vai, sempre fora de cogitação. Respostas similares: “dona, o que a senhora vai fazer por lá? Chegou, é sequestro imediato. É pura confusão. Sabe qual é o único problema da República Dominicana? Os haitianos”.  

São povos-irmãos! Do lado haitiano, católicos, protestantes e praticantes de vodu. Do lado dominicano, idem. Do lado haitiano, francês e crioulo.  Do lado dominicano, prevalece o espanhol, mas o francês e o inglês também são usuais. Do lado haitiano, a cultura é camponesa, popular e fronteiriça. Daquele lado, também. Dos dois lados, as religiões são diversas, com o domínio do catolicismo, protestantismo e religiões afro-caribenhas. O merengue é a música e a dança nacional da RD, reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. No Haiti, o merengue também é dançado ao lado de outros ritmos, com a presença marcante de estilos musicais derivados de tradições cerimoniais do vodu haitiano, entre outros.

Reitero: são povos-irmãos! São povos-irmãos que não escondem uma aversão mútua. Devem existir exceções. Não as descobri. A violência política é recorrente ao longo da história do Taiti, o que justifica  séria instabilidade no Governo. Oficialmente, autointitula-se República Unitária Semipresidencialista, regime que diferencia as figuras de Chefe de Estado e de Chefe de Governo, aliás, traço característico do Parlamentarismo. No Poder, desde 20 de julho de 2021, interinamente, está Ariel Henry, como Presidente e Primeiro-Ministro.

No cotidiano, segundo falas de dominicanos, desde sempre, ou seja, desde sua independência da França, declarada em 1 de janeiro de 1804 e reconhecida em 1825, a parte ocidental da ilha Hispaniola, onde hoje fica o Haiti, foi cedida à França pela Espanha em 1697 e, na atualidade, o território haitiano está sob o comando de inúmeras facções criminosas, que, à semelhança das que existem no Brasil, cometem crimes bárbaros, abusam do tráfico de drogas, adotam “tribunais” do crime e tudo mais que se possa pensar. E é inesperado quando se revê dados que atestam a supremacia desse país, no século XVIII, como rica colônia francesa na América, devido à exportação de açúcar, cacau e café.

Além da instabilidade política e da violência que se instalou no Haiti, há outras motivações acerca da situação de miséria do Haiti, a exemplo da colonização, escravidão e ocupação militar. E mais, quase 50% da população haitiana é analfabeta; a expectativa de vida é de apenas 60 anos; a taxa de mortalidade infantil chega a 71 mortes / 1.000 mil crianças nascidas vivas; os serviços de saneamento ambiental alcançam menos da metade das residências; a maioria dos haitianos vive abaixo da linha de pobreza diante de inacreditável concentração de renda e desigual distribuição de terras; aproximadamente, cerca de 60% dos habitantes são subnutridos, etc. etc.

A tudo isso, há registro de insurreição popular no Haiti, muito recentemente, ano 2022, como continuação de um ciclo de resistência iniciado em 2016 para combater a séria crise social advinda dos golpes de Estado de 1991 e 2004. Às questões políticas, aliam-se desastres naturais, como constantes terremotos e furacões. O terremoto de 2010 deixou 230 mil mortos e um saldo de mais de um milhão de desabrigados ao ciclone. O tropical Grace, em 2021, registrou a morte de mais de dois mil cidadãos. O furacão Mateus, ano 2016... Isto é, há uma soma de fatores que excluem o povo haitiano da linha do progresso e o afasta dos vizinhos. Longe da compaixão e do incentivo à imigração legal, os dominicanos parecem nutrir muita raiva contra os irmãos.  

Porém, há haitianos vivendo legalmente na RD. Não são muitos e evitam expor sua identidade. A maioria, porém, é ilegal. Nesse universo inesperado, há fatos engraçados: os dominicanos, sobretudo, os que trabalham no litoral, que se abre, ao norte, para o Oceano Atlântico e, ao sul, para o Mar do Caribe, com frequência, além de largos chapéus, cobrem parte do rosto, braços e pernas com a intenção de não escurecer ainda mais a pele e ficarem mais parecidos com os “odiosos” irmãos, porque cerca de 95% dos haitianos são negros, descendentes de escravos africanos contra 5% de mulatos e/ou brancos. Em contraposição, na RD, as etnias maioritárias são a mestiça (73%); a branca (16%); e a negra (11%).

Por fim, como escutado dentre murmúrios, o Haiti vive e sobrevive à crescente crise humanitária, com escassez de alimentos e pavoroso aumento nas taxas de violência, o que impediu nossa visita!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”