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COMPORTAMENTO DE MANADA E O FILME “BARBIE”

Embora a onda do rosa pareça em declínio após o lançamento do filme norte-americano “Barbie”, em julho de 2023, ainda é o tema da hora, com a maior quantidade de ingressos vendidos numa pré-venda, em território nacional, segundo a Warner Bros. É bom lembrar que, como o cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho afirma em recente entrevista à revista Veja, “Barbie” aparece como fenômeno mundial. Alcançou quase duas mil salas do Brasil, “como se tivessem jogado um cobertor num país inteiro” (2023, p. 8).

“Barbie” baseia-se na franquia de bonecas homônimas da companhia norte-americana Mattel Inc., Califórnia / Condado de Los Angeles, integrando, com força total, gerações e gerações mundo afora. E, espantosamente, a empresa prepara um retorno, que se prevê triunfante, da “Barbie” aos cinemas em IMAX, nos Estados Unidos, ainda em setembro. O IMAX utiliza câmeras especiais com o intuito de captar detalhes mais acurados e favorecer um campo de visão mais amplo, ou seja, propicia melhorias visuais e imersão mais intensa no universo das barbies. Como se não bastasse, a empresa acrescentará cenas pós-créditos inexistentes na versão original do longa.  

Classificado como você quiser – comédia ou fantasia – sob a direção de Greta Gerwig, conhecida por longas-metragens de cunho feminista, como “Lady bird” e “Adoráveis mulheres”, além de roteiro em colaboração com o marido Noah Baumbach – e estrelado por Margot Robbie e Ryan Gosling como Barbie e Ken, respectivamente, o filme apresenta elenco diversificado. Porém, seu cerne é deixar claro que, ao lado de uma Barbie-padrão ou de uma Barbie-estereotipada, há barbies que representam a mulher contemporânea em várias funções.

A amada bonequinha de plástico perfeita sai da Barbielândia para ocupar seu lugar onde quiser... Às vezes, de forma sub-reptícia, “Barbie” traz à tona temas, como patriarcado, machismo, formas distintas de preconceitos, como a gordofobia e a negrofobia; assédio e etnia. Eis a presidente negra; a advogada plus size; a médica; a princesa; a diplomata; a escritora; a jornalista; a juíza; a física; a sereia e assim por diante. Desde bens o início, o longa delineia e/ou aplaude o padrão de beleza imposto pelo machismo estrutural às mulheres e parece condenar o corpo feminino que envelhece com suas belas celulites, suas rugas reveladoras de dias bem-vividos, cabelos raros e andar mais lento. Chama atenção a denominada Barbie Estranha: rabiscada e maltratada por uma criança, possui cabelo desgrenhado e rosto disforme. Como tal, é vista pelas demais ou pelos demais como “fora da caixinha”, o que relembra ao expectador como a sociedade trata os que fogem dos estereótipos, apesar da Barbie estranha mostrar genuíno heroísmo quando a Barbielândia é invadida pelos meninos opressores. São eles que ditam os encontros e desencontros; os movimentos dos corpos ou sua inércia; o silêncio ou a sofreguidão.

Assim sendo, o que mais divide opiniões diante do universo cor-de-rosa é a questão inicial do patriarcado. Quando Barbie deixa para trás seu mundo perfeito, descobre que a vida real comporta machismo, assédio e intimação. Olhares sexualizam seu corpo. No cinema, a Mattel Inc. mantém na administração tão somente homens. As barbies observam o hábito hilário do mansplaining – os kens sempre tentam explicar às meninas o que quer que seja de forma simples e rasa, certos da mediocridade e incapacidade da mulher.

Por outro lado, o que comportaria texto mais aprofundado é o porquê da propagação tão imediata das ondas rosas “magnéticas” do filme “Barbie”. Lá vão crianças, adolescentes, homens e mulheres vestidos de rosa assistir ao filme. Bom porque muitos retornam ao cinema ao lado do pacotão de pipoca e da família ou dos amigos. Triste porque, como Kleber M. Filho reforça, a invasão das salas brasileiras de cinema por sucessos hollywoodianos põe em risco a expansão do cinema nacional. Falta bom senso e discernimento para compreender o que há por trás do universo rosa. Há toda uma explicação teórica e profunda presente em áreas, como psicologia, psiquiatria, psicanálise, neurociência, comunicação social e áreas afins. Cientistas estudam o denominado “comportamento de manada” no cérebro humano, exatamente porque conduz a implicações sociais, de saúde pública e, sobretudo, de saúde mental.

Trata-se de expressão advinda de comportamento comum dos animais quando eles se unem para se proteger ou fugir dos predadores.  Por exemplo, zebras e gnus não são espécies companheiras e amistosas no dia-a-dia, mas se transmutam por pura conveniência, como tantos seres humanos o fazem. No caso, diante do risco iminente de predadores contumazes, sobretudo, nos períodos de migração, as zebras tornam-se best friends dos feios gnus para ajuda mútua: estes últimos entram com o olfato apurado; as zebras, com a visão e a memória privilegiada. Trata-se de fenômeno concreto que se dá na natureza...

Zebras e gnus: em pleno "comportamento de manada" 

 

Fonte: Acervo pessoal da autora

No caso do ser humano, refere-se à tendência de as pessoas seguirem um líder ou determinado grupo, sem que a decisão resulte de reflexão consolidada. De forma simples e simplória, afirmamos que figura como conduta contagiosa e estratégia bastante útil para os disseminadores de fake news, razão pela qual o "comportamento de manada" vem sendo adotado em redes sociais por perfis falsos e indivíduos inescrupulosos no Brasil e no mundo.

Os indivíduos imitam os demais por mero sugestionamento. É o caso do aplauso, das vaias, por exemplo. Há sério agravamento quando ocorrem casos de linchamento e suicídios.  A manada impõe os restaurantes “da moda”; os autores venerados mesmo quando não são lidos; os políticos cancelados ou aplaudidos sem que as motivações estejam claras, et cetera. Riscos e consequências nem são contemplados nem tampouco analisados ou minimizados: a tendência é o consenso de ideias e atitudes, desconsiderando as particularidades. Como consequência, assumir uma postura diferente do grande grupo ou se manifestar em sentido divergente tende a gerar risco ou impacto negativo para quem assim age. Obedecer aos ditames da manada é quase uma forma de escravidão camuflada.

Segundo o Curso on-line de Formação em Psicanálise (2023, não paginado), a adesão ao "comportamento de manada" deriva, quase sempre, de quatro causas que se mesclam:

[...] a garantia de se sentir seguro e aceito por parte da liderança e dos membros;

[...] o impedimento de riscos ou punições por agir ou pensar de forma diferente, assegurando a preservação da imagem;

[a crença de que é] preciso seguir o líder ou a maioria por haver alguma lógica por trás daquele comportamento;

[...] a percepção de que agir ou pensar daquele modo gera algum benefício, seja material ou afetivo.

Em contraposição, o "comportamento de manada" quase sempre produz consequências (drásticas ou não) na esfera pessoal ou coletiva. Tomadas de decisão à toa e sem reflexão acarretam efeitos nefastos, sejam eles de nível psicológico / emocional, material e físico, quase sempre, sem permitir reverter as sequelas maléficas. Isto é, cenários de forte apelo social demandam extremo cuidado com atitudes, pensamentos e com a comunicação. Somente análises aprofundadas, incluindo fontes múltiplas e de diferentes correntes teóricas nos libertará do jugo das barbies e dos kens perdidos na vida.

Ademais, quando do lançamento quase simultâneo do filme “Barbie” com longa-metragem de natureza completamente distinta (estamos falando de “Oppenheimer”), surpreendentemente, nas academias, universidades e associações, emergiram discussões tolas comparando a repercussão das duas películas de natureza e teor completamente distintos. “Oppenheimer” configura-se como “[...] cinebiografia científica que trata seus diálogos técnicos sobre as complexidades do mundo quântico como mera decoração de vitrine, barulho de fundo para as relações interpessoais carregadas de neuroses que formam o seu verdadeiro interesse narrativo”. Somente esta afirmação-síntese de Caio Coletti (2023) descarta a possibilidade de confronto entre audiência, público e qualquer aspecto das duas produções.

Ainda que haja muitos outros pontos de discussão, em toda sua controvérsia, a norte-americana Greta Gerwig deixa uma lição: repensar sistematicamente a sociedade. Nem os homens devem assumir o comando tampouco as mulheres. Só conseguiremos harmonia e a sonhada felicidade quando os gêneros (quaisquer que sejam) deixarem de se opor e de lutarem juntos por um futuro melhor. Se, em determinado momento, as barbies libertam-se dos kens para que juntas recuperem poder sistêmico, impondo aos “meninos” um papel menor no contexto cotidiano, o ápice é o reconhecimento de que os dois grupos podem e devem manter seus propósitos e sua identidade em prol da paz e do amor, seja no mundo ficcional, seja no dia-a-dia.

Fontes

COLETTI, Caio. Oppenheimer é Christopher Nolan em seu melhor e mais bizarro. Disponível em: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/oppenheimer-christopher-nolan. Acesso em: 1 set. 2023.

CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE. Efeito manada em psicologia: o que é, como é usado? Disponível em: https://www.psicanaliseclinica.com/efeito-manada. Acesso em: 31 ago. 2023.

MENDONÇA FILHO, Kleber. Não é justo julgar o cinema nacional pelas sabotagens que ele sofreu. Revista Veja, São Paulo, p. 6-8, 18 ago. 2023.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”