LITERATURA INFANTOJUVENIL


MEMÓRIAS DE LALÁ E DE LELÉ

Sempre que vou em um velório fico sem palavras! Tomo muito cuidado, pois na boa intenção de acolher, muitas vezes proferimos falas inapropriadas, uma delas é: “a vida continua”. Na contramão desse pensar, um tanto “prático”, “frio” “desempático”, li na entrevista de uma pessoa enlutada a seguinte resposta: “o que continua é a morte!”

Mesmo que a fala queira dizer que a vida continua lá no mundo espiritual ou em outra dimensão, após a morte do corpo físico que diferentes religiões propagam, há de ser ter cuidado antes de dizer: “ainda bem que você não se apegou a criança” “logo essa dor passa” ou “vida que segue”. Será que a vida realmente segue? Para a mãe que se separa de seu bebê a dor não diminui. A ferida está presente na memória.

Há quatro anos e nove meses minha primeira sobrinha neta Laura Borges Garcia que tinha seis meses partiu para outra dimensão. Recentemente a mãe dela, minha sobrinha ouviu de uma médica inábil e insensível: “Você ainda não superou isso!” Presentei essa mãe e presentearia outras com o livro infantil maravilhoso - Vazio da escritora Anna LLenas.

Além disso, escrevi esse texto para elas e dedico a todas as mães que estão apartadas dos seus filhos, não importa a idade.

 

MEMÓRIAS DE LALÁ E DE LELÉ

bibliotecária lelé da cuca

 

Sou brasileira, paranaense e londrinense. Tenho seis meses. A distância de idade entre minha bisavó e eu, é enorme, ela tem 88 anos, mas isso não importa, estamos sempre ligadas.

Nós somos pessoas especiais, ela tem Alzheimer e eu tenho uma síndrome raríssima.

O ninho que ela construiu para seus filhos, netos e eu bisneta é aconchegante. O bisavô não está mais nele, mas sinto o cheiro de macarrão e sei que ele está por perto.

Ainda não aprendi escrever, nem falar, mas isso não me impede de ler tudo o que passa na minha frente, fico com olhos bem abertos. São tantos rostos, objetos, cores que já me apresentaram que me sinto uma paleta. Dessa paleta a cor que mais gosto é o azul. Pra mim, menina não tem que vestir só cor de rosa. Eu tenho roupas cor de rosa e também azul, verde, amarela.

Minha tia-avó, meio lelé, me contou que no Paraná tem uma ave chamada gralha-azul, ela é capaz de soltar uns gritos poderosos. Eu não. Minhas experiências com a voz, por enquanto são em tom baixo. Não sou de chorar, mas quando preciso de ajuda faço um barulho poderoso, por isso me identifiquei com essa ave. Outro dia até assustei as enfermeiras do hospital onde estou passando um tempo.

A gralha-azul é pequena, eu também. Não gosto quando escuto “tadinha ela é muito pequenininha”, claro, nasci prematura. Agora se quiserem me chamar de pingo de gente, não me importo.

Soube que o azul da gralha é especial, não é um azul fraco sem graça. É forte. Me contaram também que esta gralha usa um tipo de cachecol preto que vai até o alto da cabeça. Ela sabe que no inverno faz muito frio no sul do Paraná. Meu cabelo é fino, tão fino que na maioria das vezes ele fica espetado, este é o meu charme. Penso que a gralha também acha charmosa suas penas pretas encontrando com as azuis no alto da cabeça.

Dizem que a gralha-azul gosta muito de pinhão. Ainda não experimentei comer pinhão. Não estou na idade de ter dentes e minha mãe que é dentista sabe muito bem disso. Pensando bem é cedo para uma criança comer pinhão.

Acho que a gralha-azul é tão esperta quanto eu. Ela fica de olhos bem abertos nas pinhas que caem das araucárias e, quando encontra pinhão, além de dar para os seus filhotes, esconde na terra.

Só que acho que a memória dela é fraca igual da minha bisa, pois esquece onde enterrou os pinhões e isso faz nascer mais araucárias, assim, mais araucária, mais pinhão.

Minha bisa só me pegou no colo um pouquinho, ela fica quase sempre deitada e eu, por enquanto, faço a mesma coisa; porém tenho certeza que um dia, não sei quando e não sei onde, vamos andar de mãos dadas plantando árvores como a gralha-azul.

Preciso contar ainda que minha tia-avó e a bisa gostam de cantar na hora de dormir. Tem uma música que elas cantam todas as noites: o pinheiro dá a pinha, a pinha dá o pinhão, gralha-azul leva no bico vai fazer a plantação. Voooooa gralha-azul, gralha-azul.

Como a gente não controla o tempo e nem a vida... de repente a nossa gralha-menina voou pra longe e a mata entristeceu.

Evidentemente que a mãe-natureza, com muito amor falou: Muito obrigada, menina!

 

Sugestão de leitura:

EMOÇÕES compartilhadas: inspire-se nas diversas histórias de superação, organizado pela bibliotecária Laíse Aparecida Alves. Disponível em: https://www.inesul.edu.br/site/documentos/emocoes_compartilhadas.pdf


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.